Israel à Encruzilhada: Entre a Segurança Nacional e a Sombra da Extrema-Direita

Knesset
Parlamento Israelense

Knesset – Parlamento Israelense

Desde o dia 7 de outubro, quando o conflito com o Hamas assumiu novas dimensões, Israel encontra-se também numa batalha interna — um confronto com as políticas de uma liderança que flerta perigosamente com a extrema-direita. A crítica torna-se imperativa, pois cada decisão política reflete o destino da nação.
O reflexo dessas políticas é palpável nas ruas, nos lares e, em especial, na vida daqueles que defendem o país. Os sacrifícios dos soldados, que deveriam ser reverenciados, veem-se comprometidos quando politicamente instrumentalizados por agendas que não contemplam a integralidade do povo israelense.

As políticas de segurança, essenciais à proteção nacional, suscitam questionamentos quando parecem perpetuar um ciclo de violência em vez de buscar soluções duradouras. A prevalência do militarismo sobre o diálogo ameaça a democracia, que é vital para Israel.
A atual gestão caracteriza-se por uma retórica que exacerba divisões, fomentando terreno propício para o extremismo, impactando não somente as relações diplomáticas, mas também a coesão social do país.
A capacitação e equipamento de colonos, sob a liderança vigente, requerem escrutínio crítico. Quando a segurança serve de justificativa para ações que podem sabotar a paz, é momento para ponderação.

O exército israelense, pilar da soberania nacional, encontra-se numa posição delicada, em que estratégias defensivas podem ser eclipsadas por motivações políticas, maculando o propósito de sua missão.
A ala de extrema-direita, fortificada pela administração atual, ignora que o fortalecimento militar não equivale à segurança duradoura. Na ausência de uma visão pacífica, medidas bélicas são apenas soluções temporárias e dolorosas.
A política externa deste governo tem fomentado desconfiança entre aliados, corroendo a imagem de Israel como nação comprometida com a paz e o progresso humanitário.

Questiona-se: os líderes israelenses estão tão empenhados na proteção do país quanto aqueles na linha de frente?
As estratégias de segurança nacional devem preservar não só o presente, mas também o futuro pacífico almejado. Sob influência da extrema-direita, no entanto, parecem míopes, confinadas ao imediatismo.
Onde se esperaria um caminho para a paz, a atual administração pavimenta uma trajetória de resistência e antagonismo, substituindo o diálogo pela força, o entendimento pelo conflito.

Nos discursos acalorados de líderes que deveriam unificar, prevalece um tom divisor, estabelecendo uma dinâmica de “nós contra eles”, deteriorando a unidade interna de Israel.
O tratamento das minorias por este governo é alvo de preocupações significativas, demonstrando uma desconexão com os valores de inclusão e respeito.
Decisões que favorecem a expansão territorial em detrimento da estabilidade e harmonia deixam a impressão da extrema-direita, marcada por tensão e divisão.

A juventude de Israel, ao observar o cenário vigente, interroga-se sobre o legado que está sendo edificado e que país herdarão.
A narrativa adotada pela liderança atual está recheada de contradições, onde a defesa da democracia é proclamada, mas as ações frequentemente a subvertem.
É imperioso que as vozes críticas se façam ouvir numa sociedade que preza pela democracia e liberdade. As políticas de Netanyahu e seu círculo devem ser confrontadas com análises criteriosas e manifestações ativas.

O futuro de Israel pende numa balança, com a paz e a segurança de um lado e, de outro, políticas que incitam a divisão e o conflito. A escolha deve inclinar-se pela paz, enquanto ainda há alternativa.
A oposição à administração atual emerge tanto externa quanto internamente. Cidadãos conscientes reconhecem a necessidade de segurança, mas também aspiram à justiça e equidade. Famílias anseiam educar seus filhos num ambiente pacífico, não num contexto de perpétuo conflito.

