Samba Perdido – Capítulo 22

 Capítulo 22

” … dizer que o pior aconteceu,

Pode guardar as panelas

Que hoje o dinheiro não deu.”

Paulinho da Viola – Pode Guardar as Panelas

 

Os ônibus que partiam de Ipanema rumo ao centro cruzavam primeiro por Copacabana para depois sair da Zona Sul pelo Túnel Novo. Do outro lado, passavam pelo Shopping Rio Sul, pelo teatro do Canecão e pelo campo do Botafogo antes de virarem à esquerda em direção à praia de mesmo nome. De lá, beiravam a Baía de Guanabara seguindo em direção a um mundo de escritórios e de repartições públicas. No meu primeiro dia como estudante universitário me senti bem pegando o ônibus 511 que seguia a mesma rota, mas que depois do Túnel Novo pegava a direita para entrar na pacífica Praia Vermelha, terra do Iate Clube e dos quartéis mais ilustres do exército.

Enquanto o ônibus enfrentava o eterno congestionamento da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, comecei a pensar sobre o ciclo que estava prestes a começar. Nas minhas divagacões, me dei conta de que não sabia o que esperar de um curso de Economia nem dos meus colegas. Fiquei curioso. Foi estranho saltar do ônibus em frente à Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, e entrar no campus. Já tinha passado por ali milhares de vezes mas nunca imaginei que um dia fosse estudar naquele lugar bonito. 

Ao cruzar o portão descobri um lugar tranquilo, com árvores bem cuidadas margeando ruazinhas sem trânsito separando construções bem preservadas do século passado. Originalmente, o prédio da faculdade tinha servido como um hospício, agora transferido para um prédio mais moderno dentro do campus, o famoso Pinel. Em pouco tempo estaria me deparando com enfermeiros correndo atrás de pacientes em fuga entre os carros estacionados e nos corredores da faculdade.

As salas eram maravilhosas, amplas e bem preservadas. Elas tinham sido o ninho da resistência estudantil à ditadura militar nos anos 60. A União Nacional do Estudantes (UNE) havia organizado muitos dos seus encontros cruciais em um dos patios internos daquela faculdade, num anfiteatro semiaberto, o Teatro de Arena. A maioria dos estudantes que haviam optado pela resistência armada tinham tomado suas decisões ali nos mesmos corredores e salas que estavam prestes a nos receber.

O legado político do prédio ainda estava vivo. Mesmo em 1981, ainda circulavam rumores de que alguns colegas eram policiais disfarçados – a carapuça servia, mas não dava para saber. O diretório central dos estudantes, o DCE, era agitado. Suas assembleias eram frequentadas por trotskistas, leninistas, maoístas e anarquistas, bem como membros dos partidos recém-formados, como o PT e o PDT, herdeiro do histórico PTB de Getúlio Vargas. Havia também gente ligada a movimentos mais antigos e barra pesada como o MR-8 e o Partido Comunista bem como aqueles militando pela ecologia, pelas nações indígenas e pela diversidade sexual.

O pau quebrava no centro acadêmico. Havia arranca-rabos sérios por quase tudo; como, por exemplo, qual deveria ser a postura do diretório dos estudantes perante a invasão soviética no Afeganistão? qual partido comunista representava de verdade as massas, o PCB ou o PCdoB? quem melhor expressava as aspirações do povo, Lenin, Trotsky, Mao, Bakunin ou Marx? Essas divergências teóricas insuportáveis faziam com que a experiência de se envolver em política estudantil parecesse com a de se pertencer ao clero. 

*

Longe das questões teóricas da faculdade, a situação política do país era assim: A utopia revolucionária dos Cubanos estava morta. Ninguém mais acreditava nela, nem a queria e seu pai rico, a União Soviética, estava falido e há muito tinha parado de investir em levantes populares. Seu envelhecido arqui-inimigo, o regime militar, estava em seu leito de morte. Apesar de tudo isso, depois de quase duas décadas de regime militar e com uma situação econômica em declínio, havia um descontentamento generalizado nas ruas e a sensação de que uma reviravolta estava por vir.

O objetivo das militâncias ainda era o de transformar ou mesmo substituir o capitalismo. O problema era que o arcabouço teórico da esquerda, que havia inspirado múltiplas gerações antes e depois das duas guerras mundiais, já não fornecia respostas suficientes para a situação atual. O sistema econômico e tecnológico tinha se tornado muito mais complexo do que quando aquelas obras tinham sido escritas. As antigas teorias não explicavam o fracasso dos regimes ditos comunistas, tanto a nível de apoio popular quanto a nível de prover um nível de vida satisfatório. Em contraste, havia o inexplicado sucesso estrondoso das democracias liberais no pós-guerra que, além de fornecer liberdade de expressão, trouxe melhorias substanciais para todas as classes sociais. Ademais, havia várias questões que passavam ao largo do tema central da esquerda: a luta de classes, como o equilíbrio ambiental, as relações humanas, a saúde física e mental da população, entre outras. 

Essa paralisação teórica continuou afetando as forças progressistas até o dia em que estas palavras foram escritas.

*

Embora impopular e praticamente inexistente no Brasil na época – principalmente na faculdade de Economia da UFRJ – a ideologia de direita estava se apresentando como uma alternativa ideológica inovadora. Seus novos defensores queriam levar o mundo a um estágio de desenvolvimento radicalmente avançado, parecido com o que se via em ficções científicas. Para conseguir isso acreditavam que se deveria deixar o terreno livre para o mercado; uma máquina irretocável, impessoal, apolítica e por isso extremamente dinâmica.

A frase que melhor definia sua visão era a da Margaret Thatcher: “a sociedade não existe.” Para eles, o egoísmo era a mola mestre do mundo. Se esquecessemos que o ser humano é um animal social e nos concentrassemos no “necessário” – sobreviver e ficar rico – estariamos livres para levar nossos talentos até o limite, sem impedimentos. Uma lei da selva benévola cuidaria para que cada um recebesse a porção merecida dependendo da sua capacidade e do seu esforço. Apostando na concorrência e na vitória da competência, todos sairiam ganhando já que todos dariam o melhor de si e obteríamos os melhores resultados possíveis. De quebra, nos veríamos livres da ineficácia dos Estados.

É claro que nessa corrida a maioria correria descalça enquanto uma minoria correria de Ferrari. As grandes corporações sairiam na frente e, sem ninguém para confrontá-las nem se preocupar com o bem comum, teriam liberdade completa. Imporiam os salários que entendessem, poluiriam o que quisessem, desalojariam, demitiriam e abusariam quem bem entendessem. Não haveria escolas públicas, hospitais públicos, políticas de desenvolvimento, ou qualquer outro esforço para o interesse da população em geral, apenas o mercado e a geração irrefreável de lucro. 

Em 1973, essa escola tinha tomado o poder na ditadura do Pinochet, no Chile, e nos anos 80 estava se espalhando como fogueira no dito mundo civilizado. Seus principais expoentes estavam sendo homenageados por governos e ganhando prêmios Nobel. Choques neoliberais estavam sendo introduzidos no Reino Unido e nos Estados Unidos enquanto regimes comunistas na Europa do Leste, o bloco soviético e o regime chinês se estavam sendo asfixiados econômicamente. Uma reviravolta parecida estava acontecendo no mundo acadêmico onde em breve as palavras socialismo, e principalmente comunismo, se tornariam como sinônimos de lepra, completamente rejeitados em faculdades “respeitáveis”.

Alem das grandes corporações e do mercado financeiro, agraciados com grandes reducões de impostos para se tornarem mais competitivos, a desregulação econômica agradaria a muitos nas classes médias. Com privatizações pipocando a torto e a direita fazendo as bolsas dispararem, muitos enriqueceram com isso. No Reino Unido, por exemplo, o governo vendeu conjuntos habitacionais e muitos dos antigos inquilinos conseguiram se tornar proprietários pela primeira vez em gerações.

