por Mauro Nadvorny | 13 ago, 2020 | Comportamento, Mundo, Opinião
O impacto do discurso de Putin feito ao mundo anunciando o registro da vacina produzida em seu país contra o COVID-19 em grupos intelectuais da esquerda foi impressionante. Sempre tive em relação a Putin uma relação de respeito e temor. Respeito pois considero-o há pelo menos duas décadas o maior estrategista vivo neste recanto do Sistema Solar. Temor pois seu poder, inteligência e capacidade política têm efeitos hipnóticos sobre muitos de seus observadores, seguidores e admiradores.
Putin é um sujeito ambicioso que surfa na onda pós-soviética com uma prancha cheia dos charmes e da carga cultural do exército vermelho, da derrubada dos nazistas, da contraposição ao ocidente. Mas a Rússia de hoje é capitalista, tem um sistema de poder que cultiva um amor platônico com o fascismo, tem na sua estrutura política máfias que reduziriam Sérgio Moro ao nível molecular antes que conquistasse um mero rodapé de um jornaleco de bairro, e acima de tudo isso, a alma russa, apreciável em grande estilo na antológica cena de “Chernobyl” onde os operários da mina de carvão dão simpáticos tapinhas nos ombros do então ministro das minas soviético transformando seu vistoso terno de linho claro em uma bandeira de carbono. E para completar, no campo dos costumes, o governo Putin é uma vergonha.
Dito isto, quero deixar claro que tenho profunda admiração pela ciência russa, soviética e pós-soviética. Certamente há uma subvalorização das conquistas científicas daquele povo. Por exemplo, a tecnologia de invisibilidade de aviões americanos aos radares deriva de um físico russo. O foguete Próton-Soyuz que lançou Gagárin ao espaço está em operação até hoje e por décadas foi o método mais barato de se levar homens e equipamentos à órbita da Terra. Muito da cosmologia moderna deriva de contribuições russas à Relatividade Geral de Einstein. Na biotecnologia não é diferente. Dominam todas as tecnologias. São uma potência científica e cultural de primeira grandeza.
Assim, fica difícil acreditar que a atitude de Putin em anunciar algo que ainda não existe possa causar tanta comoção e comemoração por parte de pessoas que cultivam sentimentos anti-imperialistas, anticapitalistas, antiamericanas, quando o que ele faz e exatamente reproduzir o comportamento de alguém que está em uma mera competição por poder político e hegemonia científica. Por quê “não existe”? Porque uma vacina só existe quando foi minimamente testada em algumas milhares de pessoas, e para isso não basta dizer que “produziu imunidade persistente” porque anticorpos medidos 60 dias após o teste não permite dizer que a imunidade é persistente. E mais que isso, seu desempenho deve ser aprovado por autoridades de abrangência internacional. “Registrar” sua vacina na autoridade sanitária russa, que certamente sofre pressões políticas neste cenário, e anunciar isto ao mundo como conquista científica não passa de bazófia. Alguns argumentam que isto é preconceito contra “qualquer coisa que saia do establishment ocidental”. Não é. Pois nenhuma nação ou laboratório até o momento, mesmo os que estão em fases mais avançadas de testagem de vacinas de diferentes tipos, anunciaram ter o produto “vacina”. Não vemos Xi JinPing posando de herói da vacina, mas sim declarando que a vacina produzida lá será um bem público.
Uma das maiores críticas que a esquerda faz ao bolsonarismo é sobre a aversão à ciência desta corrente de “pensamento”. Da mesma forma, a esquerda demoniza a indústria farmacêutica acusando-a de desvios éticos de todas as naturezas, de projetos hegemônicos, de ocultação de dados, e outras indecências. Então, por quê estas mesmas pessoas rendem-se à idolatria em relação à Rússia e seu líder que anuncia a “primeira” vacina para a COVID-19, sendo que absolutamente nada de científico (em termos de números de testes, metodologias, etc) acompanhou este anúncio? Por quê esta súbita renúncia à argumentação racional que vem mostrando-se homogênea em relação a todos os potenciais produtores de uma vacina? Por quê esta confiança cega? Será só pelo fato de Putin catalisar em si mesmo a grande oposição ao ocidente e “equilíbrio de forças”, trazendo para si a carga moral das “forças do bem”, na avaliação de seus idólatras?