As medidas governamentais relativas aos colonos parecem priorizar a expansão territorial em detrimento da segurança coletiva.
A política de assentamentos é um dos tópicos mais críticos e controversos da gestão atual, muitas vezes desconsiderando as consequências a longo prazo para a sociedade israelense.
A cada iniciativa para armar e treinar mais colonos, aumenta a inquietação nas comunidades que percebem uma escalada de tensões ao invés de passos em direção à conciliação.

Os sacrifícios dos soldados são desvalorizados quando sustentam políticas que não refletem os valores essenciais de Israel, uma nação forjada na aspiração à paz e resistência à opressão.
A extrema-direita, amparada pelo governo de Netanyahu, desloca Israel do papel de líder global em inovação e progresso para uma figura de conflito e divisão.
A esperança na paz enfraquece à medida que políticas agressivas e imediatistas predominam na agenda governamental, restringindo o espaço para diplomacia e diálogo.

O silêncio dos que poderiam intervir é ensurdecedor; mais vozes devem se erguer contra estratégias que ameaçam a integridade e o futuro de Israel.
Na busca por segurança, não se pode negligenciar os princípios de humanidade e justiça. O militarismo desprovido de consciência segue um caminho sem retorno, normalizando a guerra.
Os jovens israelenses, futuros guardiães de um país repleto de potencial, merecem lideranças que vislumbrem além dos conflitos, planejando para uma era de paz e prosperidade.

O nacionalismo exacerbado coloca em xeque a diversidade cultural e religiosa que caracteriza Israel como um mosaico de povos e tradições.
O apoio incondicional ao exército e aos que servem é essencial, mas não deve ofuscar a crítica às políticas perigosas do presente.
A força de Israel reside não só em seu poderio militar, mas também na solidez de suas instituições democráticas e no respeito às leis internacionais.
O mundo observa Israel com apreensão, esperando que a nação reafirme seu compromisso com a paz e a estabilidade regional.

A nação está numa encruzilhada, entre manter-se fiel aos seus ideais fundadores ou ceder ao apelo da extrema-direita. O legado de Israel como uma nação forte, democrática e comprometida com a paz está em jogo.

Shabbat Shalom!

Democracia para quem? Schumpeter e Boaventura brigam dentro de mim.

Democracia para quem? Schumpeter e Boaventura brigam dentro de mim.

Vale a pena insistir em modelos participativos de democracia em uma sociedade de raiz autoritária e escravagista, que pouco faz uso de recursos disponíveis para sua participação e que elege seus próprios algozes? Artigo de opinião de um adepto da esquerda democrática.

Trabalho de finalização do curso Democratizar a Democracia – Prof. Márcio Carlomagno – pós graduação da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo

 

“Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.”

“O melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano.”

Estas frases foram ditas pela mesma pessoa, o ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965). Conservador e radicalmente democrata, recusou-se a qualquer compromisso com Hitler e a ditadura nazista, mesmo nos piores momentos da guerra e contra a opinião de membros da aristocracia britânica. Ninguém mais insuspeito para defender a democracia, mesmo sabendo de suas limitações. Estas duas declarações apontam para um apoio crítico à democracia, como deveria ser todo apoio. Independente de época ou país, a experiência democrática deve ser debulhada e criticada, justamente para que seja aperfeiçoada. A jovem democracia brasileira pós 1988 não deve fugir desta prática.

Se democracia é o “governo do povo, pelo povo e para o povo” (Lincoln), é quase intuitivo valorizar as experiências de democracia participativa que ocorreram e ocorrem, no Brasil e no mundo. Partindo do pressuposto de que a melhor forma de democracia é a representativa, nada mais lógico que se criem formas de participação popular que incluam os diversos setores da sociedade civil, organizada ou não, nas consultas e deliberações dos representantes do povo, legitimamente constituídos pelo voto.