Mesmo assim, pelos quatro cantos do planeta, a maioria da população foi sugada para dentro da pobreza. Países periféricos interessados em manter suas “vantagens comparativas” passaram a oferecer mão de obra com salários de fome como seu principal atrativo econômico às grandes corporações. Essa política criaria bolsas gigantescas de gente que não conseguia manter o seu sustento apesar de trabalhar o mais duro que podiam. Todos na ilusão de um dia ficarem ricos. Grande parte da população nos paises ocidentais veria seus empregos irem para recantos com salários mais “competitivos” no outro lado do mundo. Por outro lado, a diferença entre o que os executivos ganhavam e o que os escalões mais baixos ganhavam saltaria de 12 para 700 vezes. Com balanços positivos nas grandes corporações e suas ações subindo nas bolsas mas com o poder de compra muito reduzido devido aos arrochos salariais as economias neoliberais se acabariam se tornando menos competitivas que as economias mais planejadas como a russa, a chinesa e mesmo a Alemã. 

Conforme a verdade foi demonstrando que o dinamismo prometido pelos profetas do liberalismo era inexistente, a manipulação e até a fabricaçāo da realidade se tornariam cruciais. O principal inimigo do sistema se tornaria o pensamento crítico, nossos sonhos, nossa vontade de sermos livres da opressão do mercado, o índio nu na floresta que não sabia o que era dinheiro, a solidariedade a quem não trazia vantagem nenhuma e tudo mais o que não endeusasse o lucro privado. 

Para eles quem tinha que mudar éramos nós, não o sistema. Para nós, não havia nada de errado com ninguém, o que tinha que mudar era justamente o sistema. O conceito mais pernicioso do agora discurso oficial era a mentira de que nada poderia ser feito diferente. Tal como os indígenas brasileiros ensinados pelas missões evangelizadoras que seu mundo era errado e que para salvar suas almas precisavam aceitar o seu fim em prol do cristianismo e do mercantilismo por trás dele, os defensores do novo pensamento diziam que população tinha que se adaptar a Moloch ou desaparecer.

*

A Faculdade de Economia e Administração da UFRJ – a FEA – não era de esquerda própriamente dita. Sua linha era desenvolvimentista com conexão direta à CEPAL, Centro de Estudos Para a América Latina, erguida pelos governos democráticos no pós-guerra para achar soluções para o continente. Nossos professores mais influentes eram Keynesianos e defendiam uma aliança entre governo e capital privado para desenvolver o país. Os Estados Unidos tinham escolhido esse caminho nos anos 1930 para sair da recessão econômica através do New Deal implantado pelo presidente Roosevelt e era a que os aliados também adotaram para reerguer a Europa no pós-guerra com o plano Marshall. Para nossos professores o empresariado brasileiro era descapitalizado e despreparado demais para levar adiante um projeto de desenvolvimento e só um empurrão forte do Estado poderia, no jargão dos economistas, alavancar a economia brasileira.

Apesar de nunca ter apoiado a Revolução Cubana, esta escola se tornou um dos principais alvos da sua contrapartida criada pelo Departamento de Estado Norte Americano, a Escola das Américas. Seguidora fiel da Escola de Chicago e financiada por grupos interessados em assegurar seu predominio no continente, ela formaria vários ditadores e diversos personagens estadounidenses que teriam peso no futuro do continente. 

*

Os militantes de esquerda viam nossa turma como burgueses alienados. Por outro lado, os estudantes sem interesse em política viam quem se interessava em militar por avanços progressistas como playboys perdidos tirando uma onda infantil de revolucionários. Esta turma, a grande maioria mesmo naquela época, focava em se tornar histórias de sucesso depois que se formassem. Sem dúvidas, era uma postura lógica no contexto de uma faculdade de primeira linha. Porém, eu não estava no momento certo, nem na faculdade certa, para adotá-la. A verdade é que assim que entrei para a aula introdutória e vi meus novos colegas e professores tive a sensação clara de que aquilo era uma contingência e não o início de uma carreira.

O curso de economia da UFRJ visava preparar quadros para agências de desenvolvimento do governo e para companhias estatais: BNDES, IPEA, Eletrobrás, Petrobrás entre outras. Depois que as aulas começaram, descobri que muitos professores eram fascinantes e inteligentíssimos, alguns sobreviventes dos anos de chumbo da ditadura. Os professores mais engajados nos viam como uma nova espécie de estudante: um dos primeiros contingentes livres das amarras dos militares. Os que haviam voltado recentemente do exílio, estavam entusiasmados por poder lecionar livremente em seu próprio país.

O lugar e o ambiente eram estimulantes e, por isso, resolvi ignorar os pensamentos negativos iniciais e dar uma chance ao curso. Não dava para comparar aquelas aulas com o que víamos nas fábricas de passar no vestibular. Quem sabe não tivesse tomado a decisão certa e viesse a gostar do curso?

*

Tudo ia bem até que contraí uma hepatite em Mauá que me forçou a passar um mês e meio de cama. Aquela pausa marcaria o começo de uma reviravolta pessoal e, estranhamente, o início de uma reviravolta muito maior no país. A liberdade política estava garantida, as eleições diretas para presidente eram uma questão de tempo, porém uma era de inferno econômico estava despertando.

Era um acontecimento global; ao redor do planeta fundamentalistas religiosos cristãos, judeus e muçulmanos estavam desbancando a esquerda em termos de atrair a opinião pública. A AIDS estava se espalhando e Ronald Reagan e Margaret Thatcher estavam consolidando suas políticas conservadoras. Um ciclo neoliberal e careta estava iniciando um reinado de pelo menos quatro décadas.

Confinado à cama, me sentindo fraco, comendo e bebendo em pratos e copos separados para que minha infecção não se espalhasse em casa, presenciei o Fundo Monetário Internacional começar seu ataque ao Brasil. Representando as economias centrais ele decretou que dívidas contraidas em empréstimos concedidos a ditadores e antigos aliados – empréstimos realisados com fins políticos e, por isso, com facilidades especiais – eram agora uma ameaça à estabilidade mundial. As taxas de juros, agora muito mais altas, fizeram com que a dívida externa brasileira chegasse a níveis inimagináveis. As exigências do FMI e as condições para seu refinanciamento sufocaram não só a economia brasileira, mas também a economia de todos os outros países em situações parecidas.

A gestão de dívidas sempre foi uma das principais formas de subjugar. No Brasil, como de costume, a corda arrebentou para o lado dos mais fracos. O governo aumentou impostos e subiu a taxa de juros que, por sua vez, dificultou empréstimos e fez com que empresas fechassem ou diminuíssem os seus quadros de funcionários. Por outro lado, obrigado pelo FMI a cortar gastos, o governo também passou a demitir gente e a fazer menos contratos com companhias privadas. Quando essas fechavam as portas, engrossavam o exército de desempregados sem nenhuma forma de assistência social.

Devido à incompetência ou talvez à inexperiência com condições tão adversas, o próximo passo das autoridades foi apelar para a emissão de moeda para honrar suas obrigações internas e externas, um caminho certo para a inflação. A inflação, que em pouco tempo se tornou galopante, diminuia ainda mais o poder de compra da população. A crise foi se alastrando como uma dor de dentes piorando a cada dia.

Com uma média mensal entre vinte a trinta por cento durante os 15 anos seguintes, a inflação no Brasil chegou ao acumulado de 20.759.903.275.651 por cento, um recorde mundial absoluto. Para se ter uma ideia do tanto que a situação ficou feia, caso meu pai não tivesse resguardado seu patrimônio, pelo mesmo preço que havia comprado nosso confortável apartamento em Ipanema no boom da bolsa nos anos 1970, alguns anos depois só poderia ter comprado um cafezinho num boteco de esquina.

No entanto, na FEA, professores e alunos viam essa turbulência de uma maneira diferente. Acontece que o seu departamento de Economia estava na linha de frente da oposição às políticas governamentais muito antes da crise começar. Vários de nossos professores haviam dado o alerta sobre os perigos à frente. Muitos brasileiros acreditavam que aqueles acadêmicos poderiam ser a salvação para o país naquela bagunça. Por isso, eles se tornaram figuras públicas, aparecendo direto em entrevistas e debates na televisão, publicando livros e escrevendo artigos de página inteira para os principais jornais do país.

