por Richard Klein | 11 jul, 2020 | Brasil, Comportamento, Crônica
Capítulo 12
“... aí eu vou misturar
Miami com Copacabana,
Chiclete eu misturo com banana
E o meu samba vai ficar assim...”
Jackson do Pandeiro – Chiclete com Banana
Apesar do fiasco na Escola Britânica ter quase acabado com o projeto de estudar cinema no exterior, ele continuou. A única alternativa que sobrou no Rio de Janeiro foi a Escola Americana ou a EA (pronunciada i-ei por todos que a conheciam). Inegavelmente era um melhor e mais sólida para adolescentes e ainda tinha a vantagem de que os cursos iam até a idade pré-universitária. O currículo, porém, era inteiramente voltado ao sistema americano. Quando me formasse teria que fazer faculdade nos Estados Unidos. Por todas serem privadas, isso custaria uma fortuna. Ao contrário, se fosse estudar no Reino Unido, muitas das melhores universidades eram praticamente gratuitas e melhores do que a maioria das Americanas. Ciente como nunca de que estávamos, mas não éramos, ricos, Rafael aprovou a decisão salgada. Um detalhe preocupante era que se mudasse de ideia e resolvesse permanecer no Brasil a escola não preparava para o vestibular.
O início foi desconcertante. O colégio possuía tudo o que se poderia esperar de uma High School americana: garotas e garotos ruivos e loiros falando inglês anasalado, um campo de baseball, uma equipe de futebol americano e a competição social inerente àquele tipo de instituição. Cobrindo o morro logo em frente a favela da Rocinha, a maior do mundo, era um lembrete de que aquele terreno enorme abrigando prédios futurísticos era o foco de um vírus estrangeiro.
O lado pedagógico da EA era tão avançado quanto sua arquitetura apesar das aulas serem ridiculamente fáceis. Não havia uniforme, construíamos nosso próprio currículo e estudávamos com diferentes alunos em diferentes salas de aula. Havia uma área de fumantes para os estudantes e vários professores, todos americanos e muito profissionais, tinham cabelos compridos, algo que nenhuma outra escola no Rio tinha nos anos setenta.
Numa cidade influenciada pela cultura Estado Unidense, em matéria de curtição, a escola era o Olimpo para a juventude da Zona Sul carioca. Quem havia introduzido o surfe, os biquínis e a maconha à cidade tinha estudado ou estava estudando ali. Meus colegas de turma eram filhos dos estrangeiros poderosos enviados para assegurar que a filial seguisse de perto as diretrizes da matriz na construção do “Novo Brasil”. Essa mentalidade colonial era visível na maioria dos estudantes e eu tinha que tomar cuidado para não absorver o sentimento generalisado de superioridade em relação aos brasileiros.
A maior parte dos colegas não era santa e estava vivendo junto com suas familias os melhores momentos de suas vidas. Longe de sua terra, os pais ganhando mais do que estariam ganhando em casa e onde tudo era mais barato, a rapaziada fazia todas as coisas erradas que outros da mesma idade faziam, mas com a vantagem de poder contar com a IBM, a Merck ou a Esso para intervir quando as aventuras terminavam mal. Esse tipo de impunidade era normalmente reservada apenas às famílias locais do mais alto escalão.
A elite da escola se conhecia bem por meio das festas, dos clubes e das organizações que seus pais participavam. Era fácil excluir os que não faziam parte da roda. Com o status de brasileiro, não-surfista, não-sarado e filho de um judeu idoso dono de um pequeno negócio, me barraram na hora. Os que faziam parte daquela turma tinham imaculados pedigrees americanos ou europeus, irradiavam autoconfiança, eram atléticos e pareciam arrasar em qualquer atividade física na qual se envolviam, menos no futebol. É claro que as meninas só davam bola para eles.
Aquela galera levava um estilo de vida difícil de se imaginar. Para começar, a maioria tinha barcos a sua espera na marina do Iate Clube do Rio de Janeiro. Muitos moravam em casas espaçosas, uma raridade mesmo naquele tempo. Os que moravam em apartamentos, viviam nos melhores endereços da cidade como as avenidas beira-mar de Ipanema e do Leblon, a Vieira Souto e a Delfim Moreira. Sempre que era convidado para suas festas ou para passar um tempo com algum deles, pensava comigo mesmo: “Então são essas as pessoas que moram aqui!” Aquela turma tinha acesso a coisas que eram ficção científica: videogames (algo que quase ninguém tinha na época), pranchas de surf e skates importados, discos de todas as bandas imagináveis e os melhores equipamentos de som disponíveis nos Estados Unidos. Seus fins de semana, quando não passados velejando num iate, eram passados em casas de veraneio que pareciam saídas de revistas especializadas e isso nas melhores localidades. Lá utilizavam todos os seus brinquedos.
