A entrada de Felipe, ex-colega do Colégio Andrews e frequentador do Posto Nove, no Arrepio mudou muita coisa. Ligado ao teatro desde sempre, após deixar a escola tinha se tornado ator profissional e tinha impressionado a todos com um papel de destaque na peça Os doze Trabalhos de Hércules, de onde surgiriam muitas carreiras de sucesso no teatro brasileiro. Foi num papo de praia que arrisquei o convite para ser vocalista da banda. A gente se dava bem mas mesmo assim fiquei surpreso com seu interesse instantâneo. Talvez, como todos, estava morrendo de vontade de deixar sua marca no rock. Convocamos um ensaio de introdução que correu às mil maravilhas; ele curtiu nossas músicas de cara, sua voz era boa, sua presença de palco soberba e a química foi perfeita. Agora, com um novo vocalista de primeira, e com seus contatos, sentíamos que a banda era uma séria candidata à fama e à fortuna.
O show de estreia da nova formação foi num bar em Ipanema. O local era especializado em bossa nova, mas a mãe do Felipe, antiga frequentadora, tinha convencido o gerente a nos acolher. Não havia estrutura para bandas ali. Por isso, além dos instrumentos, fomos obrigados a pegar emprestado microfones e o equipamento poderoso cedido pelo Charles. Contudo, parecia bom demais para ser verdade e no dia fomos lá empolgados, sentindo que aquilo era o início de uma era de ouro. Enquanto subiamos e desciamos as escadas com aplificadores e partes da baterias e montávamos o equipamento no terraço, ficou óbvio que os funcionários, acostumados com músicos recatados de bossa nova, nos viam como invasores bárbaros ameaçadores e inusitados.
Com tudo montado veio a hora de passar o som. Não tínhamos engenheiro de som e mal sabiamos como manejar aquela parafernalia. Mesmo assim, depois de tocarmos duas ou três músicas e de ficarmos relativamente contentes com o que estavamos ouvindo demos uma parada. Quando estavamos nos preparamos para dar uma volta. o gerente, um cara elegante, baixinho e de cabelo engomado, subiu no terraço para falar conosco e manifestar sua preocupação com o volume.
“Gostei do som, animado, né?” Soou meio falso, mas, fazer o quê? “O problema é que aqui é uma área residencial e às vezes os vizinhos reclamam do barulho, sabe como é?”
“A gente conhece esse problema bem até demais.” A galera concordou com sorrisos.
“Pois é, se vocês entendem, melhor ainda. Eu queria pedir para vocês tocarem mais baixo. Seria possível?”
“Olha, já estamos tocando o mais baixo possível. O problema é a bateria. Ela não está amplificada. Tá vendo? Não tem microfone nenhum nela.” Estava na cara que o cara não estava entendendo nada, mas continuei tentando. “Se a gente tocar mais baixo, só vai dar para ouvir a bateria. Os instrumentos vão soar baixo. A bateria vai continuar no mesmo volume. Ou seja, não vai fazer diferença nenhuma, mas a banda vai soar mal.”
“Mas não dá para a bateria tocar mais baixo também?”
Querendo ser o mais prestativo possível virei para o Mauro: “Fala aê, Mauro? Dá para tu tocar mais baixo?”
A resposta não ajudou muito. “Cara, dá para bater mais fraco, mas o som sai nessa altura mesmo.”
O gerente não se deu por vencido. “Então tá combinado, hoje à noite vocês tocam mais baixo!”
Ele desceu e nos deixou ali, um olhando para cara do outro.
Mauro levantou de trás da bateria e falou: “Foda-se, vamos beber uma cerveja.”
À noite, os convidados começaram a chegar. O Felipe estava fazendo uma ponta em uma novela da TV Globo e por isso havia alguns rostos famosos bem como várias aspirantes a estrelas e umas beldades inacreditáveis entre os convidados. Talvez ciente disso, o gerente tinha mudado o visual do lugar. Tinham coberto o terraço com panos e colocado luz de velas. Tudo estava muito bonito. Quando o terraço encheu a gente ficou esperando o Felipe fazer a social dele. Quando ele veio dizer que estava pronto, pegamos os instrumento, o pessoal do restaurante apagou as luzes e deixou só as onde estavamos acesas, Felipe apresentou a banda de maneira teatral e começamos. A coisa foi bem. Dava para ver que tinha gente curtindo de verdade. No meio da segunda música, ouvi um barulho no meu ouvido. Quando olhei para trás vi que era o gerente gritando que estávamos tocando alto demais.
“Tá alto demais, baixa isso!!”
Tentando não perder a concentração respondi: “Não dá para tocar mais baixo por causa da bateria! ”
Ele sumiu e continuamos. Depois de uns outros dois números, o gerente voltou a bater no meu ombro no meio de uma música.
“Tem alguém querendo falar contigo lá embaixo!”
“Fala que não dá para eu descer agora!”
A próxima coisa que vimos foram seis policiais subindo as escadas. Entraram e foram direto nas tomadas e puxaram os fios dos equipamentos. O som e o clima bom morreram na hora, o show acabo. Todos ficaram boquiabertos vendo os caras descerem sem dizer nem boa noite.