 

Samba Perdido – Capítulo 16 – parte 01

Capítulo 16

 

“Apesar de você

amanhã há de ser outro dia. “

Chico Buarque

 

O Teatro Tereza Rachel em Copacabana, era uma das principais casas de shows do Rio no final dos anos setenta. Estava sempre lotado. Quase todos se apresentavam lá: Rita Lee, o Terço, Raul Seixas, A Cor do Som, Vímana – a banda de rock progressivo em que Ritchie, Lobão e Lulu Santos começaram – Moraes Moreira, Belchior, Alçeu Valença, Joelho de Porco, João Bosco entre vários outros. Não me lembro de quem era o show do qual estava saindo, só sei que com meus ouvidos ainda zunindo do volume ouvi alguém dizer.

“Caralho! Mataram o John Lennon a tiros em Nova York! Tá dando aqui na rádio!”

“Que é isso, tu tá maluco!?”

“Não! Tão dizendo aqui que um psicopata atirou nele quando estava saindo de casa!”

Todos ficaram em silêncio. Ninguém conhecia o cara, talvez estivesse de sacanagem. Mesmo assim, fomos para casa com aquilo rodando na cabeça. Na manhã seguinte, os jornais confirmaram. Naquele dia o planeta parecia estar de luto. Mais que um artista, John Lennon representava uma postura uma promessa, como que podia ter terminado daquela maneira? E por quê? 

Na televisão repórteres no Brasil inteiro e no exterior entrevistavam pessoas comuns nas ruas e artistas famosos, todos com olhos lacrimejantes. Para mim, essa separação final dos Beatles parecia, de alguma forma inexplicável, ter conexão com a minha experiência na subida para o Noites Cariocas e com uma outra notícia – a prisão de alguns amigos de escola por posse. Para completar, havia o drama familiar da repentina separação entre Sarah e seu noivo de longa data. Era como se uma onda de mudanças negativas estivesse encobrindo a todos.

Por outro lado, no contexto mais amplo havia uma onda de mudanças mais positiva. A classe média brasileira estava começando a reconhecer que a falta de alternativa para o regime militar era um problema. A gota d’água tinha sido a prisão, a tortura e o assassinato mal disfarçado como suicídio em 1977 do jornalista Vladmir Herzog, em São Paulo. Isto tinha desencadeado uma onda de indignação e protestos sem precedentes pelo país. Pela primeira vez depois do AI-5, várias lideranças políticas, culturais e mesmo religiosas haviam expressado suas consternações. Esquecendo o medo, quase todos os veículos de comunicação tinham publicado estes protestos.

Havia mais. Agora que ninguém podia em sã consciência temer que o maior país da América Latina se tornasse um satélite soviético, o status dos generais brasileiros no exterior havia mudado. Apesar dos Estados Unidos ainda estarem apoiando ditaduras sanguinárias no Chile e na Argentina, seus lobistas e especialistas em America latina tinham passado a ver a ditadura desengonçada e corrupta do Brasil como um embaraço desnecessário.

Sentindo a mudança de atitude de seus apoiadores, tanto dentro como fora do país, os militares tomaram medidas conciliatórias. O gesto mais significativo acabou sendo justamente a concessão de anistia para a maioria dos exilados e dos prisioneiros políticos. Mesmo que isso os tenha ajudado a permanecer no poder por mais tempo, este gesto e a abertura política que veio a seguir foi uma vitória da oposição e marcou o início do ciclo democrático mais longo que o país viria a vivenciar. 

De volta ao Brasil, do dia para a noite, os dissidentes políticos passaram de assunto tabu a celebridades com status de herói. Estavam toda hora nos jornais, em programas de entrevistas na televisão e suas memórias se tornaram best sellers. Lendo-as, descobrimos que muitos, tais como a gente, eram jovens típicos da classe média carioca que tinham se deixado levar pela agitação política do seu tempo. 

Descobrimos também que alguns haviam passado períodos treinando como guerrilheiros em Cuba e em outros lugares fora do país. A seguir, discretamente se infiltraram no Brasil, onde pegaram em armas, assaltaram bancos e sequestraram gente importante. Depois que suas organizações foram reprimidas e ficou claro que a resistência armada à ditadura tinha fracassado, os que sobreviveram foram obrigados a repensar, no exílio ou na prisão, seus conceitos sobre militância e sobre como se posicionar num mundo sem revolução.

Após os festejos pelo seu retorno, tomando um rumo parecido com o adotado pelos artistas exilados, muitos dos anistiados se reintegraram à vida do país com agendas mais práticas. A maioria usou sua recém-adquirida popularidade para progredir na política convencional. José Genoíno, Fernando Gabeira e Carlos Minc, por exemplo, se tornariam senadores ou ministros enquanto Dilma Rousseff seria eleita presidente. Outros ex-exilados ocuparam lugar de destaque no processo de redemocratização. Entre eles o político veterano Leonel Brizola o ex governador do Rio Grande do Sul que viria a ser o governador do Rio de Janeiro, seu companheiro de chapa, o lendário antropólogo Darcy Ribeiro, o ex e futuro governador de Pernambuco, Miguel Arraes, assim como outros políticos mais ao centro, como o futuro presidente sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o futuro líder do PSDB, José Serra. 

Apesar de admirarmos todos e nos deleitarmos nas ondulações criadas pelos ventos democráticos, havia questões de identidade. A militancia heróica tinha se tornado uma coisa do passado. Mesmo assim, queriamos as mesmas coisas pelas quais tinham sacrificado a sua liberdade e, em alguns casos, a própria vida. Apesar da conquista da abertura política, a desigualdade econômica e o aparelhamento antidemocrático do estado continuavam. Sem intimidade com a democracia, achando que só uma revolução resolveria, do nosso ponto de vista estes ídolos estavam retornando ansiosos para se juntar a um sistema ao qual, pelo menos ideologicamente, estávamos resistindo. Era decepcionante ver muitos deles usando, sem um pingo de vergonha, o seu passado de lutas para promover suas carreiras num rumo que não tinha nada a ver com suas intenções iniciais.  

Deveríamos aceitar sua liderança, dar tudo por encerrado e concluir que éramos inúteis? Estava claro que para eles esse era o caso. Para nós a pergunta que não queria calar era a de como se posicionar. A ditadura havia simplificado as coisas; a escolha tinha sido entre ser a favor ou contra o regime. Dependendo do lado que você estava, você podia jogar a culpa por todos os males do mundo nos generais ou nos comunistas. Com o fim do governo militar agora no horizonte, havia novos desafios. As pessoas já não se sentiam tão convictas de suas opiniões e pareciam não saber lidar com as sutilezas da liberdade. Levaria algum tempo para que o país atingisse um estado de maturidade política.

Alguns copiaram os retornados e entraram em partidos convencionais, principalmente no recém-criado PT, o Partido dos Trabalhadores, uma das poucas opções de resistência preenchendo o vácuo existencial dos progressistas naqueles dias. O partido não tinha nada a ver nem com a resistência glamorosa dos ex-exilados e dos ex-presos políticos, nem com a postura anti-imperialista da Revolução Cubana. Proveniente de sindicatos na periferia de São Paulo, seu objetivo era proteger os direitos e os salários dos trabalhadores nos moldes do Partido Trabalhista Britânico quando começou.

Eu e alguns amigos até chegamos a ir em algumas reuniões para ver como é que era. Porém, por não termos nem “pedigree” operário nem “pedigree” na militância tivemos uma recepção fria. Na hora que a militância de raiz via cabeludos bronzeados da Zona Sul entrando no recinto, pensavam ou que eramos imbecis ou que eramos o inimigo. Nos outros partidos “underground” a rejeição era igual ou pior. Eram elitistas às avessas, herméticos e exigentes demais com seus novos recrutas. Os únicos “burgueses” bem-vindos nessas organizações ou eram celebridades ou era gente bem conectada que podia trazer votos e respeitabilidade, o que não era o nosso caso. 