Um dos principais pensadores e divulgadores da democracia participativa, Boaventura de Souza Santos (Portugal, 1940) destrincha esta modalidade de modo consistente, na teoria e na prática, como a principal concepção não-hegemônica de democracia na segunda metade do século XX. Por exemplo, debruça-se com especial atenção a um exemplo de sucesso que vem do Brasil, quer seja, o Orçamento Participativo implantado em Porto Alegre (RS) a partir de 1989, inspiração para experiências semelhantes em várias outras cidades, do Brasil e do mundo1. A própria população decidindo onde alocar recursos públicos (dentro da disponibilidade finita) através de fóruns regionais e temáticos é prática testada e aprovada, prova de que é possível uma democracia de massas, ao menos em âmbito regional.

Não obstante o bom exemplo de várias cidades brasileiras com esta prática, a realidade nacional atual aponta para outra direção. A eleição de um populista de extrema-direita como Jair Bolsonaro à presidência da República (2018) foi opção por uma política social e econômica de caráter excludente, antecipada antes mesmo das eleições. A ausência de debate, a ênfase em pautas morais e religiosas, o então futuro superministro da economia antecipando sua vontade de acabar com a previdência solidária e substituí-la por sistema de capitalização, já indicavam que políticas participativas passariam longe de sua gestão. Esta escolha estendeu-se a muitos governos estaduais (2018) e municipais (2020), com eleitos pouco comprometidos na prática com opções participativas já estabelecidas regimentalmente.

Não é o caso de elencar as várias causas da vitória de uma elite política alinhada com um governo de poucos para poucos. As ciências sociais e mesmo a psicologia já disseram muito a respeito. O desgaste do Partido dos Trabalhadores, iniciado com a crise econômica de 2014 e que culminou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Lula, são fatos importantes neste enredo, mas não explicam tudo. Não obstante, volto meu olhar para uma experiência pessoal: vários amigos e parentes de classe média, com boa formação educacional e acesso à informação, fizeram esta escolha. Ignoraram todos os indicativos de um candidato com nítidas aspirações antidemocráticas. Como encaixar isto dentro das teorias da democracia?

Neste escopo, é inevitável pensar na concepção de democracia de Johann Schumpeter (Áustria, 1883 – EUA, 1950). Em 1942, desgostoso com a adesão das massas ao nazismo, propôs teoria reducionista em que limitava a democracia à prática eleitoral, sem abrir espaço para a participação do povo, de quem desconfiava e mesmo temia2. Luiz Felipe Miguel assim sintetiza:

“O ponto crucial da crítica schumpeteriana está aqui: as pessoas não sabem determinar o que é melhor para elas, quando estão em jogo questões públicas. Não há uma vontade do cidadão, só impulsos vagos, equivocados, desinformados. Segundo o economista austríaco, o indivíduo médio desce para um patamar mais baixo de racionalidade quando entra no campo da política. Em suma, mesmo que possa cuidar bem dos seus negócios pessoais, não sabe tratar de assuntos públicos3.”

Schumpeter delegava a condução da política a uma elite, cabendo às massas o papel de claque votante. Ao cidadão cabe apenas escolher entre alternativas eleitorais, sem necessidade de qualquer engajamento em outros processos que não as eleições.  Uma democracia elitista e baseada somente no procedimento eleitoral porta uma contradição em si: se é elitista, não pode ser verdadeiramente democrática. Carregando um pouco mais nas tintas, soa mesmo como demofobia.

Esta concepção elitista e procedimental de democracia é compreensível se pensarmos na época em que Schumpeter a formulou, sob o rufar dos tambores das hordas nazistas marchando em passo de ganso. Não obstante, podemos ver semelhanças com a atual situação brasileira, mesmo estando nós sob regime constitucionalmente democrático. Ao colocarmos no poder um presidente que nunca escondeu que gostaria de governar sozinho, com Legislativo e Judiciário cooptados, colocamos em risco o engajamento em instâncias consultivas e decisórias características de uma democracia participativa e inclusiva, delegando às elites políticas o efetivo exercício do poder. É como se concordássemos tacitamente com as concepções pouco lisonjeiras que Schumpeter fazia do eleitorado, ou seja, de nós mesmos. De certa forma, nosso presidente também é schumpeteriano: desde o início de seu mandato, ele só pensa naquilo, ou seja, na próxima eleição e na sua possível reeleição. Democracia procedimentalista, lato sensu… Ironia à parte, revela uma elite política cujo maior projeto -se não o único- é a perpetuação no poder, um paradoxo possível dentro da democracia elitista de Schumpeter. Uma democracia que contém em seu bojo a essência de sua própria destruição.