Os dias com o Felipe foram poucos. Pouco depois daquele incidente ele assinou um contrato para um papel importante numa série de televisão e abandonou a carreira musical. Retornei aos vocais, mas discussões começaram a pipocar. Havia conflitos de egos, principalmente entre Eduardo e eu. Tinha o problema que o resto da banda estava preocupada em desenvolver suas habilidades enquanto eu confiava demais nas minhas. O Mauro e o Eduardo ainda estavam pegando aulas particulares – o que para mim era incompatível com o rock. Eles me pressionavam para fazer o mesmo e não conseguiam entender que não podia por causa de grana. Por outro lado, levava o negócio mais a sério que eles, acreditando que se conseguíssemos encontrar o nosso som, poderíamos ter sucesso. Os demais viam a banda mais como uma atividade divertida para os finais de semana. Continuamos, tentamos outros vocalistas, mas depois de um tempo, com a banda indo para lugar nenhum, acabamos enchendo o saco daquilo.
*
Nossa música não era exatamente na moda. Aquela era a época dos góticos, novos românticos, punks e outras criaturas afins. O templo deles era uma boate em Copacabana chamada Crepúsculo de Cubatão. O nome era uma homenagem a Cubatão, uma cidade industrial no estado de São Paulo, famosa por ser o lugar mais poluído da América Latina. Um dos donos do clube era Ronald Biggs, o famoso ladrão de trem inglês, que fugiu de Londres para o Rio de Janeiro em 1970. O local parecia em outra cidade, senão em outro mundo. Sua decoração neoclássica exuberante misturava elementos clássicos com elementos futuristas e tudo o que se poderia esperar de uma casa noturna dos anos 1980. Os frequentadores eram diferentes de tudo o que se via nas ruas e se vestiam como vampiros, usavam maquiagem pesada e provavelmente nunca haviam tocado num baseado em suas vidas.
A música que saia do seu excelente sistema de som era de bandas praticamente desconhecidas e intencionalmente deprimentes como Joy Division, New Order, Echo and the Bunnymen e Bauhaus, todas ignorando as guitarras e abusando dos teclados, um sacrilégio para qualquer roqueiro raiz criado nos anos setenta. Com relação à paquera, para fazerem sucesso, os caras lá dentro tinham que parecer afeminados. Para alguem de fora, parecia não haver qualquer chance de sexo heterossexual. A entrada era controlada por uma gótica minúscula e invocada, protegida por dois seguranças nada fashion e apropriadamente gigantescos. Sempre havia uma aglomeração de esquisitos na porta implorando para entrar. Quem decidia o acesso era ela apontando o dedo e acenando a cabeça. Para os rejeitados ficava a sentença de morte quando virava para os seguranças e dizendo: “ela/ele parece gente boa”.
Pessoas estranhas passaram a surgir em festas e outros eventos sociais dando declarações sobre o pós-modernismo ou Nietzsche sem entender muito do que estavam falando. Londres era a nova Jerusalém daquela galera e as revistas inglesas iD e The Face, as novas bíblias. Naquele meio, tudo era uma mistura de pose com uma boa dose de arrogância social. A superficialidade ditava que os papos girassem em torno de tendências da moda nas revistas importadas ou nas bandas e artistas que melhor tinham abandonado a estética e a temática das décadas passadas.
Para muitos, pegar um bronze na praia era coisa de neanderthal e pouquíssimos aproveitavam as maravilhas naturais do Rio de Janeiro. Havia um absurdo elementar naquele movimento, se é que poderia se chamar disso. A beleza exuberante da cidade e o seu cenário natural eram perfeitos para a grandiosidade dos delírios tropicalistas de fusão cultural, de experimentação existencial e de gozo dos prazeres da vida inerentes aos anos setenta. O cenário carioca não tinha nada a ver com a temática urbana importada da cinzenta e distante Londres.
A ironia sobre a obsessão com Londres era que, considerando que era inglês de nascença, poderia ter aproveitado a oportunidade para me dar bem. Se não tivesse mergulhado tão a fundo no Brasil, teria. Ao invés disso, me apeguei a a noção de que era um revolucionário derrotado que se recusava a se entregar. Aquilo representavam o oposto do que eu amava e do que queria no meu mundo. De uma perspectiva cômica, era impressionante ver góticos e punks em jaquetas de couro pretas e botas saíndo de madrugada das festas num calor de 40 graus e desfilando em frente dos banhistas em biquínis e shorts de banho. Pareciam vampiros procurando caixões para se esconder até a noite, quando podiam sair das sombras para invadir a cidade.
Os punks de classe média então eram de um absurdo especial. As roupas que vestiam e os lugares que frequentavam não tinham nada a ver com o que os punks dos Sex Pistols e do Clash, inglêses da classe operária, queriam dizer ao gritarem “não há futuro”. Os punks ingleses ridicularisariam aqueles filhinhos de papai tirando onda usando sua rebeldia, enquanto a maioria dos “punks” da zona sul ficaria horrorizada se parasse para tentar compreendesr o conteúdo de protesto social do movimento. Se entendessem saberiam que, aqueles que tentavam personificar eram contra elitistas metidos a besta. A verdade é que as pessoas apinhadas nos ônibus da periferia industrial de São Paulo ou mesmo as que como eu etavam sendo esmagadas por um choque econômico ceifador de sonhos – eram muito mais próximas ao movimento punk. Caso tivésse alguma ideia sobre o que o movimento punk realmente representava teria aderido, provavelmente adicionando uma pitada tropical, mas para a a galera do rock carioca aquilo era apenas música ruim feita por gente estranha e negativa. Por causa da minha criação e da situação de estar aprendendo a viver num país em formação fez com que a expressão cultural mais importante da minha geração passase ao largo.
Havia muitas razões para estar zangado: o sistema que havia prometido um futuro brilhante para nós estava nos dando um pé na bunda. Mesmo assim, entre muitos havia o papo reacionário de que o momento era para a sobrevivência dos mais fortes. Para eles, só os fracos estavam se dando mal. Apesar do discurso, na prática, o que estava rolando era a sobrevivência daqueles com os pais mais ricos.