Como se isso não bastasse, suas mesadas em dólar eram muito maiores do que o que eu recebia em um ano inteiro, que, por sua vez, era mais do que um salário mínimo. Meu pai tinha ganho bastante dinheiro extra com sua jogada na bolsa, mas comparados a essas famílias éramos pobres.
Os poucos amigos que fiz estavam numa situação parecida. No entanto trouxeram uma novidade: fumavam maconha. Depois que ficaram sabendo que tocava violão e dos meus gostos musicais não demorou muito para que me convidassem a descobrir qual era o motivo de tanto barulho.
Minhas primeiras tentativas foram decepcionantes. “Cara, cadê? Esse bagulho não era bom pra caralho? Já é o segundo e nada!”
“Calma, Rique, não bateu porque você está nervoso. Vou colocar um Pink Floyd para relaxar, Dark Side of The Moon. ”
“Tenho em casa, sei até tocar Time no violão.” Paranóico de que minha tirada de onda tinha caído mal, mudei de assunto. “Será que não bateu porque tossi demais?”
Aquilo foi a chave de ouro para a minha pagação de mico e todos caíram na gargalhada.
Rod, um cara que não ia com a minha cara, conseguiu parar de rir e falou. “Não falei que esse cara é muito louco?! Não bateu porque ele tossiu demais!!” E as gargalhadas voltaram.
Na terceira ou quarta sessão, tomando mais cuidado para não falar bobagem, fiquei na minha e de repente a ficha caiu que estava muito chapado.
“Caralho, cara, esse som tá muito bom!!”. Os caras olharam para mim esperando que eu falasse mais besteira. Levantei, olhei em volta me sentindo diferente e emendei. “Porra!!! Eu tô doidaço!!”. Dessa vez todos riram comigo.
A experiência não foi como tinha esperado, não havia unicórnios galopando pelo ar e as coisas não tomaram cores psicodélicas. A única mudança foi que a gente continuou rindo sem parar sem motivo nenhum enquanto trocavamos discos de bandas obscuras na vitrola. Sem dúvida, a onda dava uma dimensão diferente às coisas. Talvez por estar aprendendo violão, o efeito da fumaça deixava nítida as diferentes camadas da música. Eu parecia compreender o que se passava na cabeça dos músicos quando as criaram e quando as gravaram.
Enquanto a turma ficou inventando mentiras sobre ácido, heroína e maconhas mais potentes, falei que tinha que ir ao banheiro e fui curtir a novidade dando uma volta pelo apartamento. Os pais do dono da casa, Fred, tinham viajado e a casa estava vazia. Fiquei vagando no escuro pela sala de estar enorme vendo pinturas na parede, esculturas e plantas decorativas. Tudo tinha adquirido uma beleza que nunca teria notado em meu estado normal.
Quando voltei, já estavam fumando outro.
“E aí, Rique? ”
“Cara, esse negócio é muito bom! Me passa essa porra aí!” e todo mundo caiu de novo na gargalhada.
Depois daquela noite entrei numa sintonia diferente tanto na escola quanto na praia, no clube e em casa: agora pertencia a um clube secreto. Coisas e pessoas que nunca tinha entendido passaram a fazer todo sentido. Participar dessa realidade paralela era como a conquista de uma nova identidade. Na minha cabeça, meus pares em outras rodas, o Maurício, o Jaime e o Léo estavam morrendo de vontade de fazer o mesmo mas não tinham coragem.
O lado negativo foi que passei a levar uma vida dupla. Não disse nada para os meus outros amigos, muito menos para os meus pais. Os dois Riques não se misturavam, para um grupo continuei sendo o mesmo de sempre só que com sumiços e momentos estranhos, para o outro era um iniciante estabanado. Logo descobriria que a maconha era um repelente contra as garotas, mas e daí? Nunca iria conseguir nada com as beldades da Escola Americana mesmo.