Para finalizar, repito a frase de Churchill: “O melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano.” A imagem que ilustra este artigo veio da Av. Paulista, em manifestação pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. A mulher com aspecto de classe média branca ostenta um cartaz duplamente interessante. “Luto pelo fim da democracia”, ato falho revelador: luto substantivo ou verbo? “Intervenção militar já”. Abre-se mão do regime vigente para se colocar sob a tutela da elite militar, que viria para supostamente salvar uma democracia corrompida que, para esta mulher, é moribunda. Contra estas forças do retrocesso, é mister fincar o pé no nosso embrião de democracia participativa. Independente da qualidade da elite, a alternativa pode ser bem perigosa à própria democracia. E que eu, supostamente mais esclarecido do que a mulher da foto, não caia na tentação de me considerar membro de uma elite. É o primeiro passo para ser cooptado pelos verdadeiros donos do poder.

Referências

  1. SANTOS, Boaventura de Souza; AVRITZER, Leonardo. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Capítulo 10. Orçamento Participativo em Porto Alegre: para uma democracia redistributiva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
  2. SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia.Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
  3. Miguel, Luis Felipe. A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo. Dados [online]. 2002, v. 45, n. 3 [Acessado 27 Novembro 2021] , pp. 483-511. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0011-52582002000300006>. Epub 17 Mar 2003. ISSN 1678-4588. https://doi.org/10.1590/S0011-52582002000300006.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Samba Perdido – Capítulo 16 – parte 01

Capítulo 16

 

“Apesar de você

amanhã há de ser outro dia. “

Chico Buarque

 

O Teatro Tereza Rachel em Copacabana, era uma das principais casas de shows do Rio no final dos anos setenta. Estava sempre lotado. Quase todos se apresentavam lá: Rita Lee, o Terço, Raul Seixas, A Cor do Som, Vímana – a banda de rock progressivo em que Ritchie, Lobão e Lulu Santos começaram – Moraes Moreira, Belchior, Alçeu Valença, Joelho de Porco, João Bosco entre vários outros. Não me lembro de quem era o show do qual estava saindo, só sei que com meus ouvidos ainda zunindo do volume ouvi alguém dizer.

“Caralho! Mataram o John Lennon a tiros em Nova York! Tá dando aqui na rádio!”

“Que é isso, tu tá maluco!?”

“Não! Tão dizendo aqui que um psicopata atirou nele quando estava saindo de casa!”

Todos ficaram em silêncio. Ninguém conhecia o cara, talvez estivesse de sacanagem. Mesmo assim, fomos para casa com aquilo rodando na cabeça. Na manhã seguinte, os jornais confirmaram. Naquele dia o planeta parecia estar de luto. Mais que um artista, John Lennon representava uma postura uma promessa, como que podia ter terminado daquela maneira? E por quê? 

Na televisão repórteres no Brasil inteiro e no exterior entrevistavam pessoas comuns nas ruas e artistas famosos, todos com olhos lacrimejantes. Para mim, essa separação final dos Beatles parecia, de alguma forma inexplicável, ter conexão com a minha experiência na subida para o Noites Cariocas e com uma outra notícia – a prisão de alguns amigos de escola por posse. Para completar, havia o drama familiar da repentina separação entre Sarah e seu noivo de longa data. Era como se uma onda de mudanças negativas estivesse encobrindo a todos.