Paralelamente à contradição de estar vivendo o sonho de pertencer a uma boa banda enquanto o clima em casa era de fim de festa, o Brasil passava por um momento importante.
A inabilidade dos militares em lidar com as complexidades de uma recessão e de uma inflação pesadas junto com as medidas de austeridade impostas pelo Fundo Monetário Internacional – o FMI – ao país em 1983 causou uma queda brutal na qualidade de vida dos brasileiros e das brasileiras. O descontentamento era geral. Porém, o mais frustrante era que não se podia votar para presidente. De acordo com os militares, os brasileiros não eram capazes de tomar tal decisão. A ditadura impunha que podiam escolher seus representantes no Congresso mas só dos únicos dois partidos permitidos, a ARENA e o MDB. Embora o lema do golpe miltar de 64 tenha sido reestabelecer a democracia e salvar o pais do comunismo os presidentes eram generais apontados pelas forças no poder. Havia a promessa – que ninguém acreditava – de que num futuro não especificado, permitiriam eleições para presidente. Confrontando essa mistura inaceitavel, as forças democráticas do país se uniram e, marchando juntas, lancaram um movimento que tomou as ruas sob o slogan “Diretas já! ”.
Gigantescas manifestações aconteceram em cidades por todo o Brasil. Após um comício em São Paulo que atraiu 1,7 milhões de manifestantes houve um outro no Rio que levou mais de um milhão de pessoas às ruas, a maior concentração política que a cidade já tinha visto.
Uma revolução em tempo real era algo imperdível. O evento foi no auge no verão, em Janeiro, e devido a uma greve dos professores a faculdade ainda estava funcionando. Matei aula para chegar cedo na Candelária. Já havia uma pequena multidao e passando apertado por entre o povo consegui subir numa banca de jornais para ver melhor. Fiquei ali vendo a rua lotar. Quando ja não dava para ver onde o mar de gente terminava na avenida Presidente Vargas, o primeiro discurso começou. Enquanto tentava me concentrar nas palavras do orador, senti alguns pingos no meu ombro. Quando olhei para trás, havia alguém mijando em uma coluna bem atrás de mim.
“Que porra é essa, meu irmão!? Tu acha que tu tá sozinho aqui!?”
“Ih! Foi mal! ” E o idiota mirou para outro lado.
Dali para frente as coisas só melhoraram. Artistas famosos, líderes do congresso, governadores, juristas e outras figuras eminentes da política foram se revezando no palanque fazendo discursos históricos e sendo aplaudidos em peso pela massa reunida. O comício demorou horas e terminou com a multidão cantando o Hino Nacional com todos marcando aquele momento na memória coletiva brasileira com lágrimas nos olhos.
Brasília, a capital federal, ficava longe dos grandes centros, de maneira que os governantes só viam o que estava acontecendo pela televisão. Isso os conferia um distanciamento e um senso de imunidade. Sua concessão foi permitir que o congresso elegesse um presidente civil, Tancredo Neves, uma figura amplamente respeitada e que tinha sido tolerado pelo regime no Congresso fantoche como oposição simbólica ao golpe desde o seu início. O candidato oficial que eles deixaram perder as eleições indiretas foi Paulo Maluf. Esse era um político impopular, notoriamente corrupto, que no auge da ditadura foi apontado pelos militares para ser o governador de São Paulo.
Com a vitória de Tancredo, um presidente civil finalmente tomaria posse no Brasil pela primeira vez em mais de 20 anos. Entretanto, o presidente eleito adoeceu sériamente poucas semanas antes da diplomação. Esse drama manteve o Brasil em suspense: ninguém sabia a real gravidade da enfermidade de Tancredo, se ele poderia assumir a presidência ou se havia algum tipo de conspiração em andamento. Com Tancredo hospitalizado e possivelmente em coma, José Sarney, o vice-presidente, escolhido para agradar segmentos militares e governadores da situação no Nordeste, tomou posse em março de 1985. Semanas depois, Tancredo morreu.
Estávamos escalados para fazer um show na noite em que confirmaram a morte de Tancredo. Enquanto um Brasil abalado se unia no luto, ficamos sentamos na escadaria da boate em Copacabana torcendo para que alguém aparecesse. Eduardo ficou andando ansioso de um lado para o outro, parando apenas para perguntar porque não havia ninguém lá. Nós pacientemente explicamos que o Brasil havia acabado de perder o seu presidente de direito, ao que ele retrucou.
“Sério? Morreu de quê?”
Ele não estava brincando e caímos na gargalhada sem conseguir acreditar como alguém poderia estar tão completamente fora da realidade.
*
Naquele momento político conturbado e da tempestade econômica o Rio estava vivendo a febre do rock. De uma hora para outra, parecia que todo mundo fazia parte de uma banda e aqueles que não faziam pareciam desesperados para se envolver de uma maneira ou de outra. Em meio a toda essa agitação, apareceu a primeira estação de rádio do estado a se dedicar exclusivamente ao rock; a Rádio Fluminense. Ela transmitia do outro lado da Baía de Guanabara, de Niterói. O seu jovem dono tinha acabado de herdar a estação e estava disposto a deixar sua marca. Graças à ele, ninguém mais precisava comprar discos para ouvir bandas como Led Zeppelin, Yes, Jethro Tull, Pink Floyd e The Who. A festa acabou quando as grandes gravadoras foram bater na porta da rádio exigindo direitos autorais.