Torço pelo sucesso da vacina russa, da inglesa, da chinesa, da norteamericana, torço por todas. Mas não me sinto motivado a qualquer admiração especial por Putin ou a qualquer esperança adicional à sua vacina. Se ele quer o lugar de “pioneiro”, que apresente ao mundo um produto falando a linguagem do mundo, ou seja, com dados científicos. Alguém poderia questionar (e com certeza irá!) se os dados de outros fabricantes produzem dados confiáveis. Eu até poderia dizer que não há santos habitando a Terra. Mas a linguagem científica é um método sistemático de dificultação de fraudes e personalismos. E é para isso que a ciência existe, para impedir o monopólio do conhecimento e o dogma. Anunciar um feito sem dados é fraude, ainda que o anunciado venha a se confirmar à frente. Uma coisa é o fato, outra coisa é querer transformar em fato aquilo que ainda não é fato. Por isso, quando tomo algumas condutas com certos pacientes, explico: “o que estou fazendo resulta da minha experiência positiva nesta situação e não há estudo científico sobre esta situação, mas não estou fazendo nada que, diante do conhecimento prévio, represente risco.”
Seria mais honesto por parte de Putin dizer: “temos uma vacina muito promissora diante dos testes fase 1 já realizados em 76 pessoas, e vamos registrá-la em nossa autoridade sanitária e diante da emergência, vamos assumir riscos”. Se assim o fizesse, certamente seria também alvo de desconfianças. Mas seu ato foi meramente político, e parte de nossa esquerda abraçou o anúncio como uma vitória do anti-imperialismo ou como derrota de Trump, Bolsonaro e outros atores, políticos ou não.
Em outros termos, gente da esquerda não está percebendo o quanto estão sendo “bolsonarescos” ao comprar Putin do jeito que estão fazendo. Daí o meu temor em relação a Putin. Este grande jogador conseguiu bolsonarizar antibolsonaristas.
E como conclusão, e de modo reverencial, digo: a ciência russa não merecia isto.
por Mauro Nadvorny | 3 abr, 2020 | Brasil, Economia, Política
Uma das coisas mais interessantes na crise do Coronavírus é a sensação de “novo” que ele causa. De fato, parece ser um dos vírus mais cruéis das últimas décadas, pelo fato de ele demandar o sistema de saúde em uma velocidade e proporção impressionantes e assustadoras. Em todos os países, com exceção da China, que há muito já tem isso como modelo, rapidamente notou-se a movimentação de todos os setores políticos e acadêmicos em prol do papel do estado como via de saída para a crise.
Mas é apenas a dimensão do tempo – ou da velocidade dos acontecimentos – é que é nova neste momento. Nenhum dos problemas suscitados, dos que afligem as parcelas vulneráveis da sociedade e de sua economia, são de fato novos. O vírus vem apenas nos despertar a consciência perdida pela crônica diluição no tempo e no espaço do volume de pequenas tragédias localizadas e sistêmicas que se arrastam há tanto tempo e em intensidade “suportável” às autoridades e elites. O vírus nos desperta agora para um sem número de problemas que há muito foram naturalizados pela resiliência das camadas inferiores e invisíveis da população, que se forem “lambidas” pela epidemia representarão uma imensa ameaça involuntária nas esferas biológica, social e econômica, ao centro de uma economia cronicamente e excessivamente financeirizada e insustentável exatamente por esta característica.
Subitamente, descobriu-se que sem dinheiro ninguém vive, e que as desigualdades na distribuição desse dinheiro e seu fluxo, na ausência de um lastro patrimonial e funcional que realmente atenda as necessidades básicas de qualquer ser humano, pode nos levar à destruição. Pelo menos, daquilo que considerávamos até dez minutos atrás como sendo o método de vida definitivo e seguro.
E para completar o quadro com requintes de crueldade, no caso do Brasil, foram os estratos superiores da sociedade que trouxeram o vírus ao Brasil, certamente desinformados e desatentos ao que acontecia no mundo. Esses mesmos estratos que puseram no poder um governo absolutamente incapaz de lidar com a situação, aleijado em sua infraestrutura de saúde por decisões voluntárias e desorganizado em sua hierarquia pela intrusão na sua linha de comando e na sua rede de relações do vírus conspiracionista derivado do olavismo e da paranóia anticomunista e fascista.
Com esta última característica, fechamos o ciclo de compreensão desta barbaridade, que como disse, só é nova na escala do tempo. Nenhum dos problemas que enfrentaremos doravante são coisas novas. A diferença é que a vitrola estava em rotação 16, e então, veio a natureza virou a chave para 78. Se para nossa sorte ou azar, caberá a nós decidirmos.
NELSON NISENBAUM