Por outro lado, no contexto mais amplo havia uma onda de mudanças mais positiva. A classe média brasileira estava começando a reconhecer que a falta de alternativa para o regime militar era um problema. A gota d’água tinha sido a prisão, a tortura e o assassinato mal disfarçado como suicídio em 1977 do jornalista Vladmir Herzog, em São Paulo. Isto tinha desencadeado uma onda de indignação e protestos sem precedentes pelo país. Pela primeira vez depois do AI-5, várias lideranças políticas, culturais e mesmo religiosas haviam expressado suas consternações. Esquecendo o medo, quase todos os veículos de comunicação tinham publicado estes protestos.

Havia mais. Agora que ninguém podia em sã consciência temer que o maior país da América Latina se tornasse um satélite soviético, o status dos generais brasileiros no exterior havia mudado. Apesar dos Estados Unidos ainda estarem apoiando ditaduras sanguinárias no Chile e na Argentina, seus lobistas e especialistas em America latina tinham passado a ver a ditadura desengonçada e corrupta do Brasil como um embaraço desnecessário.

Sentindo a mudança de atitude de seus apoiadores, tanto dentro como fora do país, os militares tomaram medidas conciliatórias. O gesto mais significativo acabou sendo justamente a concessão de anistia para a maioria dos exilados e dos prisioneiros políticos. Mesmo que isso os tenha ajudado a permanecer no poder por mais tempo, este gesto e a abertura política que veio a seguir foi uma vitória da oposição e marcou o início do ciclo democrático mais longo que o país viria a vivenciar. 

De volta ao Brasil, do dia para a noite, os dissidentes políticos passaram de assunto tabu a celebridades com status de herói. Estavam toda hora nos jornais, em programas de entrevistas na televisão e suas memórias se tornaram best sellers. Lendo-as, descobrimos que muitos, tais como a gente, eram jovens típicos da classe média carioca que tinham se deixado levar pela agitação política do seu tempo. 

Descobrimos também que alguns haviam passado períodos treinando como guerrilheiros em Cuba e em outros lugares fora do país. A seguir, discretamente se infiltraram no Brasil, onde pegaram em armas, assaltaram bancos e sequestraram gente importante. Depois que suas organizações foram reprimidas e ficou claro que a resistência armada à ditadura tinha fracassado, os que sobreviveram foram obrigados a repensar, no exílio ou na prisão, seus conceitos sobre militância e sobre como se posicionar num mundo sem revolução.

Após os festejos pelo seu retorno, tomando um rumo parecido com o adotado pelos artistas exilados, muitos dos anistiados se reintegraram à vida do país com agendas mais práticas. A maioria usou sua recém-adquirida popularidade para progredir na política convencional. José Genoíno, Fernando Gabeira e Carlos Minc, por exemplo, se tornariam senadores ou ministros enquanto Dilma Rousseff seria eleita presidente. Outros ex-exilados ocuparam lugar de destaque no processo de redemocratização. Entre eles o político veterano Leonel Brizola o ex governador do Rio Grande do Sul que viria a ser o governador do Rio de Janeiro, seu companheiro de chapa, o lendário antropólogo Darcy Ribeiro, o ex e futuro governador de Pernambuco, Miguel Arraes, assim como outros políticos mais ao centro, como o futuro presidente sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o futuro líder do PSDB, José Serra. 

Apesar de admirarmos todos e nos deleitarmos nas ondulações criadas pelos ventos democráticos, havia questões de identidade. A militancia heróica tinha se tornado uma coisa do passado. Mesmo assim, queriamos as mesmas coisas pelas quais tinham sacrificado a sua liberdade e, em alguns casos, a própria vida. Apesar da conquista da abertura política, a desigualdade econômica e o aparelhamento antidemocrático do estado continuavam. Sem intimidade com a democracia, achando que só uma revolução resolveria, do nosso ponto de vista estes ídolos estavam retornando ansiosos para se juntar a um sistema ao qual, pelo menos ideologicamente, estávamos resistindo. Era decepcionante ver muitos deles usando, sem um pingo de vergonha, o seu passado de lutas para promover suas carreiras num rumo que não tinha nada a ver com suas intenções iniciais.  