Sem poder pagar, a Rádio Fluminense passou a tocar exclusivamente artistas internacionais recentes, produzidos por selos independentes ansiosos para tornar seus artistas conhecidos no Brasil. Ainda que acabasse perdendo o status de rádio pirata voltada para uma geração mais velha, a Maldita FM, como eles gostavam de se apresentar, fez sucesso com um público interessado em ouvir as bandas de vanguarda sobre as quais viviam lendo em revistas importadas, mas às quais não tinham acesso. Foi assim que o Rio entrou de vez nos anos oitenta.
Daniel, que mais tarde seria um colega de trabalho quando me tornaria professor de inglês, foi fundamental para o sucesso da Rádio Fluminense. Na época, ele era comissário de bordo internacional e durante suas paradas em Londres e Nova York, comprava os últimos lançamentos das bandas mais recentes. Quando voltava ao Rio, os entregava na Rádio Fluminense. Isso dava à emissora uma vantagem que nenhuma outra poderia ter.
Mas não eram só bandas internacionais que a radio tocava e a gente estava doido para aparecer lá.
Charles, o dono do estúdio e agora nosso empresário informal, levava fé na banda e começou a conseguir shows para a gente. Com a pouca grana que ganhamos com eles, investimos em uma fita demo na esperança de viver o sonho de tocar na Maldita FM. Ainda que sua sala de ensaio fosse excelente, para seu espanto, decidimos que o que o Charles oferecia em termos de estúdio de gravação não era bom o suficiente. Isso nos levou a melhores estúdios, onde trabalhamos com engenheiros de som fazendo pose de profissionais de verdade sem tempo para riquinhos pretensiosos da Zona Sul.
Apesar da arrogância e da impaciência dos caras, levavamos a coisa a sério. As preparações e as gravações em si nos fizeram parar para ouvir o que estávamos fazendo e tomarmos uma distância do trabalho. Ficamos mais conscientes do que estávamos tocando, aprendemos bastante e melhoramos. No entanto, o pseudo profissionalismo dos estúdios não permitiu que a banda mostrasse o seu melhor. O método deles, ainda que utilizasse tecnologia de ponta, era contra-intuitivo e contra-produtivo: cada um gravava sozinho em uma sala escutando as faixas dos outros com fones de ouvido. Não havia prazer ou calor humano nas gravações. As sessões eram chatíssmias, normalmente tarde da noite ou de madrugada porque era mais barato, Algumas vezes alguém perdia a concentração errava sua parte no meio da gravação, enquanto noutras quem se confundia era o engenheiro, quando não eram os dois. O resultado era repetições sem fim onde a essência da banda sucumbiu aos detalhes técnicos.
“ Nosso suor sagrado
É bem mais belo que esse sangue amargo. ”
Tempo Perdido - Legião Urbana
Ninguém gosta de derrotados, mesmo quando torcem para você perder. Por isso a receptividade da volta de São Paulo foi morna, mesmo que no fundo seu Rafael e a dona Renée tivessem ficado felizes por ter seu filho de volta em casa, na esperança de que deixaria de lado uma luta que nunca entenderam. Da minha parte, apesar do gosto amargo de retornar com o rabo entre as pernas, estava claro que os dias de meu pai estavam contados e queria tentar diminuir o fosso que nos separava antes que fosse tarde demais.
Por falta de melhores opções, no fim do verão, destranquei minha matrícula e voltei para o curso de Economia. O que aconteceu foi previsível. Não me sentia mais parte do que acontecia ali enquanto o pessoal que tinha entrado comigo me menosprezou por não ter ido até o fim naquilo que buscava e meus novos colegas de turma ou me viam como um rebelde incompreensível ou como um idiota que tinha ficado para trás nos estudos. Minhas notas eram baixas, detestava as aulas e sentia a realidade implacável de perder um ano inteiro para voltar ao ponto de onde tinha saído. Com o país e a família se desintegrando era difícil encontrar um sentido naquela realidade.
No entanto, a vida continuou. A eterna cura carioca para pressões e frustrações – a praia – era infalível. No Posto Nove de Ipanema o tempo, as crises e os problemas pareciam não existir. Depois de um dia regado a mar, sol e beleza natural tanto paisagística quanto humana o mundo parecia voltar ao lugar de onde nunca deveria ter saído. Num daqueles domingos ensolarados, encontrei o Eduardo, um antigo colega de sala do Colégio Andrews. Estranhei vê-lo ali já que nunca tinha sido frequentador da área, muito menos tinha sido parte da galera. Agora estava mudado, não era mais o cara introvertido e magricela que todos conheciam, estava cabeludo e parecendo descolado. Era óbvio que também tinha dado uma passada pela academia pois estava todo bombado.
Uma das primeiras coisas que me contou, com orgulho, foi que tinha aprendido a tocar guitarra. Sem ter certeza de qual era a dele, mas sempre interessado em levar um som, concordei em marcar uma guitarrada na casa dele depois da praia. Na despedida, Eduardo me perguntou se poderia chamar seu amigo Pedro, um baixista. Concordei e me lembrei do Mauro, um amigo da universidade que tocava bateria, e fiquei de ver se ele poderia ir também. Foi assim que a banda nasceu.
Adoramos a primeira sessão e depois dela aquilo virou uma rotina obrigatória nos fins de semana. Descobrimos naquela barulheira uma diversão recompensante, barata e terapêutica. Quando a música entrava alta, havia a sensação quase delirante de flutuar acima de todo o baixo astral que nos cercava. As frustrações se canalizavam na agressividade das guitarras e do baixo, nas pancadas da bateria e nos gritos no microfone. Quanto a qualidade, bem… estávamos aprendendo.