Talvez não tínhamos maturidade para aquilo. Perdemos o tesão pela política. O conceito de eleições livres com partidos profissionais voltados para eleger quadros e exercer mandatos era difícil de digerir. Por outro lado, para os que eram contra a abertura política, o conceito de aceitar reveses eleitorais se provaria um de difícil assimilação. Para mim, acreditando que a luta deveria ser pautada na melhoria dos padrões de vida de cada indivíduo e não de uma classe, faltava a utopia e a visão humanista nos novos partidos. Está certo que vencer eleições e se organizar era fundamental, pero sin perder la ternura.

Naqueles tempos de reconstrução democrática só uma coisa parecia clara: os militares iriam tentar se agarrar ao poder por mais tempo que fosse possível. Com uma crise econômica no horizonte, todos sabiam que quando chegasse a hora de largarem o osso, o país estaria nas últimas. Isso colocava duas perguntas urgentes: em que estado o Brasil estaria e como seria a vida sem eles? 

*

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Samba Perdido – Capítulo 09

Capítulo 09

"O vento beija meus cabelos
 As ondas lambem minhas pernas 
O sol abraça o meu corpo 
Meu coração canta feliz..."

Ricardo Graça Mello - De repente California
 

Apaixonado pelo zen da bossa nova, Frank Sinatra tornou Ipanema famosa no mundo inteiro ao gravar Girl from Ipanema nos anos sessenta. Quando os anos setenta chegaram, tanto Frank Sinatra quanto a bossa nova e a visão romântica e inteligente que representava do Brasil não existiam mais. Agora, sob uma ditadura pesada tudo tinha mudado. Porém, por várias razões, o bairro acabaria sendo central não só a assimilação da nova realidade como também no resgate da naufragada democracia.

Não havia dúvidas que a Zona Sul do Rio era a encarnação do “milagre econômico” proporcionado pelo golpe militar. A vida da classe média, tanto no Bairro quanto no Brasil inteiro, ia de vento em popa. A economia estava crescendo a uma taxa anual na casa dos dois dígitos e com o tricampeonato do México ainda fresco na memória, havia um clima de euforia. Pelo país afora as vendas de carros, televisores, eletrodomésticos e passagens aéreas dispararam. Em Ipanema isso também foi o caso para discos, pílulas anticoncepcionais, roupas “transadas” e pranchas de surf.

Contudo, nas cabeças mais claras, havia a consciência de que essa recém-descoberta prosperidade só era possível graças ao empobrecimento de muitos e ao forte aparato militar garantindo a situação. Talvez por ser o endereço de formadores de opinião bem conectados, gente que não interessava à ditadura molestar, Ipanema se tornou uma ilha de pensamento crítico onde artistas e intelectuais boêmios se reuniam a noite em bares e festas.

No que agora era talvez o melhor bairro da ex-capital do país, a resistência começou cedo. Em 1969 um grupo de residentes lançou um jornal semanal satírico chamado O Pasquim. Essa publicação levaria à prisão por variados períodos de tempo muitos de seus colaboradores, mas seu sucesso também os colocaria na elite jornalística do país.

O Pasquim estava à frente do seu tempo: não somente se posicionava contra os militares, mas também ridicularizava a burguesia e seus valores com humor irreverente. Entre artigos e charges geniais havia entrevistas ótimas, muitas regadas a várias garrafas de whisky, com todo o tipo de personalidades: astros do futebol, artistas, políticos, juristas, atores e outras celebridades. Numa época de censura pesada, a publicação mostrava esses personagens por ângulos até então inexplorados, encorajando-os a falar de suas vidas particulares, suas opiniões sobre assuntos controversos como drogas e sexo e a confessar seus pecados. Entre os entrevistados havia também pessoas de quem a imprensa tradicional fugia, como Luiz Inácio “Lula” da Silva – que nos anos 1970 era apenas o líder de um “inconveniente” sindicato de metalúrgicos na periferia de São Paulo.

Sendo uma das raras vozes independentes do país, O Pasquim virou um gênero de primeira necessidade para brasileiros de consciência. Com isso, o semanário vendia muito bem em todo território nacional. Por ser do bairro, ele fez com que Ipanema adquirisse uma imagem arejada de boemia, liberdade e resistência. Embora não refletisse completamente a realidade, essa imagem seria fundamental para a forma como o Brasil lidaria com seu retorno à democracia.

*

Os principais beneficiários do “milagre econômico” eram sem sombra de dúvida as novas gerações. Sem compromissos  políticos e bem nascidos, introduziram muitas novidades em Ipanema. Figuras de cabelos compridos e sem classe social definida começaram a aparecer nas suas ruas. Traziam consigo um sentimento vivo que era ao mesmo tempo alienado e contestador. Garotas em camisetas sem sutiã passeavam com rapazes com o cabelo mais longo que o delas atraindo olhares horrorizados e curiosos de uma sociedade que, em sua maioria, ainda era conservadora.

Para aquela rapaziada, a vida era uma aventura. No mundo que estavam inaugurando, não havia a separação por “tribos”; a única coisa que importava era ser ou não ser “careta”. Se você não fosse, era possível surfar pela manhã, assistir a um show de música underground à noite, depois ouvir Led Zeppelin no toca-fitas do carro a caminho de uma discoteca e finalmente terminar a noite na Floresta da Tijuca fumando um baseado ouvindo uma fita do Caetano Veloso. Mundos, gostos e atividades se entrelaçavam na contestação existencial generalizada. Todos queriam ser diferentes de seus pais e do que a sociedade esperava deles. A vida era como uma caixinha de surpresas cheia de novidades, então, por que não experimentar todas? É claro que se você tivesse uma visão de mundo conservadora, o melhor que tinha a fazer era procurar outra turma.

Ao mesmo tempo, com Copacabana se tornando paulatinamente mais acessível e popular, uma nova onda de super-ricos migrou para Ipanema. Eles fariam com que a Avenida Vieira Souto, a sua via beira-mar, o endereço mais caro do país. A rua comercial, dois blocos atrás, Rua Visconde de Pirajá, absorveu o momento e, ao lado de lojas caríssimas, exibia lanchonetes de estilo americano, fliperamas, lojas de surf e butiques com roupas psicodélicas. Enquanto isso, espalhados pelas ruas laterais, bares à moda antiga continuavam sendo o ponto de encontro da geração dos esquerdistas boêmios, que bebiam suas cervejas vendo milionarios passarem sendo dirigidos por choferes nos seus carros de luxo.

Certamente o grupo mais visível do bairro era o dos surfistas. Vestindo shorts e camisetas importadas do Havaí, tomaram conta das esquinas e fizeram de Ipanema uma Califórnia brasileira. Para ficarem louros como seus pares americanos, a moçada tingia os cabelos com parafina para pranchas de surfe ou com água oxigenada. Embora a intelectualidade e o dogmatismo político os afugentassem, acreditavam que estavam resistindo ao sistema ao fazer tudo o que lhes desse na cabeça – essencialmente drogas, sexo, rock e surf. As novas garotas de Ipanema, a segunda geração a ser libertada pela pílula, desfilavam seus corpos torneados no território dos surfistas – a praia – dando origem mundial à tanga, ou biquíni fio-dental.

*

Em 1973 houve uma forte queda nos mercados de ações do mundo inteiro devido ao repentino aumento no preço internacional do petróleo. As bolsas brasileiras também despencaram e pessoas que haviam feito fortuna rapidamente perderam tudo do dia para a noite. No entanto, Rafael teve a sorte, ou a experiência, de vender suas ações dias antes do colapso.

Para a família, essa tacada foi como ganhar na loteria. A crise repentina levou a uma queda substancial no preço dos imóveis cariocas e com bastante dinheiro na mão, meu pai conseguiu comprar um apartamento em Ipanema. Foi assim que nos mudamos para a Rua Nascimento Silva, a apenas algumas portas abaixo da casa de Vinicius de Moraes, o aclamado poeta da bossa nova.

