Samba Perdido – Capitulo 06, parte 01
Capítulo 06
“…HaShem disse a Moisés: Dize aos filhos de Israel:
És um povo de dura cerviz (pescoço duro).”
Torá.
Estava orgulhoso por ter sido escolhido para patrulha que ia capturar a bandeira inimiga. Depois de separar os outros grupos e de explicar o que cada um deles iria fazer, nosso madrich, ou instrutor, Mauro Lieberman – que todos chamavam de – dispensou os outros mas chamou a gente para o quarto dele. Cheios de moral e sob os olhares interessados de algumas das meninas, saímos do refeitório e atrás dele. Chegando lá, fomos entrando e sentando no chão. Com todo mundo dentro, nosso chefe fechou a porta, se sentou conosco e abriu um caderno numa página com um esboço do sítio.
“Pessoal, a bandeira deles vai estar aqui, no meio do campo de futebol. Vai ter um círculo grande de cal em torno dela, não vai ter como perder. O grupo que vai lá são o Richard, o Davi, o Marcos e o Hélio.”
Ele olhou em volta para ver se todos estavam acompanhando. “Vocês vão usar essa trilha aqui no meio do mato. O grupo do Murilo, Samuel, Sérgio e Marcelo vai descer para o campo também, mas vai pela estrada principal, essa daqui. A ideia é usar o grupo do Murilo para atrair atenção dos caras enquanto o outro grupo pega eles de surpresa.”
Estavamos estranhando a seriedade do Maurão, um cara meio largado com ar de hippie. “Por isso você, Murilo, e você, Samuel, vão ter que dar uma canseira neles.”
A gente teve que rir. Murilo Berkovitz e Samuel Goldfarb eram dois trogloditas da Tijuca. Todos sabiam que eram inteirados – de verdade – na malandragem do bairro. Era impossível não ter medo deles. Já dava para ver a cara do pessoal do time azul tremendo na base.
Maurão olhou para o meu grupo continuou. “Quando chegarem na metade da trilha, vocês vão ter que entrar pelo mato para sair aqui na beira do campo.”
Ele apontou para o lugar no mapa. “Aqui vocês ficam na espera. Na primeira bobeira que eles derem, vocês saem correndo. Daí vocês já sabem; é pegar a bandeira e partir para o abraço.”
Já gostando da possibilidade de sairmos como heróis daquela mini guerra, respondemos que ía ser mole vencer aquele bando de otários.
Maurão encerrou a reunião levantando e dizendo “Vamos lá pessoal, vamos vencer essa parada!”
Saímos do quarto nos sentindo a própria tropa de elite saindo de uma reunião secreta no quartel general.
*
Dois dias depois, o jogo começou num clima agitado com a participação de todas as cinquenta e poucas pessoas que estavam ali. Seguindo o plano, as meninas e os caras mais quietos foram para o alto do morro defender a nossa bandeira. Enquanto isso, o Murilo e a sua turma pegaram a estrada principal e a gente se embrenhou pelo meio das árvores. Passado um tempo, começamos a ouvir os gritos do inimigo correndo atrás do grupo deles e chegando perto das nossas defesas.
Avançamos mais lentamente que o esperado porque o inimigo tinha colocado sentinelas ao longo da trilha. Para nos livrar deles nos espalhamos pelo mato antes do ponto que o Maurão tinha falado. Lá, quer por falta de empenho quer por falta de cuidado, um a um, meus camaradas foram sendo eliminados juntos com o pessoal do Murilo. As “mortes” aconteciam quando um adversário lia em voz alta o número nas nossas braçadeiras. Terminei como o único sobrevivente no ataque. Agora sozinho, fui seguindo em frente até conseguir me esconder no meio de uns arbustos a poucos metros do campo onde fiquei deitado, esperando pela hora certa.