…
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por Richard Klein | 23 maio, 2020 | Brasil, Comportamento, Crônica, Literatura
Capítulo 07
“... choram
A nossa pátria mãe gentil,
Choram Marias e Clarices,
No solo do Brasil.”
Aldir Blanc – O Bêbado e a Equilibrista
Numa época em que Brasília ainda era um lugar onde ninguém queria morar e que São Paulo ainda estava se firmando como o pólo econômico do país, o Rio de Janeiro era de longe a cidade predileta dos expatriados no Brasil. Lá eles viviam muito bem nas margens da elite social carioca. Embora os dois grupos morassem e trabalhassem lado a lado, se vissem como equivalentes sociais, tivessem ambições parecidas e até os mesmos preconceitos, não se frequentavam, não eram sócios dos mesmos clubes, tinham interesses distintos e encaravam a vida de modos bem diferentes.
Talvez corretamente, a maioria se sentia num contexto colonialista. Porém, apesar das origens diversas, tinham em comum um olhar crítico vindo de realidades sociais e econômicas mais avançadas. Unanimamente achavam que, apesar dos esforços de modernização, a gritante desigualdade social caracterizava mais do que tudo o atraso do seu país de adoção.
O que mais os chocava era a atitude dos privilegiados perante o fosso medieval que os separava do povão e sua suposição de que isso fosse meritocrático e um fato imutável e natural. A contra gosto, ou em alguns casos com deleite, aprendiam logo que a única maneira de se conviver com essa disparidade era encarar os menos favorecidos como seres inferiores e facilmente exploráveis; tão ignorantes que nem conseguiam perceber, quanto menos entender, o óbvio.
A herança escravista, entranhada na formação do país e normalizada no seu cotidiano, criava uma ilusão de resignação cordial por parte da população humilde. Porém, observadores mais aguçados percebiam logo a resposta sutil porém onipresente. Ela vinha dissimulada na forma da malandragem; na falsa reverência, na palavra certa para se sair bem de uma situação difícil, no jeitinho, na desonestidade pequena o suficiente para não ser pego e no oportunismo. Apesar de não ser ódio de classe, apenas instinto de sobrevivência, essa atitude era um terreno fértil para a consciência de classe.
Confortáveis com esse teatro, Renée e Rafael mantiveram uma distância segura desse aspecto da vida brasileira. Caberia a minha irmã e a mim se adaptar sem orientação a esses códigos – ou à falta deles.
Meu despertar foi brusco.
*
O conhecidíssimo Clube de Regatas do Flamengo fazia parte de um enclave de vários clubes de classe média alta localizados no coração da Zona Sul carioca. Como os demais, ficava às margens da imunda, porém belíssima, lagoa Rodrigo de Freitas e próximo ao nosso próprio Paissandu, ao Clube dos Caiçaras, ao Clube Monte Líbano, à Associação Atlética Banco do Brasil, ao Clube Piraquê, ao Clube Militar, ao Jockey Club e à Sociedade Hípica Brasileira.
O Flamengo era o maior deles. Era popular não só por causa da imensa torcida do seu time de futebol mas também por ser o mais acessível financeira e socialmente na vizinhança. Apesar de não oferecer quadras de tênis nem áreas exclusivas, numa época sem academias de ginástica, ele era o único a possuir instalações esportivas de qualidade. Essas instalações incluíam um pequeno estádio de futebol – onde craques como Júnior e Zico treinavam – uma área dedicada ao remo, salas de musculação, saunas e duas piscinas olímpicas onde alguns dos melhores nadadores brasileiros haviam se formado. Era lá que tinha aulas de natação três vezes por semana.
Após as aulas, voltava a pé para o Paissandu que ficava no quarteirão de baixo. Apesar do tráfego constante e da caminhada ser curta, era considerada perigosa, propícia a assaltos. As calçadas eram desertas; não haviam lojas, escritórios ou qualquer tipo de vida pública ao redor, somente muros altos de concreto protegendo os clubes. Dito e feito, um dia no caminho vi três garotos que pareciam favelados se aproximando com a cara fechada. Pressenti o perigo, mas como não tinha para onde correr, olhei para baixo e fui em frente.
Quando a gente se cruzou, o mais alto e mais velho deles parou na minha frente, me olhou de cima e perguntou, “O que é que tu tem dentro dessa bolsa aí, playboy?”
“Nada, tô voltando da minha natação.” respondi preparado para o inevitável.
Sem se dar ao trabalho de me ouvir ele foi logo dizendo: “Me dá essa porra aqui!”