O novo endereço significou um upgrade tanto em nosso status social quanto em nosso estilo de vida. Apesar do apartamento novo não ter uma varanda com vista para o mar como o que alugávamos em Copacabana, era bem maior e, mais importante, era nosso. Os antigos donos, um casal de velhinhos portugueses, tinham juntado duas pequenas unidades de sala e dois quartos em um apartamento grande. Uma cozinha espaçosa separava os dois lados; o de frente, ficou para meus pais e o dos fundos ficou para minha irmã e eu.

Gostamos de cara do novo bairro. Independentemente de ser o olho de um furacão de mudanças comportamentais, o seu dia a dia era muito mais agrádavel. Com exceção dos prédios de luxo imponentes de frente para o mar na Avenida Vieira Souto, em termos de arquitetura e de jeito, Ipanema parecia com uma versão sofisticada de uma cidade costeira. Suas construções eram mais baixas, mais recentes e menos pomposas, proporcionando um ar mais residencial e mais real. A praia era mais vazia e ainda tinha resquícios de vegetação original, as ruas eram calmas e arborizadas e havia sempre uma brisa gostosa passando entre o mar e a Lagoa Rodrigo de Freitas que ficava logo atrás do bairro.

*

Sarah e eu passamos da infância à adolescência nesse lugar que era certamente um dos melhores para se viver em todo o planeta. Agora, com cada um em seu próprio quarto, me vi livre do domínio da minha irmã. Com uma privacidade que até há poucos meses tinha sido coisa de sonho, a primeira coisa que fiz foi colocar pôsteres para marcar meu território, um do Jimi Hendrix e um outro com uma capa de disco psicodélico do grupo Yes.

Outra novidade foi que Renée finalmente teve que dar o braço a torcer e autorizou a compra de um televisor, talvez admitindo que a sociedade elegante estranharia aspirantes que não possuíssem um. Por ter horror ao aparelho – talvez porque a programação lhe roubasse o centro das atenções – ela mandou colocar a televisão no quarto vazio do nosso lado do apartamento.

Com uma TV em casa, minha irmã e eu nos integramos ainda mais no universo brasileiro. Agora, como qualquer outra pessoa, podíamos assistir às novelas da Globo, as principais produções culturais brasileiras da época. Embora me cansaria delas depois de um tempo, no início fiquei vidrado. Elas passavam cinco dias por semana: às seis da tarde tinha uma voltada aos jovens, às sete uma comédia para antes do jantar, às oito a grande produção para toda a família e às dez da noite uma produção mais adulta. Todas eram excelentes já que por conta das salas de cinema e teatros estarem perdendo espaço para a televisão enquanto a censura e a repressão política barrava de produções de nível os melhores escritores, atores e técnicos se viram obrigados a trabalhar nelas por falta de outras opções. Essa concentração de talento trouxe uma qualidade espantosa, e essas produções que se tornariam um sucesso nos quatro cantos do globo.

Se meu interesse pelas novelas dissipou rápido, esse não foi o caso com a pessoa que mais gostou da novidade: dona Isabel. Toda noite às sete, enquanto preparava o jantar, ela ligava o aparelho para ficar ouvindo seus dramas e seus momentos da cozinha. Essa trilha sonora só terminava na hora que ía dormir. A maneira que aproveitei o televisor foi outra. Agora podia assistir a jogos de futebol, programas de comédias como A Grande Família, Chico City e Os Trapalhões além de filmes e séries de TV importadas das quais todo mundo falava. Nas tardes de sábado curtia videos das melhores bandas internacionais no Sábado Som. De repente, deixei de ser um completo esquisito na escola.

*

Não demorou muito para a gente descobrir o motivo pelo qual os antigos donos tinham vendido o apartamento a um preço tão camarada; a pior gangue do bairro utilizava a entrada do prédio como sua base. Só um deles morava no prédio, noss fundos , mas de qualquer forma estavam sempre ali. Em pouco tempo gente passou a conhecer todos de vista da rua. Era evidente que todos aqueles surfistas cabeludos e sarados eram “dissidentes” de famílias de classe média. Era também evidente que eram vagabundos de verdade; não trabalhavam nem estudavam e não tinham respeito a qualquer tipo de autoridade. O pior para meus pais era que, ainda por cima, nos olhavam com desprezo por sermos tão tipicamente burgueses. Com a rebeldia dos anos 1970 na porta de casa, se sentindo sitiados por um bando de bárbaros, Renée e Rafael passaram a odiar toda e qualquer coisa que se relacionasse àquela subcultura.

Ainda que o minhas habilidades como pegador de jacaré tivessem melhorado muito nas ondas oceânicas do novo bairro, meu status praieiro era microscópio comparado ao daquela rapaziada, os bad boys no topo da cadeia alimentar de Ipanema. Eles controlavam não só as ruas, mas também as ondas na parte da praia conhecida como as “Dunas do Barato”, o Píer de Ipanema. Agora há muito destruído, o Píer foi erguido para a construção de um emissário submarino que levaria o esgoto de Ipanema até o alto-mar. A obra alterou as correntes e o leito marinho o que resultou em ondas incríveis, a ponto de a imprensa especializada internacional classificar aquele point como um dos melhores lugares para se surfar na América Latina.

O Píer acabaria produzindo os primeiros campeões brasileiros de surf. Um dos membros da gangue, o Pepê, foi o mais destacado deles. Ele se tornaria campeão mundial tanto de surf quanto de voo livre, e anos mais tarde sua popularidade o ajudaria a se eleger vereador e a abrir a barraca de praia mais conhecida do Rio. Porém, seu irmão mais novo e menos talentoso, o Pipi, levou um tiro depois que pulou para trás do balcão para agredir o dono do boteco que ficava na nossa esquina. No dia, estava voltando da escola quando vi o surfista de cabelo oxigenado sentado imóvel na calçada. Amparado por um amigo, ele estava esperando por uma ambulância com sua camiseta empapada de sangue grudada na barriga. Na manhã seguinte quando estava saindo de casa, o porteiro me disse que o Pipi tinha morrido no hospital.

*

Sempre que não havia ondas, a galera se reunia do outro lado da rua para andar de skate na rampa de uma garagem. Enquanto faziam suas manobras radicais, Deep Purple, Alice Cooper, Led Zeppelin e Black Sabbath bombavam num toca-fitas. Nenhum deles conseguia entender as letras das músicas, mas eu entendia cada palavra, o que, de alguma forma, me fazia participar do que estava rolando. Ficava assistindo as suas manobras da janela de nossa sala de estar como um garoto doente fica vendo as outras crianças brincarem pela janela da enfermaria. Naquelas tardes, as letras das músicas e o som das guitarras distorcidas flutuavam para dentro do apartamento junto com o cheiro de maconha. Ver baseados do tamanho de um charuto passar de mão em mão entre aqueles surfistas era como testemunhar um assalto a banco de uma posição privilegiada. Esse era o crime subversivo, o fruto proibido, sobre o qual as autoridades nos advertiam na televisão agora que o medo do terrorismo de esquerda tinha ficado para trás.

Todas as vezes que eu passava na frente daquela gangue, parecia ouvir o comentário: “Lá vai aquele magricelo veadinho”. Os momentos mais constrangedores eram quando ia de carro com a minha mãe para o clube e o porteiro tinha que pedir educadamente que os caras saíssem de lado para que pudéssemos deixar a garagem. Sob olhares de desprezo, passávamos com as janelas fechadas, minha mãe nos seus cinquenta e poucos trajando um uniforme de tênis que incluía uma minissaia branca e eu com as minhas pernas finas e meus trajes de futebol desproporcionalmemte grandes. Por causa daqueles caras, para o meu desespero, meus pais acabaram proibindo o surf. Por outro lado, aquela turma me forçou a provar, ainda que apenas para mim mesmo, que não era o bostinha que eles viam. Ainda estou tentando.

…  

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Samba Perdido – Capítulo 7 parte 2

O presidente recém eleito, Jânio Quadros, lembrava o primeiro-ministro britânico do pré-guerra, Neville Chamberlain na aparência e na bizarrice, mas compartilhava com Churchill a fama de amante da garrafa. As massas o adoravam mas, apesar de servir seus interesses, a elite o ridicularizava pelos seus trejeitos exagerados e por sua inteligência medíocre.