De qualquer forma, a partir daquele primeiro ensaio, como qualquer outra banda da época, havia a esperança e a meta de um dia tocar no Circo Voador e quem sabe alçar voos mais altos. As músicas que levávamos eram de outras bandas; classicos dos Rolling Stones, Deep Purple e Jimi Hendrix além de algumas nossas que fomos introduzindo, todas fáceis de tocar e catárticas
Como num início de namoro, depois que a coisa se tornou mais séria vieram as formalidades. A principal foi achar um nome. No começo fomos de “Papa Clitóris e os Oligofrênicos”, mas depois de algumas rejeições pensamos melhor e decidimos por um nome mais palatável, “Arrepio”, uma gíria surfista para se dizer impressionado – “O cara arrepiou na guitarra.”
*
A casa do Eduardo era meio apertada para ensaios e passaram a ser na minha, sempre liberada nos fins de semana devido às idas dos meus pais para Teresópolis. Porém não demorou para que os vizinhos fizessem um abaixo assinado por causa do barulho. Voltamos à casa do Eduardo. Seus pais também sempre estavam fora nos finais de semana e lá os vizinhos pareciam não se importar com o ruído. O local escolhido foi o escritório do apartamento, um cômodo que ficava de frente para a favela do Morro do Leme, no final de Copacabana. Nos mesmos dias que ensaiavamos, tinha uma banda punk que também ensaiava num dos barracos. Havia uma rivalidade muda mas tambem um acordo de cavalheiros, quando fazíamos uma pausa, eles começavam e vice-versa. Igual ao punk inglês, suas letras cruas refletiam uma realidade mais dura e simples do que a nossa. Mas não tinha jeito, sua revolta inocente nos fazia rolar no chão de tanta risada.
“Mulher foi assaltada,
a moça estuprada
e a polícia nada, nada, nada!”
Prefiro não pensar a respeito do que pensavam sobre a gente.
A liberação dos vizinhos de prédio do Melo era boa demais para ser verdade. Não demorou muito para que também fizessem um abaixo assinado exigindo o fim da barulheira. Isso nos forçou a procurar uma sala de ensaio de verdade, o que, por sua vez, nos fez entrar ainda mais fundo na toca do coelho do rock carioca. Com todo mundo formando bandas, as guitarradas viraram centrais na juventude carioca e os estúdios de ensaio eram uma extensão do Posto Nove. Entrando e saindo das salas apertadas repletas de equipamento a gente cruzava com as mesmas pessoas que víamos na praia. Lá ficávamos sabendo das melhores festas, das melhores transações de bagulho além das fofocas a respeito das outras bandas, tanto as já estabelecidas quando as em ascensão.
Com os ensaios e os novos contatos veio o primeiro show. A nossa estréia foi num palco armado em frente ao Museu de Arte Moderna no aterro do Flamengo. O evento fazia parte do aquecimento para o primeiro Rock in Rio que estava deixando a cidade desvairada. Excitados com a oportunidade de ouro, fomos vestidos a caráter, todos com roupas bizarras. Como vocalista e guitarrista coloquei uma cartola do meu avô, um blazer superdimensionado sem camisa por baixo, uma bermuda listrada verde e branca e um tênis de basquete laranja. Quando chegou a hora, vencemos o medo e encaramos a pequena multidão com garra. O público adorou e respondeu dançando frenéticamente durante as músicas e gritando o nome da banda nos intervalos. Um dos números que mais causou sensação foi nossa versão de “Wild Thing” do the Throggs e eternizada pelo Jimi Hendrix, Vadia.
Vadia!
Você é uma vadia!
Você cutuca a minha ferida!
Atazana a minha vida!
Depois daquele sucesso prematuro nos animamos e caímos na armadilha de nos levarmos a sério. Em nossa busca pela perfeição, experimentarmos várias salas de ensaio e acabamos por escolher uma na favela do Morro de São Carlos. O dono era o professor de bateria do Mauro, Charles – um cara alto com cabelos louros cacheados e barba encaracolada que faziam com que ele se parecesse com uma figura grega. Charles tinha sido o baterista do lendário Tim Maia, e da musa da Tropicália, Gal Costa, entre outros.
A favela, porém, era famosa por pertencer a uma das mais perigosas facções criminosas do Rio, o Terceiro Comando. Esse era um lugar onde polícia só se aventurava em subir lá com veículos blindados e protegida por helicópteros. Os muros altos do estúdio, o arame farpado e os cinco rottweilers faziam com que aquela propriedade parecesse uma fortaleza de um chefão do narcotráfico.
Por sermos a primeira banda a ter a corajem de ensaiar lá, tivemos uma acolhida VIP na espaçosa sala ainda cheirando a cimento. Depois de alguns meses, o lugar se tornaria um dos estúdios de ensaio mais procurados do Rio, utilizado por pelos artistas e bandas mais consagrados da cidade, como Cazuza, Hanói Hanói, Barão Vermelho e Azul Limão. Charles nunca se esqueceria da gente e continuaria fazendo um preço camarada. Ele também era generoso ao nos deixar tocar nos amplificadores profissionais que os famosos deixavam por lá.
Ainda que adorassemos o estúdio e, melhor ainda, tocar a todo volume no equipamento dos astros, chegar lá era sempre uma experiência tensa, principalmente com equipamento e instrumentos caros na traseira do carro. Sempre que dirigíamos pelas ruas estreitas, o pessoal da favela nos observava, sem saber direito se éramos da polícia, membros de uma facção rival ou clientes. Charles devia ter algum acordo tanto com os traficantes quanto com a polícia pois nunca fomos abordados, embora de vez em quando ele ligasse para o Marcos avisando para a gente não ir naquele dia porque o bicho estava pegando.