Deveríamos aceitar sua liderança, dar tudo por encerrado e concluir que éramos inúteis? Estava claro que para eles esse era o caso. Para nós a pergunta que não queria calar era a de como se posicionar. A ditadura havia simplificado as coisas; a escolha tinha sido entre ser a favor ou contra o regime. Dependendo do lado que você estava, você podia jogar a culpa por todos os males do mundo nos generais ou nos comunistas. Com o fim do governo militar agora no horizonte, havia novos desafios. As pessoas já não se sentiam tão convictas de suas opiniões e pareciam não saber lidar com as sutilezas da liberdade. Levaria algum tempo para que o país atingisse um estado de maturidade política.

Alguns copiaram os retornados e entraram em partidos convencionais, principalmente no recém-criado PT, o Partido dos Trabalhadores, uma das poucas opções de resistência preenchendo o vácuo existencial dos progressistas naqueles dias. O partido não tinha nada a ver nem com a resistência glamorosa dos ex-exilados e dos ex-presos políticos, nem com a postura anti-imperialista da Revolução Cubana. Proveniente de sindicatos na periferia de São Paulo, seu objetivo era proteger os direitos e os salários dos trabalhadores nos moldes do Partido Trabalhista Britânico quando começou.

Eu e alguns amigos até chegamos a ir em algumas reuniões para ver como é que era. Porém, por não termos nem “pedigree” operário nem “pedigree” na militância tivemos uma recepção fria. Na hora que a militância de raiz via cabeludos bronzeados da Zona Sul entrando no recinto, pensavam ou que eramos imbecis ou que eramos o inimigo. Nos outros partidos “underground” a rejeição era igual ou pior. Eram elitistas às avessas, herméticos e exigentes demais com seus novos recrutas. Os únicos “burgueses” bem-vindos nessas organizações ou eram celebridades ou era gente bem conectada que podia trazer votos e respeitabilidade, o que não era o nosso caso. 

Talvez não tínhamos maturidade para aquilo. Perdemos o tesão pela política. O conceito de eleições livres com partidos profissionais voltados para eleger quadros e exercer mandatos era difícil de digerir. Por outro lado, para os que eram contra a abertura política, o conceito de aceitar reveses eleitorais se provaria um de difícil assimilação. Para mim, acreditando que a luta deveria ser pautada na melhoria dos padrões de vida de cada indivíduo e não de uma classe, faltava a utopia e a visão humanista nos novos partidos. Está certo que vencer eleições e se organizar era fundamental, pero sin perder la ternura.

Naqueles tempos de reconstrução democrática só uma coisa parecia clara: os militares iriam tentar se agarrar ao poder por mais tempo que fosse possível. Com uma crise econômica no horizonte, todos sabiam que quando chegasse a hora de largarem o osso, o país estaria nas últimas. Isso colocava duas perguntas urgentes: em que estado o Brasil estaria e como seria a vida sem eles? 

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O Preço da Democracia – Ouvir Osmar Terra

A democracia tem seu custo. Não é um sistema capaz de causar no indivíduo a sensação de plenitude ou perfeição. Até por que, não se destina a agradar indivíduos. Ela existe para que o grupo por ela regido sinta-se seguro e em paz, ou em condições de mantê-la. Assim, pobre daquele que depositar suas esperanças de plena realização pessoal dentro desse sistema. As chances são mínimas. Pode sim, ser feliz. Mas não na plenitude. Sempre algo estará incompleto. A parcela da diferença, da dissidência, a parcela do desejo conflitante com o diferente ou divergente que foi sacrificada em nome do pacto coletivo, da negociação.