Quando assumiu, o ciclo de crescimento econômico iniciado pelo seu antecessor, o carismático Juscelino Kubistchek, estava dando sinais de cansaço. Depois da euforia veio a ressaca econômica e com ela o descontentamento das classes que mais tinham se beneficiado dos anos de vacas gordas: os trabalhadores e a classe média emergente.

A freada no ritmo da melhoria da qualidade de vida dos brasileiros causou uma guinada à esquerda na preferência ideológica do país. Havia uma influência cada vez maior de sindicatos e de organizações trabalhistas na vida pública. Esses novos elementos fizeram com que as elites ficassem nervosas.

Talvez Jânio não fosse o melhor presidente para lidar com a situação. Ele tentou, à sua maneira, conciliar a crescente divisão política proibindo biquínis nas praias para agradar os conservadores de direita e reconhecendo a Cuba Castrista para agradar a esquerda. Essa decisão ousada foi fatal; além de fazê-lo perder o apoio da bancada direitista, em especial da UDN, a União Democrática Nacional, responsável pela sua chegada na presidência, o gesto chamou a atenção dos Estados Unidos.

Pressionado para fazer reformas populistas de um lado e para freá-las do outro, sem apoio no congresso, em 1961, Jânio renunciou na esperança de que o país se unisse para exigir o seu retorno. Isso nunca aconteceu e seu vice-presidente João Goulart tomou posse. Jango, como era conhecido, tinha fortes ligações com movimentos sindicais e com governadores de esquerda, como Miguel Arraes em Pernambuco e Leonel Brizola no Rio Grande do Sul. Contrariando interesses poderosos tanto fora quanto dentro do Brasil, assim que assumiu, deu início a um projeto de nacionalização de setores importantes da economia, apostou na educação das camadas menos privilegiadas e contemplou políticas abrangentes para melhorar a distribuição de renda.

No pano de fundo estava a ainda muito recente Revolução Cubana. Confrontando a hegemonia dos Estados Unidos na a América Latina, o levante trouxe a Guerra Fria para o continente. Na opinião da esquerda, Cuba havia demonstrado que a região tinha a capacidade de gerir o seu próprio destino. Em contrapartida, para as potências dominantes, países governados por revolucionários rejeitando a sua tutelagem e focados em cooperação ao invés dos lucros de uma minoria eram inaceitáveis. Washington fez tudo para esmagar o exemplo, impondo um embargo comercial, ajudando exilados numa invasão fracassada e tentando assassinar seu líder. O único resultado dessa tática foi o de empurrar os cubanos cada vez mais para perto da União Soviética e essa aliança tornou uma América Latina socialista – ou mesmo comunista – uma possibilidade assustadora, porém bastante real.

Situações parecidas com a qual o governo de Jango ameaçava não eram novidade e haviam sido revertidas por golpes de estado. Os primeiros apareceram no Irã no início dos anos 1950 e no Iraque quando estes resolveram nacionalizar suas reservas de petróleo. Pouco depois, Colômbia, Venezuela, Guatemala, Síria e Nigéria entre outros países, sofreram o mesmo quando resolveram enfrentar a ordem econômica estabelecida. O que todos tinham em comum eram pactos entre elites locais e potências mundiais interessadas nas riquesas naturais dos países em questão.

No caso brasileiro, os Estados Unidos estavam determinados a manter o maior país da América do Sul “livre”. Com apoio americano, os poderosos iniciaram uma conspiração para garantir sua permanência no comando do país. Para tanto, seguiram a mesma receita que Rafael tinha presenciado na Alemanha nos anos 1930. O primeiro passo foi conquistar a opinião pública. Distorcendo a verdade e apostando nos preconceitos dos leitores, a imprensa envolvida passou a retratar uma crise profunda na economia e uma ruptura nos valores tradicionais da sociedade. Em paralelo, começaram a “denunciar” a desonestidade dos dirigentes e sua inabilidade em restaurar a ordem. Pessoas comuns passaram a acreditar na imagem contraditória de uma liderança ao mesmo tempo corrupta e disposta a impor uma ideologia totalitária, destruidora da propriedade privada e nociva à herança cultural e religiosa do país. Os “cidadãos de bem”; sensatos, trabalhadores e honestos passaram a ver o governo de Jango como um inimigo. Agora, precisavam de um salvador da pátria acima do sistema político viciado e corrupto demais para resolver os gravíssimos problemas. Em 1964, esse “salvador” seria o exército.

No início de Abril, tropas e tanques foram para as ruas das principais cidades do país, onde os militares “revolucionários” não encontraram qualquer resistência organizada que os desafiasse. Ainda que os líderes do “movimento” declarassem que seu objetivo fosse restaurar a democracia livrando o Brasil do comunismo, o país precisaria de mais de duas décadas para voltar à normalidade política.

Assim que tomou posse, o novo regime exilou o presidente Goulart e seus aliados, além de perseguir e prender personalidades públicas e ativistas de esquerda. Como é comum em golpes de estado, enquanto a atenção se voltava ao drama político, passaram uma legislação revertendo os direitos dos assalariados e privilegiando os interesses dos grandes grupos econômicos que patrocinaram a mudança de regime.

Apesar da indignação de intelectuais e de pessoas mais esclarecidas houve, no início, uma indiferença geral dentro da classe trabalhadora. Por outro lado, os militares encantaram a comunidade dos negócios, inclusive Rafael. Para eles, o Brasil precisava se modernizar, imitar os americanos e alcançar o seu potencial econômico: o gigante tinha que acordar. Com os militares, amigos do “mercado”, no poder e com a orientação e a simpatia do Tio Sam – que na época financiava prosperidade como uma arma para enfrentar os avanços da esquerda – haveria um final feliz onde todos iriam enriquecer.

*

Por suas mudanças terem beneficiado apenas os muito abastados, por não terem cumprido com a palavra de restaurar a democracia e pela corrupção ter aumentado em vez de ter diminuído depois do golpe, quatro anos mais tarde, em 1968, a sociedade civil brasileira se levantou em oposição ao regime.

Os protestos partiram de movimentos universitários inspirados na explosão do espírito revolucionário pelo mundo afora. Na mesma época, em pontos tão diversos como Paris, Chicago e Praga, a juventude estava tomando as ruas para reivindicar um mundo mais justo e mais livre. Embora a maioria silenciosa os considerasse sonhadores inconsequentes, as autoridades os levavam a sério. Tendo em conta o sucesso de vários movimentos revolucionários acontecendo na época, obcecados com a ameaça comunista e ouvindo ecos da Guerra Civil Espanhola, da Revolução Chinesa, da Revolução Russa e mesmo da Francesa, o complexo financeiro, industrial e militar acionou suas defesas.

No Rio de Janeiro a tensão estava borbulhando. Depois que a polícia baleou e matou um estudante, uma passeata 100 mil pessoas, incluindo artistas e intelectuais de peso, tomou conta da avenida Rio Branco no centro da cidade. Esta foi a maior manifestação contra um governo já vista no Brasil. A oposição se alastrou tão rapidamente que mesmo alguns deputados no congresso, agora tutelado pelos militares, passaram a criticar abertamente o governo.

A resposta do regime foi brutal; ignorando a constituição, publicaram o infame AI-5 – Ato Institucional Número Cinco – dissolvendo o congresso e o senado e dando total autoridade executiva e judicial ao presidente. Logo em seguida prenderam membros da oposição, líderes estudantis e jornalistas. A tortura tornou-se prática comum e quem pôde fugiu para o exílio.

Acuados, alguns estudantes passaram à clandestinidade e se juntaram às guerrilhas urbanas. Nelas, treinados em Cuba e em outros satélites soviéticos, organizaram bem-sucedidos assaltos a bancos e sequestros. Em 1969, depois do sequestro do embaixador americano no Rio e de ataques a bomba em quartéis militares, as autoridades intensificaram a repressão. Pessoas começaram a desaparecer, incluindo o filho do nosso médico de família. Por outro lado, núcleos embrionários de milícias revolucionárias partiram para o campo tentando emular a Revolução Cubana. Em uma ocasião, no começo dos anos 1970, o exército brasileiro enviou uma divisão de cerca de 10.000 soldados para capturar uns vinte jovens maoístas na remota região do rio Araguaia. As forças armadas acabariam por executar a maioria dos militantes capturados.