Desci no ponto final, na Praça da Sé. Perdido no labirinto das ruas do centro, saí perguntando e consegui encontrar um ônibus que ia para o campus. Àquela altura, tudo o que queria era descolar uma cama para passar a noite e tirar um cochilo. Contudo, quando as coisas estão fadadas a dar errado, elas só pioram. Quando cheguei na cidade universitária, me deparei com um confronto entre os estudantes e a polícia justamente por causa do dormitório onde estava planejando passar os próximos meses. As autoridades do campus tinham intervido e os estudantes queriam o controle do seu espaço de volta. Na confusão fiquei sabendo que por conta daquele atrito não estavam podendo aceitar gente que não estudava ali. Sem saber o que fazer, me dirigi à administração da universidade para explicar minha situação e pedir ajuda. Só que meu ar de playboy e meu sotaque carioca não conseguiram convencer ninguém de que estava em apuros.
Sem outra opção, voltei para o diretório dos estudantes para ver se conseguia arranjar um lugar para ficar, mesmo se fosse para dormir no chão por algumas noites. Quando caiu a noite, a sorte sorriu para mim. Em meio à uma assembleia, cruzei com o Carlinhos, um maluco que conheci em Canoa Quebrada, a paradisíaca aldeia de pescadores no Ceará. Expliquei minha situação e depois de alguns telefonemas, ele me convidou para ficar na casa dele.
Agradeci de coração e depois que as coisas acalmaram pegamos um ônibus e fomos lá. A família morava bem, num apartamento amplo perto da Avenida Paulista com vista de cima para a teia de telhados de São Paulo. A acolhida não podia ter sido melhor, todos eram muito gente boa e a hospitalidade acabou sendo impecável a ponto de ser embaraçosa. Me trataram como se fosse da família: tinha um quarto só para mim, comiamos juntos e depois iamos para a sala de estar para ficar coversando ou assistindo televisão até tarde. Quando saia com o Carlinhos ele me apresentava para seus amigos como um herói. Além disso, tinha a irmã mais velha do Carlinhos, Alice, uma gata, que também tinha conhecido no Nordeste. Ela ficou contente – achei que até demais – em me ver, mas a última coisa que precisava era pôr tudo a perder tentando alguma coisa com ela.
*
São Paulo era muito mais sofisticada que o Rio. Em todas as áreas e camadas sociais, os paulistas eram mais profissionais e mais polidos. Para um carioca, tudo era limpo, organizado e funcionava bem: ônibus, sinais de trânsito, metrô, lojas, padarias. Havia mais formalidade e o nível intelectual em geral parecia padrão de Primeiro Mundo. Os jovens não eram os ratos de praia da Zona Sul se achando a aristocracia da cidade, na paulicéia nao havia tempo para aquele tipo de hedonismo arrogante e de pretensão. Seu estilo urbano, descolado porém de pé no chão, se aproximava ao que a gente via da juventude londrina através de revistas e de video clips. O punk e o estilo gótico caiam bem, ali os anos oitenta faziam sentido.
Após uma semana com a família do Carlinhos veio a hora de ligar para casa. Falei com minha mãe, expliquei que estava tudo bem e onde estava com a intenção de acalmá-la. Contudo, como era de se esperar, a reação da Renée foi a de pânico. Minutos depois da gente se despedir e de dar o telefone da casa no caso de uma urgencia, um amigo que estava morando em São Paulo me telefonou perguntando porque não o havia procurado. Larry era um americano com uma história parecida com a minha. A diferença era que tinha um lar nem mais usual que o meu , a família não estava sofrendo com a crise e por ter uma personalidade menos curiosa e aventureira nunca tinha se atrevido a sair dos padrões esperados da sua situação social. O conhecia o das aulas de Bar Mitzvá e da Escola Americana. Pra falar a verdade, tinha seu telefone mas não o havia procurado porque era caretíssimo e um tanto chato. Quando éramos crianças a amizade só existiu por causa da insistência da dona Renée, maravilhada com a posição do pai dele, CEO da filial brasileira de um importante banco americano.
Larry tinha acabado de voltar de Miami. Apesar de seus dois irmãos mais velhos terem se estabelecido por lá, ele não havia gostado e agora queria fazer faculdade no Brasil. Assim que soube que estava em São Paulo, ficou louco para que ficasse com ele pois na sua cabeça eu representava o Rio da sua adolescência surfista. Quanto a seus pais – acreditem se quiser – me viam como uma boa influência pois era bom aluno quando estudávamos juntos.
Tive que aceitar o convite, pois não queria abusar da hospitalidade da família do Carlinhos. Além do mais, Larry também tinha que se preparar para o vestibular da FUVEST e com a ajuda de meus pais, nos matriculamos juntos no famoso curso Objetivo da Avenida Paulista, perto das sedes da maioria dos bancos e das grandes companhias e do enorme apartamento da família do Larry . Materialmente, minha situação ficou excelente: fiquei com um quarto e com comida por conta e com duas empregadas e um motorista à disposicao, não tinha que mover um dedo. Apesar do vazio que sentia e da frustração de ter caído de volta na teia da família, volta e meio me animava a acompanhar o Larry para azarar paulistinhas usando nosso jeito de carioca. Neste quesito o sucesso foi surpreendente.
