“Estamos condenados a ser livres” de Jean-Paul Sartre

Em cada amanhecer, há um ritual silencioso de resignação. Nosso despertar não é ditado pelo canto dos pássaros ou pelo acariciar do sol, mas pelo grito estridente de um relógio que marca não o tempo, mas nossa servidão. Nos vestimos não para nós, mas para o mundo, um mundo que nos avalia mais pelo que fazemos do que pelo que somos. A roupa de trabalho, como uma armadura, nos protege e ao mesmo tempo nos aprisiona na expectativa alheia.
As ruas, cheias de rostos anônimos, são veias por onde corre o sangue frio do capitalismo. Cada pessoa, uma célula pulsante de desejo e necessidade, movendo-se não por vontade, mas por necessidade. O trabalho, essa entidade onipresente, nos define. Somos o que fazemos, dizem eles. Mas o que resta de nós quando o fazer é apenas um meio para sobreviver? Esta realidade segue-nos até os cubículos de trabalho.
Sentamos, olhando para telas que piscam com promessas de eficiência e sucesso. Mas em cada clique, uma parte de nossa alma se perde, dissipada na infinita rede de obrigações e expectativas. Esta perda contínua da essência de quem somos nos impulsiona a um ritmo de vida onde tudo é acelerado.
Comemos rápido, vivemos rápido, amamos rápido. O tempo, essa moeda preciosa, é gasto não em nossos sonhos, mas em metas e objetivos que nos foram impostos. Nestes momentos fugazes, percebemos a finitude da vida.
Retornamos aos nossos lares ao final do dia, cansados, desgastados, consumidos. Nosso amor, nossos filhos, nossos sonhos – todos esperando por um momento que nunca chega.
E então, em um breve instante de silêncio, nos perguntamos: para quem vivemos? Para nós ou para o sistema que nos consome?
O dinheiro, esse deus moderno, rege nossas vidas com mão de ferro. Ele compra nosso tempo, nossa energia, nossa paixão – e nos deixa vazios, famintos por algo mais.
Nos vendemos em pedaços, hora após hora, dia após dia. E o que recebemos em troca? O suficiente para continuar existindo, mas nunca o suficiente para realmente viver.
Continuamos, presos em um ciclo de consumo e trabalho, onde o único vencedor é o sistema que nos domina.
Nossos momentos de felicidade são breves, fugazes, como estrelas cadentes em uma noite nublada. Vemos, desejamos, mas antes que possamos alcançar, desaparecem.
Em nosso íntimo, sabemos que há algo errado, algo profundamente injusto nesse mundo que construímos. Mas o medo da mudança, do desconhecido, nos mantém em nossas cadeias.
E então, enquanto a lua se ergue e as estrelas brilham com indiferença, sussurramos para nós mesmos uma promessa de rebelião, de busca por um caminho diferente – um caminho que nos levará não apenas à sobrevivência, mas à vida.
Chega um momento em nossa jornada, quando a verdade se revela em sua forma mais crua: somos passageiros temporários nesta terra. A descoberta de que nossa vida é uma chama fugaz no vasto universo acende uma sede urgente de viver, uma fome de experiências que sabemos ser maior do que o tempo que nos resta.
Confrontamos uma realidade solene: somos apenas um sopro no vento da história, uma onda que se quebra na imensidão do oceano do tempo. O mundo, com sua indiferença imemorial, seguirá seu curso, inalterado pela nossa ausência. Essa percepção de nossa insignificância é um despertar, um chamado para buscar significado e propósito nos dias que nos são concedidos, não para deixar uma marca no mundo, mas para encontrar paz e realização em nossa própria existência.
A insustentável delicadeza da brutalidade (Análise do livro Torto Arado)

A insustentável delicadeza da brutalidade (Análise do livro Torto Arado)

Torto Arado é uma obra gigante que doravante ninguém que queira ser qualificado como brasileira ou brasileiro poderá ser completo sem a sua leitura. Mas antes de descrever a obra em si, como gosto de fazer com quase tudo na vida, vou do geral para o particular.