Esses eram tempos obscuros em que tudo era censurado: livros, peças de teatro, filmes e músicas. Os regime também controlava com rédea curta o conteúdo dos jornais e das estações de rádio e de televisão. Intuindo a tensão mas sem ter informações, as pessoas fantasiavam. Havia todo tipo de teorias circulando sobre o alcance do poder dos guerrilheiros, possíveis alianças militares com Cuba, China e União Soviética, ligas de camponeses prestes a invadir as cidades trazendo desapropriações e pelotões de fuzilamento para os ricos.

Como tudo na vida, quando a imaginação substitui a realidade nada de bom vem à tona. Nesse caso, tanto os militantes quanto seus repressores superestimaram o que minúsculos grupos de extremistas poderiam alcançar num país tão grande e tão complexo como o Brasil. Juntos, jogaram o país num período de trevas. A polícia e o exército montaram departamentos com amplos poderes para espionar a população e para coibir qualquer tipo de oposição. Entre eles estavam o SNI, o Serviço Nacional de Informações e o Destacamento de Operações Internas, DOI-Codi, em cujas dependências presos eram torturados, alguns até à morte. Também reativaram o DOPS, Departamento de Ordem Pública e Social, criado por Getúlio Vargas para esmagar seus adversários e agora utilizado para aterrorizar qualquer atividade contrária à ditadura.

*

O final dos anos 1960 foi um tempo politicamente intenso não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Havia uma forte consciência social, revoluções, guerras e guerrilhas pela liberdade e pela igualdade e um aprofundamento da guerra fria no planeta inteiro. Paradoxalmente, este foi o período de maior prosperidade econômica que o ocidente conheceu. Essa bonanza veio acompanhada de uma redistribuição de renda inédita e uma consequente ampliação gigantesca do mercado consumidor. Foi nesse contexto que o mercado jovem nasceu. Esta leva de novos consumidores abastados, filhos da vitória contra o nazi-fascismo, sem vínculos com o passado e ávidos por novidades, sacudiriam as bases dos valores tradicionais e inaugurariam o uso de inúmeras novas tecnologias.

A efervescência daqueles tempos afetaria a todos de uma maneira ou de outra. As novas gerações se veriam obrigadas a escolher entre serem agentes das mudanças ou serem defensores da situação. Muitos se esbaldariam na explosão de drogas ilícitas e no sexo livre facilitado pelo aparecimento da pílula anticoncepcional.

No Brasil, com a impossibilidade de se resolver as coisas pela via política, a contracultura surgiria como talvez a única alternativa de se manter vivo o germe da resistência fosse através da arte ou de atitudes. O slogan que sintetizaria aquele tempo foi “Seja marginal, seja herói!” do artista plástico Hélio Oiticica.

Considerada inofensiva pela repressão por não representar nenhuma organização política, a contracultura, além de conseguir manter uma certa distância da censura, tinha atrativos comerciais. Apesar do tempero subversivo, gravadoras e outros empreendedores da área cultural não hesitaram em explorar as oportunidades oferecidas por seu forte apelo, tanto artístico quanto ideológico, junto ao lucrativo mercado jovem. Essa aliança forçada entre revolução e lucro proporcionaria uma explosão de talento que daria luz a um dos períodos culturais mais criativos e pungentes da história, tanto nacional quanto internacional.

Apesar da repressão brasileira ter sido vitoriosa em abafar uma possível reviravolta política com censura, exílio, tortura e prisão, ela não contava com um porém; as ideologias de revolução tinham se tornaram dominantes na cultura jovem do mundo “desenvolvido”. Vindas dos mesmos países que patrocinaram o golpe, elas eram parte do pacote cultural apresentado à juventude privilegiada pela ditadura. Não dava para tapar o sol com a peneira. No país inteiro, qualquer pessoa munida com um dicionário tinha acesso às vozes dos contemporâneos estrangeiros, fosse em discos, livros, em revistas ou mesmo em filmes que conseguiam driblar a censura.

Embora a América fosse a maior responsável pela derrubada da democracia brasileira, sua juventude estava na vanguarda dessa rebelião. Eles tinham sofrido o seu próprio golpe com os assassinatos mal explicados do presidente John Kennedy, do seu irmão Bob Kennedy e do reverendo Martin Luther King, todos defensores de uma América mais próxima dos ideais libertários e progressistas dos seus fundadores. Isso, junto com a possibilidade de serem mandados para a Guerra do Vietnã – um conflito que visava tão somente manter os interesses americanos na região –  criou um enorme contingente de jovens inconformados.

A manifestação maior dessa onda contestatória aconteceu na música, mais especificamente o rock, que na época tinha um forte caráter revolucionário. O paradoxo de protestos nas ruas gerando uma demanda comercial por vozes subversivas, abriu espaço para ícones tais como Bob Dylan, Arlo Guthrie e Joan Baez. No Reino Unido, as superestrelas dos Beatles e dos Rolling Stones interessadas em atingir esse novo público e a dizer alguma coisa mais profunda do que canções românticas, juntaram forças com a rebelião. Ajudados por estratégias de marketing modernas e orçamentos milionários, expuseram a contestação no coração do sistema, num palco muito maior do que qualquer revolucionário de outrora jamais teria sonhado.

Talvez seja difícil de entender no cínico mundo de hoje que no auge das suas carreiras aqueles roqueiros genuinamente acreditavam que suas criações faziam parte de um movimento mais amplo para derrubar o status quo. A presença de novas tecnologias em sua música reforçou sua imagem de catalisadores de grandes mudanças. As possibilidades sonoras inéditas permitiram que o espírito revolucionário fosse espalhado nas guitarras distorcidas de gênios musicais como Jimi Hendrix, Jimi Page e David Gilmour, cujos solos forneceram uma trilha sonora – e mesmo um lado espiritual – a esse momento excepcional.

*

Essa foi a educação musical da minha geração. Eu tinha oito anos quando os Beatles se separaram; Led Zeppelin lançou Stairway to Heaven quando tinha nove; os Rolling Stones lançaram Exile on Main Street quando tinha dez e o álbum Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, foi lançado quando tinha onze. Para alguém de origem judaica tradicional crescendo numa uma ditadura militar, esses foram mísseis aterrissando no meu toca-discos. No entanto, igual aos programas matutinos do Haroldo de Andrade que ouvia quando criança, ninguém da família, nem a maioria dos meus amigos, conseguia entender como alguém poderia gostar daquele “barulho”. Dessa vez, nem a empregada estava do meu lado.

Apesar da incompreensão, era como se um circo mágico musical tivesse parado na esquina de casa. Queria fugir com ele. Não estava sozinho nessa busca, milhões de outros jovens pelo mundo afora também estavam sintonizados nessas mudanças. Muitos acabariam mais próximos uns dos outros do que das suas próprias famílias.

Trancados no quarto, ouvindo rock, se sentindo oprimidos por nossos pais e professores, meus irmãos de geração digeriam as palavras de ordem nos seus postos avançados. A mensagem era clara: resistir aos caretas, lutar para sermos nós mesmos e subverter os planos que o sistema tinha reservado tanto para nosso futuro quanto para o futuro do planeta.

No Brasil, a repressão acabaria percebendo que havia algo no ar mas não conseguia dizer ao certo o que era, muito menos sabia como lidar com aquilo. Podiam prender um hippie por fumar maconha, um militante por suas ações ou pelos seus livros, mas não dava para acabar com a insatisfação com a pequenez do mundo. Como nossos pais, torciam para que fosse fase de adolescente e que depois nos juntassemos docilmente ao rebanho.