No dia da prova, não havia praia para nadar na véspera nem o bom presságio de um desconhecido parecido com meu avô me olhando da calçada. Não estava nervoso, mas assim que abri o folheto e comecei a ler as questões, me dei conta de que o vestibular de São Paulo também era um nível acima do Rio. Primeiro, havia um teste de múltipla escolha onde fui bem, mas uma semana depois, teve uma prova específica da área escolhida envolvendo respostas dissertativas e uma redação. Havia matérias que não faziam parte do currículo do Rio e quando confrontado por quatro ou cinco questões dissertativas sobre literatura portuguesa, que nunca havia estudado, não deu para enrolar e tive a certeza de que era o fim da linha para mim.
Essa foi a primeira derrota após uma longa fase de vitórias. Pensei em ficar em São Paulo num quarto alugado por mais um ano para tentar novamente, mas no auge da depressão econômica, até eu conseguia entender que aquela não era uma opção viável. Além disso, as coisas tinham piorado em casa; Rafael tinha sofrido outra parada cardíaca. Senti que era hora de voltar para o Rio para ser um bom filho pelo menos uma vez na vida.
“Porque és o avesso do avesso do avesso”
Caetano Veloso - Sampa
A inabilidade dos meus pais em me enquadrar e minha fixação na guitarra elétrica foi gerando uma uma pressão ansiosa que ninguém aguentava mais. Me tornei agressivo, Rafael não me dirigia a palavra e Renée surtava direto por tudo e por nada que eu fazia. Até a Sarah e a dona Isabel passaram a me olhar de cara fechada. O plano original era ir para São Paulo para fazer o vestibular e farto daquele clima, resolvi ir meses antes do tempo planejado. Quando anunciei a decisão, não houve drama, talvez porque eles achassem que se ficasse fora, numa outra cidade, quem sabe fosse levar a vida mais a sério.
De qualquer forma, sair de casa de vez era um momento importante, um grande salto no escuro. Todos, inclusive eu, sabíamos que dali para frente tudo seria diferente e nossas apreensões traziam os nervos à flor da pele.
Parti tarde da noite. Escolhi aquele horário porque chegaria de manhã cedo e teria o dia seguinte inteiro para procurar a casa do estudante universitário e me instalar lá. Apesar de ter dito em casa que seria mole arranjar um lugar, não tinha conseguido confirmar. Era um risco que estava tomando. Apesar de ter o número telefônico, o contato era impossível; ou a linha ficava ocupada direto, ou ninguém atendia, ou alguém atendia e me deixava esperando para sempre, ou simplesmente atendia, dizia que não podia dar a informação e desligava na minha cara.
Embora a rodoviária estivesse vazia, ainda havia uma fila no balcão para São Paulo. Enquanto esperava, do nada, um cara de trinta e pouco anos, bem arrumado, veio me perguntar se queria uma carona. Disse que não.
“Tô legal aqui, minha vez já tá chegando, mas obrigado por oferecer.”
Ele insistiu: “Não precisa agradecer, seria um favor que você me faria.”
Apesar da negativa, ele insistiu. “Tive que ir visitar minha mãe que está doente no Espírito Santo . Estou na estrada há doze horas e com sono. Preciso de alguém para ficar conversando para não dormir.”
“Olha, entendo, mas não estou a fim.”
“Mas, por quê?”
Sem conseguir achar uma resposta convincente, mas querendo me livrar da aporrinhação respondi “Estou pegando um ônibus leito, tenho que dormir na viagem. Amanhã tenho um encontro importante.”
“Ônibus leito?! É muito caro! Meu carro é de graça e é confortável.” Ele tirou a carteira. “Está vendo isso aqui, é a minha carteira de médico. Sou cardiologista registrado, está vendo? No Hospital Albert Einstein, conhece?”
Até eu conhecia o Hospital Albert Einstein. A carteira me pareceu verdadeira e minha vez na fila estava chegando. Sentindo a vacilação, o cara continuou: “Você deve estar com medo, achando que eu sou um maluco, né? Eu pensaria a mesma coisa, mas não se preocupe, sou do bem! Olha, te levo até o carro e você pode revistar à vontade.”
“Meu irmão, não tenho medo de nada!” Estava começando a mudar de ideia. O cara parecia mesmo um médico estressado e eu era maior do que ele, o que me garantiria se rolasse algum problema. Além do que, uma passagem de ônibus leito equivalia a umas cinco ou seis refeições. “Vamos ver teu carro para ver qual é.”
Na ida ele não parava de me agradecer e de repetir que era médico, que tinha que trabalhar cedo no dia seguinte, que a mãe estava doente no Espírito Santo e que precisava de alguém para conversar para ficar acordado. O único problema é que parecia acordado demais para alguém que se dizia cansadíssimo. Talvez fosse a ansiedade, café, sei lá.
Chegamos no estacionamento e paramos um Monza azul escuro em ótimo estado. Ele abriu a porta e colocou os bancos para frente. “Pode examinar se tem alguma coisa aí dentro. Aqui, dá uma olhada no porta luvas, não tem nada. Olha debaixo dos bancos, vai lá, faço questão.”
Depois ele abriu o porta-malas. “Dá uma olhada aqui. Viu? Nem mala tem, fui de última hora para ver minha mãe e não levei nada. Olha aqui no estepe; só tem estas ferramentas, mas isto não é arma, é obrigatório. Quer que eu abra a frente para checar o motor?”
“Não, tá na boa.” Cocei a cabeça, achando que o cara estava nervoso demais para o meu gosto. “Mas não sei. ”
“Olha, tudo bem, se você não quiser ir, entendo, mas diz logo porque senão vou ter que voltar na fila, em meia hora os ônibus param de circular.”