A democracia é construída sobre vários pilares que são os sistemas de valores e de conhecimento. Entre eles, os sistemas autorizativos de ensino que delimitam as profissões. Você tem o diploma de engenheiro que te habilita a construir um edifício por que esta autorização foi regulada por lei e vinculada a um sistema de ensino no qual você deverá continuamente provar sua capacidade de entendimento, aprendizado e expertise nas múltiplas facetas do conhecimento que permitem que um edifício seja construído, que atenda as necessidades para as quais se destina e que, acima de tudo, fique em pé.

Um edifício – físico ou simbólico – só fica em pé quando seus sustentáculos e alicerces existam e funcionem exatamente como os termos os definem: sustentáculos e alicerces. No simbólico, essas estruturas representam todo o conhecimento adquirido, testado e universalizado de forma que jamais tenham falhado, seja fisicamente ou no plano teórico.

A democracia moderna parte de um pressuposto não explícito de que a ciência é a fonte do conhecimento aceitável para a maioria dos que vivem sob suas luzes. Assim, embora seja saudável e construtivo que o conhecimento seja desafiado permanentemente como forma até de torná-lo mais sólido, mas os desafios ao conhecimento científico só são válidos se conseguirem apresentar resultados experimentais e práticos diferentes a partir dos mesmos pressupostos e métodos ou a partir de matrizes teóricas de raiz comum. Não é possível, por exemplo, contestar a Relatividade de Einstein sem contestar junto o Eletromagnetismo de Maxwell. E como até hoje tudo funcionou exatamente como previram as duas teorias, para demolir este edifício haverá de voltar ainda mais atrás, destruindo os sistemas de Galileu, Newton e Copérnico.

Neste cenário, aparece Osmar Terra, que publicamente e sem qualquer pudor apresenta seu sistema próprio de “conhecimento” sobre epidemias e pandemias, exatamente como aquele insatisfeito que descrevi parágrafos acima, para o qual o conhecimento que não satisfaz as necessidades e desejos pessoais pode e deve ser contestado tendo como base apenas a concepção do indivíduo, que da forma mais deselegantemente sofismática constrói sua teoria sobre fragmentos do estabelecido, e com esses fragmentos tenta montar uma imagem como um quebra-cabeças impressionista, que visto à distância pode parecer um Van Gogh, mas na proximidade não passa de rabiscos desconexos e sem significado próprio.

As argumentações de Osmar Terra sobre o “fracasso” do isolamento social não resistem à primeira camada de análise lógica, física e matemática. Não obstante, ele as apresenta com toda a empáfia e fleugma própria de uma grande academia de ciência britânica. Chega a ser chocante e revoltante o fato de uma rede como a Globo dar voz a este senhor, ainda que em contraponto com o ex-ministro Mandetta e o ex-ministro Humberto Costa, claramente harmonizados com o sistema democrático de conhecimento.

O perigo é a percepção, por parte da audiência, de que o debate posto é um debate legítimo, e que “temos que ouvir todas as opiniões” em uma democracia. Aí, o grande sofisma. A ciência só admite opiniões sobre o que ainda não foi testado ou conhecido. Não se opina sobre a virologia, sobre fisiologia, sobre farmacologia ou anatomia. O que pode-se fazer é apresentar resultados obtidos sob rigor metodológico e técnico.

O brasileiro comum costuma valorizar pessoas “de opinião”, parece ser um valor em si mesmo para certos segmentos de nossa sociedade. E aí jaz o perigo. O diferente, o minoritário, ainda mais aquele se se acusa vítima do “marxismo cultural” e de uma abstrata “ameaça comunista” que seja lá o que for só é percebida como ameaça real, motivando então uma credibilidade quase imediata.

Da mesma forma que Osmar Terra quer “enterrar” o sistema de conhecimento da democracia sob o pretexto da liberdade de pensamento e expressão, Olavo de Carvalho e toda a turba de seguidores embarca na aventura de demolição da nossa sociedade, onde cada um de seus agentes cuida de destruir algum setor do conhecimento, seja na história, na sociologia, na filosofia, e mesmo na física, matemática, medicina, direito, entre outros.