A defesa do inimigo estava preocupada. “Ainda tem um escondido no mato”, gritou um deles. “Ele está ali! Ouviram este barulho?! ”
Ledo engano, para despistá-los, estava atirando pedras do mesmo jeito que os comandos americanos faziam na minha série de guerra favorita, Combate! Teve uma hora em que os pés de um deles passaram a poucos centímetros do meu nariz, mas continuei ali, incomodado pelos insetos, a apenas uma breve corrida da bandeira inimiga.
De repente teve um reboliço, um do time deles, Bruno Feldstein, um cara sardento, gorducho e metido a inteligente, voltou apressado da nossa base dizendo a todos que o ataque deles estava indo bem. A comemoração antecipada foi minha oportunidade e fui à luta. Saí correndo e quando perceberam o que estava acontecendo houve uma gritaria e um bando deles veio para me pegar. Me alcançaram a poucos centímetros do círculo de cal. Uma tempestade de braços me agarrou e tentou tirar minha mão direita da identificação no braço para me “matar”. Só faltava um passo e, usando toda minha força, consegui levar todo mundo comigo. Dentro do círculo ninguém podia mais me tocar. Como um último sobrevivente cercado por zumbis, levantei a bandeira do time azul e dei fim àquele jogo de guerra.
Aquele exercício marcou o encerramento de duas semanas de meio colônia de férias, meio seminário, ou machané, num hotel-fazenda com o nome ídiche Kinderland. Ela tinha sido organizada pelo Ichud Habonim, a organização sionista à qual eu pertencia. Para falar a verdade, o objetivo desse e de vários outros “movimentos” – que era como a comunidade se referia a eles – era o de nos convencer de que quando chegássemos à idade adulta nos mudássemos para Israel e servissemos seu exército. Para tanto, tentavam incutir uma forte dose de nacionalismo judaico por meio de preleções sobre como nossa povo – como qualquer outro – tinha o direito de viver na sua própria terra sem temer pogroms, inquisições, expulsões ou holocaustos.
Contudo, apesar da sua popularidade e dos pacotes que organizavam para irmos passar o verão em kibbutzim em Israel, o índice de sucesso no recrutamento de soldados da classe média carioca era baixíssimo. A maioria dos pais encarava essas organizações apenas como uma maneira de perpetuar a identidade ancestral da família e de tirar uma folga das crianças nas tardes de sábado e durante as férias. Quanto a questão do serviço militar, morriam de medo que os abandonássemos para acabar envolvidos numa guerra. Com notórias exceções, para nós esses encontros eram apenas uma maneira de nos divertir. A parte didática era um saco. De qualquer forma, vale ressaltar que apesar de nenhum madrich abordar questões fundamentais acerca da legitimidade de um estado exclusivamente judaico naquele lugar em específico ou sobre o destino dos palestinos, o ódio e o racismo não faziam parte da pauta.
*
Ainda não é claro se ser judeu significa pertencer a uma nação, fazer parte de uma religião ou seguir uma tradição. Qualquer que seja a resposta, a introdução foi dolorosa. Quando tinha apenas dez dias de vida, um cara de barba longa vestido de preto se aproximou com uma lâmina afiada, entoou uma canção estranha e daí cortou meu prepúcio sem dó nem anestesia. Depois de colocar um algodão para estancar o sangue e de limpar sua lâmina, o rabino abençoou aquele corte que seria o meu passaporte para uma família estendida que, de acordo com a crença, teria começado há quatro mil anos com um sujeito chamado Abraão.
Além da dor inenarrável que não me lembro, esse rito me jogaria num mundo de contradições, mitos e preconceitos ligados ao que talvez seja o povo mais esquisito do planeta. Ele também faria que meu pênis tivesse uma aparência diferente da dos de meus amigos de futebol e, numa perspectiva mais ampla, determinaria com quem deveria me casar, quem deveria ser meu amigo e qual estilo de vida deveria seguir. Por um terceiro ângulo, ele também ditaria quem iria querer se casar comigo e quem iria querer ser meu amigo.