Minha vida e minha mente foram (e são) fortemente influenciadas pela exploração de nossas noções de realidade, e nesta aventura, o mundo da física nos dá mensagens muito ricas. O começo do século XX foi marcado por grandes rupturas na ciência (e na filosofia) na medida em que se descobriu que a realidade do muito grande (física relativística), mesmo sendo fruto da soma de todas as realidades do muito pequeno (física quântica) tem com esta uma difícil relação, pelo menos à nossa apreciação enquanto humanos ansiosos por explicações fáceis para a nossa realidade que fica no meio do caminho entre esses mundos, o que nos deixa perplexos quando estamos diante da microrrealidade onde nada é determinável ou exato, nem mesmo a existência em si mesma de alguma coisa.

Viver no Brasil e imaginar que a realidade visível e palpável tem algo a nos dizer diretamente é certamente algo pior do que uma alucinação. Nada pode ser mais incompleto, delirante e confuso, e certamente o que vivemos neste momento de nossa história é a perfeita representação deste “pathos”.

Água Negra é um átomo da nossa história, algo como um átomo de carbono, este que integra toda e qualquer matéria viva tal qual a conhecemos por enquanto, e assim, estrutura nossa existência na sua imensa complexidade. As “partículas sub-atômicas” desse micromundo são os imensos personagens que exploram as possibilidades em um ambiente que fica entre a escravidão e algo que ainda não veio a ser, pelo menos aos descendentes dos ecravos do Brasil, e sua situação no contexto atual é bem retratada pela protagonista que tragicamente perde sua capacidade de falar já na infância, em um simbolismo sobre o qual não tenho certeza sobre o quão intencional foi por parte do autor, mas que identifiquei durante a leitura.

O romance é delicadamente e ricamente floreado de forma envolvente e verdadeiramente saborosa, a ponto de fazer que nos sintamos parte daquela terra, das chuvas, secas, das crenças, dos encantados, e do contraste permanente entre o amor pelo lugar e sua trágica história com o das dores dessa história, o que de tal forma impregna a vida de alguns personagens que os paralisa os sentidos de eventual revolta e transgressão, algo que fica reservado aos mais jovens e expresso em diálogos que algumas vezes lembram o folclórico Tevie (Um Violinista no Telhado) e seus choques com os jovens proto-socialistas de Anatevka, o vilarejo russo onde se passa aquela narrativa. Esta semelhança eventual é realmente notável, e se presumo que o autor dificilmente conheça aquela obra, ele terá confirmado a universalidade dos dramas humanos que conhecemos.

Neste micromundo de partículas infinitesimais da nossa realidade vai sendo destilada a substância da vida, que sempre mais forte que tudo, insiste em provar que o impossível é algo a ser permanentemente desafiado e os personagens, embora fictícios, seguem as trajetórias que certamente foram percorridas por milhões de pretas e pretos que no século XX e XXI ainda não sabem o que são direitos fundamentais, não por que não os queiram, evidentemente, mas por que a vida bruta de uma terra da qual tiram tudo e com a qual têm uma relação mais que carnal simplesmente não lhes é permitida como própria, em um processo massacrante e alienante que é vivido pelos mais velhos como natural e como única forma de preservar suas próprias tradições, crenças e saberes, em um paradoxo que verdadeiramente nos angustia.

A condição feminina é alvo também preferencial do autor, revelando matrizes das tantas disfuncionalidades estruturantes de tragédias que nos são bem conhecidas, mas que no caso particular derivam da catástrofe criada pelo sequestro de um povo de suas terras e nações, cruelmente submetidos a uma realidade brutal e perversa que extraiu boa parte das suas essências culturais e antropológicas, antes harmônicas, sem nada oferecer em troca senão a condição sub-humana institucionalizada.

Torto Arado é o Brasil profundo, sincero, sem concessões, mas descrito com poesia suficiente para nos angustiar sobre um imenso vir-a-ser que não se realizou no país, mas que pelo menos foi vivida nos corações dos heróis retradados nesta magnífica obra.

NELSON NISENBAUM