Realmente, não havia nada estranho no carro, a história era plausível, pensei de novo no preço da passagem e pensei: “Foda-se…”
Virei para o cara e disse: “Então tudo bem, vamo nessa.”
O doutor agradeceu todo sério. “Muitíssimo obrigado, como te disse, é um favor que você me faz. Mas chega de conversa, né? Vamos embora.”
Coloquei a mochila no banco de trás, entramos no carro, fechamos as portas, ele virou a chave na ignição, o motor ligou e saímos do estacionamento rumo à via Dutra.
“Por sinal meu nome é Ivan e o teu?”
“Richard.”
“Prazer Richard, se importa se eu ligar o ar-condicionado?” Eu não ia dizer que não, estranhando estar viajando num carro confortável que não fazia parte do plano. Depois de um tempo ele quebrou o silêncio desconfortável. “Você gosta de que tipo de música? Pode pegar a caixa de cassetes debaixo no banco de traz, fica a vontade de colocar o que você quiser.”
“Valeu, mas eu estou legal.”
“Se importa então se eu ligar o rádio, então?” Ele colocou numa estação de música ligeiramente brega. Não gostei, mas por estar de carona fiquei quieto. Na subida da serra já estávamos conversando. Quando chegamos em cima, o ar já estava mais frio, demos uma parada num posto semi vazio, tomamos café, comi um sanduíche e voltamos para o carro. Na altura de Resende, a metade do caminho, o doutor disse que estava cansado.
“Não estou conseguindo dirigir, deveria ter tomado mais café. Os olhos já estão quase fechando. ”
“Sem problemas, estou acordadão, tenho carteira de motorista, quer ver? Para o carro e a gente troca. ” Falei, animado com a ideia de pegar a Dutra à noite.
Ele retrucou com um olhar estranho e sorriu. “Sabe o que é? Estou doido para passar a noite num motel contigo. ”
A ficha caiu. Me senti um idiota completo por ter caído no papo, mas o que ele queria não ia rolar de jeito nenhum.
“Não senhor”, respondi resoluto. “Estou aqui pela carona, não tem nada de noite gay no plano!”
Dali em diante rolou uma batalha de insistência versus recusa.
“Mas como é que você pode dizer que não gosta de uma coisa que nunca provou?’
“Amigo, nunca provei nem vou provar. E você? Nasceu veado ou foi porque apanhava muito na escola?”
“Isto não vem ao caso, mas não ia ser legal a gente ficar tirando a cueca um do outro num quarto gostoso?”
“Meu irmão, dá para parar o carro na próxima parada?”
“Mas daqui a pouco estamos chegando!”
“Então que porra é essa de parar em motel?”
“É que eu estou exausto!”
“Se você está exausto deixa eu dirigir, olha a minha carteira aqui!”
O doutor não se dava por vencido e comecei a me preocupar com sua recusa de parar. Quando amanheceu, já estávamos nos aproximando da periferia de São Paulo. Finalmente convencido de que não ia acontecer nada, ele parou o carro num ponto de ônibus. Dando graças por ser mais forte que aquele maníaco pentelho, peguei minhas coisas e saí daquele inferno.
Assim que minha atenção se desviou do carro desaparecendo na rodovia e se voltou para os arredores, percebi que estava num lugar que parecia uma favela. A próxima hora e meia seria um curso intensivo de realidade urbana brasileira. Já tinha subido favela para comprar bagulho, mas era completamente ignorante sobre o dia a dia de pessoas humildes e trabalhadoras. Teoricamente, sempre soube que tinham uma vida difícil, mesmo assim, foi um choque ver, em primeira mão, o que se passava.
Ainda estava escuro e frio, mas o ponto de ônibus descoberto já estava amontoado. Havia lanchonetes próximas, todas muito simples, onde tinha gente tomando café da manhã. O aroma da bebida sendo o único conforto na área.
As feições da maioria, senão todas as pessoas ali, eram Nordestinas. Com certeza ou eles ou os pais tinham saído de lá em busca de uma vida melhor. Seus rostos pareciam com os que tinha visto em minhas viagens, mas a falta de sol, o frio, os efeitos da vida na metrópole tinham tido seus efeitos. Suas peles já estavam cinza, suas caras com uma expressão automata. Moloch estava se alimentado da sua vivacidade.
Cansado, chateado com a minha burrice em ter aceito aquela carona, com frio e com um pouco de fome fiquei esperando o ônibus. Ao olhar para aquele povo, não podia deixar de acreditar que uma força maior havia me colocado ali para me mostrar o outro lado da moeda das minhas aventuras de verão.
Quando o ônibus chegou, me apertei com os outros para entrar na condução já lotada. Sem poder mexer um dedo, passamos pelas enormes fábricas da Ford, Volkswagen, Gessy Lever e outras multinacionais. Alguns passageiros saltaram nesses complexos isolados, mas o destino da maioria era o mesmo que o meu: o Centro da Cidade. Amontoados como sardinhas numa lata por uma hora e meia, nos contorcendo quando alguém tinha que passar para descer, tive uma amostra da rotina diária daquelas pessoas. Elas teriam que fazer a mesma viagem de volta à noite e teriam que suportar aquelas mesmas condições quase todo santo dia de suas vidas. Tudo isso para receberem um salário miserável e serem tratados como cidadãos de segunda categoria em seus empregos, sem qualquer perspectiva de melhora.
Richard Klein, formado em economia pela UFRJ, autor do livro Samba Perdido, radicado em Londres, artista de Efeitos Especiais para cinema, eco-anarquista.