Ainda tentei segurar a bolsa, mas um dos outros dois me deu uma rasteira. Já no chão, vi os três desaparecendo na esquina com meus pertences.
Havia somente uma toalha molhada e uma sunga dentro, mas o sentimento de impotência por não ter sido forte ou corajoso o bastante para reagir foi traumático. Cheguei no clube em prantos. Quando minha mãe me viu, baixou o seu instinto de indignação britânica e fomos direto prestar queixa na delegacia de polícia que ficava do outro lado da rua.
Entramos lá, eu envergonhado de ter chorado e a Dona Renée exalando o seu ar de superioridade. Assim que entrou, exigiu que o recepcionista desinteressado nos levasse para falar com o delegado. Fomos com ele ao andar de cima e depois de uns minutos na sala do chefe, o auxiliar saiu e nos mandou entrar. Talvez em resposta à insistência arrogante da minha mãe, o delegado nem se deu ao trabalho de se levantar e pediu que a gente se sentasse para explicar o que estavamos fazendo ali. Sem esperar que terminássemos, quase nos ignorando através dos seus óculos escuros, o homem barrigudo, moreno e de bigode espesso deu um suspiro impaciente, abriu uma gaveta e atirou na nossa frente um álbum com fotos de bandidos perigosos para ver seu eu reconhecia algum.
Ele olhou debochado para a minha mãe e depois para mim. “Aqui tem fotos de assaltantes à mão armada. Reconhece algum?” Ele foi virando as páginas. “Este aqui a gente pegou num assalto no ano passado, mas soltaram ele há pouco tempo. Foi ele?”
Fiz que não com a cabeça.
“E este aqui? Assaltante de banco, reconhece?”
Depois da sessão de humilhação, com a desculpa de que tinha coisas importantes para fazer, o policial pediu para que a gente se retirasse sem sequer prometer que iria tentar fazer alguma coisa.
*
A delegacia era uma construção amarela desbotada que mais parecia uma casamata. Em cima da entrada, tinha uma insígnia com a inscrição “14ª Delegacia de Polícia” explicando a todos o que era aquele prédio destoante. Na sua calçada de terra batida sempre havia várias viaturas estacionadas. Do outro lado da rua, ficava uma igreja mal cuidada na esquina de um beco, a Cruzada São Sebastião. Nele se encontrava o único conjunto habitacional da vizinhança. Esse era, sem sombra de dúvida, o lugar mais perigoso do Leblon; para nós uma zona proibida.
Seus moradores eram remanescentes da favela da Praia do Pinto, que até meados dos anos 1960 ficava no meio de todos aqueles clubes requintados. Pouco depois do Golpe Militar de 1964, após tentativas “pacíficas” de remover os habitantes, as autoridades militares autorizaram que ateassem fogo aos barracos. Após a destruição, o terreno foi convenientemente repassado a empreiteiras camaradas limparem e aterrarem a área para depois construírem edifícios elegantes. As famílias que se mudariam para lá seriam na sua maioria de militares de médio escalão.
Os ex-favelados que se recusaram a mudar para subúrbios longínquos foram transferidos para o outro lado da rua onde, além da igreja, construíram aquele projeto social de prédios de oito andares. Suas novas acomodações rapidamente adquiriram um ar dilapidado que junto com a sua arquitetura minimalista, fizeram o lugar parecer um complexo penitenciário. A barra ali era pesada. Além dos locais, só camburões e outros veículos policiais se aventuravam beco a dentro.
Na calçada oposta às construções, havia um muro alto coroado por uma grade coberta por arame farpado. Ele separava aquele território de raiva engasgada de nosso campo de futebol de salão no Clube Paissandu.
Era lá que jogávamos nossas peladas na mesma hora em que os meninos da Cruzada jogavam as deles. Dava para ouvi-los claramente. Volta e meia alguém exagerava numa bola dividida ou num chute forte sem pontaria e a nossa bola ia parar do outro lado do muro. Quando isso acontecia, a gente dava a partida por encerrada já que a bola quase nunca voltava. Como revanche, o mesmo valia para as deles que a gente só devolvia se tivessem devolvido a nossa recentemente. Aconteciam ocasionais trocas de pedras e de palavrões e, às vezes, meninos mais atrevidos subiam no muro para nos ameaçar, porém quando faziam isso, se tornavam alvos fáceis para boladas.