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Samba Perdido – Capítulo 04, parte 1

Capítulo 04

 "Todos juntos vamos, 
Pra frente Brasil, 
Brasil! Salve a seleção” 

Hino da seleção - 1970

Em 1962, enquanto o mundo despertava para a década mais colorida do século vinte, Renée voltou do hospital com um filho, os Rolling Stones e os Beatles gravaram seus primeiros singles, o mundo quase começou uma Terceira Guerra Mundial, desta vez nuclear, por causa de mísseis soviéticos em Cuba, Adolf Eichman, o engenheiro do Holocausto, foi executado em Israel, João Gilberto e Tom Jobim fizeram a sua estreia americana no Carnegie Hall em Nova York e Marilyn Monroe morreu de overdose em Los Angeles.

No entanto, para a grande maioria dos Brasileiros, o que mais marcou aquele ano foi o segundo campeonato mundial da sua seleção de futebol. Se alcançar a glória no esporte mais popular do planeta eletrizava países “desenvolvidos” como a Itália, a Alemanha e a França, é difícil imaginar a explosão de orgulho nacional e de pura alegria que tomou conta do país. Aquele time mulato, vindo das ruas, se impondo no cenário internacional pela segunda vez foi uma injeção insubstituível de autoestima e de otimismo.

Depois do apito final que selou a vitória brasileira de três a um na final contra a Checoslováquia, no Chile, as comemorações tomaram conta das ruas e só pararam nas primeiras horas da manhã do dia seguinte. Como seria de se esperar, as batucadas de rua foram a alma do Carnaval fora de estação. Sambistas desceram dos morros lembrando ao “asfalto” que suas proezas instrumentais eram irmãs das proezas futebolísticas dos craques que estavam trazendo o título para casa. As comitivas de batuqueiros contavam com mulatas espetaculares se requebrando ao ritmo irresistível dos tambores. Bem antes dos biquínis fio-dental aparecerem nas praias cariocas, seus trajes já deixavam quase tudo à mostra, realçando seus movimentos ousados e deixando a moçada com água na boca. Acompanhando o samba, torcedores de todas as raças, idades e classes sociais extravasavam sua alegria. Inebriados pela vitória e regados pela cerveja, recordavam os gols dos heróis daquela campanha – Garrincha, Didi, Vavá entre muitos outros. Pelé havia se contundido e tinha ficado de fora.

*

Oito anos depois, em 1970, depois de uma decepcionante campanha em 1966 na Inglaterra, onde o país de Renée tinha se sagrado campeão, o Brasil estava a caminho do México para tentar o seu terceiro título mundial. Dessa vez, além de um time repleto de craques, entre eles um Pelé superpreparado e consciente de que esta seria sua última Copa, havia uma novidade: as transmissões televisivas. Graças a elas, a nação inteira poderia ver seus craques jogando ao vivo no estrangeiro.

Aproveitando o casamento de um evento tão popular com a nova tecnologia, o regime militar, instaurado já há seis anos, resolveu investir pesado na seleção. Com problemas de popularidade devido à crescente polarização econômica e ao endurecimento da repressão política, os militares queriam assegurar uma aposta vital de que o país se sagraria campeão.

A ideia era unir a nação em torno do futebol e, por via de maquinações midiáticas, associar as conquistas dos atletas a uma imagem positiva do regime. Foi assim que o país se viu mergulhado  numa febre de patriotismo, a chamada “corrente pra frente”.

Nos recantos mais remotos do país, milhares de vilarejos receberam seus primeiros televisores para que o povo pudesse fazer parte dos “noventa milhões em ação”, como dizia a canção oficial da seleção. Durante a Copa, seus moradores se amontoariam em torno desses únicos aparelhos, muitas vezes em praças de terra no meio do mato, para assistir o “escrete canarinho” em ação.

Pelo país inteiro, praticamente todo carro tinha uma fita verde e amarela amarrada à antena e todo estabelecimento ostentava pelo menos uma bandeira ou um cartaz da seleção, fosse de um jogador ou do time completo. Nossa rua, a Siqueira Campos, se juntou à comoção. Quase todo apartamento tinha uma bandeira pendurada da janela. Os moradores mais entusiasmados se deram ao trabalho de colocar milhares de bandeirolas coladas em fios que cruzavam de um lado a outro da rua, começando na praia e indo até seu final no morro da Saudade. O bairro todo fez igual e Copacabana se fantasiou para a Copa.

Ao mesmo tempo, em qualquer oportunidade, as estações de rádio e de televisão estimulavam o fervor futebolístico e o misturavam com mensagens pró-regime. Haviam adesivos colados por todos os lados com slogans como “Brasil: ame-o ou deixe-o” e “Deus é brasileiro”.

O que poucas pessoas sabiam é que o técnico do time, João Saldanha, apesar de um apaixonado pelo seu país e pelo talento dos seus jogadores, era um comunista dedicado que organizava reuniões do partido ilegal em sua casa. Porém, depois de Saldanha ter se negado a convocar Dario – o Dadá Maravilha –, um dos favoritos do presidente Médici, e de dar declarações políticas inconvenientes enquanto fazia a inspeção de um dos estádios onde o time ia jogar no México, os generais interviram. Eles ordenaram que Zagallo, um ex-jogador branco e de classe média que havia participado das campanhas vitoriosas de 1958 e 1962, o substituísse.

*

Graças às teorias conservadoras da minha mãe, eramos uma das poucas famílias no bairro sem um televisor. Para mim, com oito anos de idade e imerso até o pescoço na febre assolando todos os meninos brasileiros, aquela aversão à tecnologia era deseperadora. Já tinha perdido a oportunidade de ver o primeiro homem pisar na lua na casa de uns vizinhos porque era tarde demais. Porém me barrar de ver a Copa do Mundo seria cruel demais.

Rafael aliviou minha barra anunciando que iríamos assistir os jogos no apartamento do Paulo. Ainda que fosse um esquerdista convicto, seu amigo pertencia ao século vinte e possuía uma televisão, apesar da propaganda fascista, que na sua opinião, ela vomitava sem parar.

O primeiro jogo da Copa foi entre União Soviética e México. Todos consideravam esses dois times potentados menores do futebol mas, por alguma razão, assistir a cerimônia de abertura era uma obrigação para qualquer um que quisesse merecer o título de torcedor brasileiro.

No dia do jogo, para minha alegria e alívio, fomos lá. Depois da abertura espetacular, presenciamos o Paulo torcer para o time que levava estampada na frente da camisa a inscrição “CCCP” – a URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Recusando-se a pronunciar a palavra “soviético” muito menos “socialista”, o locutor se atinha a chamar o time de “Rússia” e mesmo assim mencionava o nome o menos possível provocando alguns resmungos da parte de nosso amigável anfitrião. Depois que o jogo terminou, voltei para casa empolgado.  A aguardada copa tinha começado e como o resto da nação não podia esperar pelas batalhas que estavam por vir.

O Brasil jogou sua primeira partida, contra a Checoslováquia, alguns dias depois. O jogo era à noite e em um dia de semana, muito tarde e um tanto incômodo para assistir na casa do Paulo. O jeito foi ouvir no rádio. Ignorando os protestos de minha irmã, meus pais permitiram que trouxesse meu radinho de pilhas para a mesa de jantar. Quando o jogo começou, liguei o aparelho coloquei o volume alto o suficiente para que pudesse ouvir e baixo o suficiente para que a Sarah aceitasse. Depois de uns dez minutos, para o desespero da nação verde e amarela, o adversário marcou o primeiro gol. As palavras secas do narrador cortaram o peito do Brasil como uma navalha. Lá fora o silêncio era tanto que parecia que o fim do mundo tinha chegado. A Sarah olhou para minha cara entristecida e debochou.

“Ha, ha, ha! Tomaram um gol, bem feito!”

Aquela provocação foi um erro. Xinguei ela de vaca e joguei minha coxa de frango na cara dela. Na hora meu pai me mandou para o quarto. Fui com o rádio feliz da vida, pelo menos lá, poderia ouvir o resto do jogo sem a interferência de uma menina. Logo depois, para alívio geral, o Brasil marcou seu primeiro gol, virou a partida e terminou ganhando por um convincente quatro a um.

*

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