E aqui, entramos no nebuloso terreno dos limites a serem estabelecidos ao que chamamos de liberdade de pensamento e expressão. Certamente, a experimentação vem mostrando que nossa democracia não resistiu ao terraplanismo. Até a presente quadra, o preço da democracia está se tornando demasiado elevado.

Ou a democracia se reforma no sentido de fortalecer suas bases, ou será destruída quando a maioria das pessoas se convencer de que não quer pagar este preço. Fica para os historiadores e os cientistas políticos a fundação de uma nova ciência para a democracia: a imunologia democrática. Como criar anticorpos e vacinas para criaturas como Osmar Terra e Olavo de Carvalho.

NN

Planejamento Vultuoso

Uma das noções que desenvolvi durante o meu processo de percepção de fenômenos das mais variadas naturezas, mas em especial, nos fenômenos sociais e políticos, é que certas coisas não dão errado – ou voltam-se a uma natureza destrutiva – por acaso. Alguns fenômenos catastróficos só assim o são não pelo fortuito, pelo acaso, ou pela falha de projeto. Ao contrário, são frutos de meticuloso e vultoso planejamento.
Se examinarmos o conjunto de ataques que o sistema político brasileiro vem sofrendo desde o início do século XXI, e mais agudamente a partir das jornadas de 2013, passando pelo golpe de 2016 e culminando na eleição de Bolsonaro, não haverá que ser feito grande esforço intelectual ou analítico para se perceber que existe uma harmonia subjacente a todos esses processos. Uma gradual, crescente e contínua desconstrução do sentido das palavras, da lógica do raciocínio, dos fundamentos da informação, do conhecimento e da ciência em si mesmos.
O estado de coisas em que nos encontramos, onde um presidente do Brasil mente diária compulsivamente, atenta continuamente contra as instituições, tensiona os campos políticos a limites jamais testados desde a redemocratização do país, diante de instituições paralíticas e de um sistema jornalístico que tenta dialogar pelo meio da única linguagem que conhecem, sem entretanto obter qualquer efeito no outro lado, que claramente fala outra língua, desorganiza o pensamento, tira qualquer questão fundamental do foco, e zomba grotescamente de qualquer conquista da civilização, retrata sim uma enorme construção com fundamentos e alicerces que escapam à percepção da imensa maioria.
Há certamente poderosos jogadores por trás desse tabuleiro. Uma união que engloba Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino, MBL, Vem-prá-Rua, Kim Kataguiri, Fernando Holliday, Partido Novo, Janaína Paschoal, o próprio presidente e sua família, Sérgio Moro, Abraham Weintraub, entre outros, definitivamente não vem do acaso. A sustentação de uma parcela da sociedade, ainda que minoritária, mas significativa, que sustenta o bolsonarismo apartando-se da sociedade em uma espécie de apartheid voluntário e obsessivo, não se sustenta por mero acaso.
Receio que ainda não estamos instrumentalizados para examinar todo esse complexo e identificar todos os processos que foram empregados para esta construção. Obviamente tudo aponta para Steve Bannon, o grande ideólogo da extrema direita mundial. Mas simplesmente apontar o dedo para o óbvio nada resolverá se não pudermos traçar todos os caminhos desta enorme conspiração sobre a qual eu tenho poucas dúvidas da existência. E logo eu, tradicionalmente avesso a teorias conspiratórias. Mas os fatos que presenciamos no momento, especialmente caracterizados pela paralisia das instituições do estado e dos órgãos de imprensa e instituições da sociedade, incluindo partidos políticos, revelam com clareza que estamos diante de um enorme desconhecido, uma espécie de matéria escura, que no momento predomina em força e preserva-se invisível.
Enquanto não desvendarmos esta estrutura, dificilmente sairemos desse buraco.
NELSON NISENBAUM.