*
Garotos como aqueles da Cruzada e como meus assaltantes trabalhavam no Paissandu como boleiros de tênis. Muitas vezes seus pais trabalhavam no clube também. Sem exceção, eram mais bem preparados fisicamente do que o mais forte e o mais bem preparado de todos nós. Às vezes combinávamos de jogar contra eles, mas era o mesmo que ficarmos sentados aprendendo com a sua magia futebolística legitimamente brasileira.
Apesar de, entre a gente, fazermos piadas do seu português errado, dos seus tênis furados e da sua ignorância, os respeitávamos em segredo. A verdade era que todo homem da classe média carioca tinha inveja do arquétipo do homem negro da favela, admirado por ser bom de bola, de briga e de samba, idealizado como viril, com um monte de gostosas de todas as cores e classes sociais correndo atrás deles. A única característica “positiva” que lhes faltava era, é claro, a nossa educação cara e a nossa pele branca.
Em nossa bolha, era fácil esquecer que aqueles que víamos como favelados eram a maioria absoluta da população carioca. Apesar disso, não tinham o mesmo grau de cidadania e somente adquiriam respeitabilidade como estrelas do futebol, artistas e mais tarde, para alguns, como traficantes. Senão, eram elementos secundários nos nossos lares, nos nossos clubes, nas nossas escolas, nos escritórios, nas repartições públicas e mesmo na praia, como vendedores ambulantes. Nas horas de lazer eram passistas de escolas de samba, frequentadores de praias longínquas, pedintes e assaltantes. Para alguns, quase todos eram marginais esperando para serem presos, fazendo por merecer o seu destino por serem preguiçosos, desonestos e depravados. A atitude parecia com a dos brancos para com a população negra na África do Sul durante o apartheid.
*
As empregadas domésticas – resquícios da época da escravidão, terminada apenas 74 anos antes de eu nascer – encarnavam a ligação entre os dois mundos. Todo mundo que conhecia tinha pelo menos uma. Todo apartamento, por mais modesto que fosse, vinha com uma área de serviço para elas. Uniformizadas, essas mulheres limpavam a nossa casa, lavavam a nossa roupa, cozinhavam a nossa comida e comiam nossas sobras. Quando chegava a noite, se isolavam nas áreas de serviço e iam dormir em quartos abafados e sem janelas tendo como confortos ventiladores pequenos, crucifixos na parede e rádios baratos. Do lado de fora, tábuas de passar, vassouras e roupas sujas as aguardavam para o dia seguinte.
Quando era pequeno, uma das várias domésticas que passaram por nossas vidas colocava seu emprego em risco trazendo seu filho em segredo para morar escondido em nosso apartamento nos dias de semana. De acordo com o rígido código de conduta, isso estava totalmente fora dos limites. Eu era novo demais para conhecer tais regras e me tornei o único da família a saber da presença do meu amigo secreto que me seguia por todo lado, mas que se escondia atrás das cortinas quando o resto da família estava em casa. Um dia Renée descobriu o garoto e não teve dúvidas nem tolerância: despediu a mulher no ato. Essa atitude severa estava de acordo com a ética da época e do lugar. Todos os vizinhos e amigos apoiaram a decisão.
Por outro lado, nossa última empregada, Dona Isabel, ficou conosco por mais de vinte anos. Ela era a versão brasileira da Mamãe Dois Sapatos, a doméstica do desenho animado Tom e Jerry – negra retinta, baixa e troncuda, com um traseiro gigantesco que balançava pesado em cima de suas pernas grossas e tortas. Por conta da convivência diária, era comum que surgissem laços afetivos entre as domésticas e gente da família e, certamente, esse foi o caso de Dona Isabel com a Sarah e eu. A considerávamos como uma segunda e mais compreensiva mãe. Mesmo assim, o reconhecimento tácito de sua condição estava sempre presente. Enquanto trabalhou com a gente nunca se sentou conosco na sala de estar como também nunca saímos juntos. Tudo o que sabíamos a respeito da sua vida particular é que vivia num subúrbio afastado com um “sobrinho”, que tinha crescido em uma fazenda em Minas Gerais, que encontrava consolo no Candomblé e que tinha trabalhado para o líder integralista Plínio Salgado. O engraçado é que apesar de não saber nem ler nem escrever, esperta, ela aprendeu a entender inglês e volta e meia nos surpreendia com frases na nossa língua.
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