Em casa, meus pais achavam tudo isso positivo; sua família e seus amigos também – afinal, fazia parte do que éramos. No mundo mais amplo, nem todos pareciam concordar. Quando tinha uns cinco anos abri, por acaso, um livro grosso sobre o Holocausto. Não sabia ler, mas dava para compreender as fotos de judeus religiosos chorando momentos antes de serem executados, de soldados ameaçando crianças com metralhadoras, de pessoas esqueléticas em pijamas listrados atrás de cercas de arame farpado com rostos sem expressão e de pilhas de corpos em valas comuns. Seu único crime tinha sido o de terem nascidos tão judeus quanto eu.
Nos anos 1960, essa experiência ainda era uma cicatriz fresca, profunda e mal disfarçada na comunidade. Todos os adultos tinham as suas histórias mas raramente falavam delas, só sabíamos o que ouvíamos por terceiros. A mãe de uma amiga que passou a guerra adotada por freiras, o conhecido de meu pai que tinha ido a pé da Romênia até a Palestina depois de ter visto sua família ser fuzilada, a mulher do Peter que tinha sido colocada num trem de crianças refugiadas na Bélgica e que nunca mais viu seus pais depois daquilo. Esse peso se manifestava em medos, neuroses e na desconfiança para com os não judeus. Para os que vieram depois, restou a questão complicada de como lidar com esse legado.
Por outro lado, em um país latino americano governado por uma ditadura tradicionalista, o catolicismo apostólico romano era uma presença forte no dia a dia – os evangelicos só apareceriam uma ou duas décadas mais tarde. Mesmo no futebol, agora tão importante para a mim, os heróis de meu time e da seleção faziam sinais da cruz sempre que marcavam gols e os comentaristas de futebol viviam usando bordões religiosos. Na vida cotidiana era igual – Ave Maria, cruz credo, minha Nossa Senhora, ai Jesus e por aí a fora – surgiam na maioria das conversas.
Na Escola Britânica as coisas eram um pouco diferentes. Meus colegas de sala eram em sua maioria protestantes. Isto fazia deles, pelo menos teoricamente, mais tolerantes. Como o único garoto judeu da turma – tanto na escola quanto no clube – era poupado dos estereótipos ligados à minha gente. Por me considerar um deles, se sentiam à vontade para me contar coisas estranhas que tinham aprendido em casa sobre nós com as quais não podia concordar. De acordo com minha experiência pessoal, sabia que éramos nem mais nem menos pão-duros do que pessoas de outros povos, sabia também que não éramos conspiradores perversos empenhados em dominar o mundo. Além disso, nunca tinha ouvido falar de ninguém beber o sangue de crianças cristãs durante a páscoa judaica, muito menos em qualquer outra época do ano. Ao contrário, para mim, a comunidade mais parecia um monte de gente desengonçada e neurótica.
Como fazem os garotos, queria fazer parte da turma. Por isso, embora negasse esses absurdos, fazia pouco caso do seu teor ofensivo. No fundo, porém, sabia que existia algo de fundamentalmente errado em ser forçado a ser um judeu enrustido. Vivendo entre os goyim – o nome dado aos não-judeus – simpatizava com a história de Moisés crescendo na corte do Faraó e às vezes me perguntava onde isso ia parar.
A única coisa certa, era que pertencer ao “povo escolhido” por Deus era estranho. A própria palavra “judeu” fazia com que pessoas virassem as costas ou produzissem sorrisos sem qualquer motivo lógico, dependendo de quem a escutava ou de quem dizia.
Esses absurdos se juntavam a um monte de outras perguntas. Por que gente que nem nos conhecia pessoalmente nos odiava a ponto de contemplar um extermínio em massa? Era culpa deles ou, de alguma forma, nossa? Quanto ao aspecto religioso havia questionamentos igualmente fundamentais: onde estava Deus quando pessoas inocentes imploravam nas câmaras de gás? se havia um único Deus e todos – cristãos, judeus e muçulmanos – acreditavam nele, por que não chegar a um acordo? Não seria isso que o criador iria querer das suas criaturas? Será que iríamos todos para paraísos diferentes quando morrêssemos? Ninguém jamais conseguiu me responder qualquer dessas perguntas de maneira convincente.
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