Samba Perdido – Capítulo 7 parte 2

O presidente recém eleito, Jânio Quadros, lembrava o primeiro-ministro britânico do pré-guerra, Neville Chamberlain na aparência e na bizarrice, mas compartilhava com Churchill a fama de amante da garrafa. As massas o adoravam mas, apesar de servir seus interesses, a elite o ridicularizava pelos seus trejeitos exagerados e por sua inteligência medíocre.

Quando assumiu, o ciclo de crescimento econômico iniciado pelo seu antecessor, o carismático Juscelino Kubistchek, estava dando sinais de cansaço. Depois da euforia veio a ressaca econômica e com ela o descontentamento das classes que mais tinham se beneficiado dos anos de vacas gordas: os trabalhadores e a classe média emergente.

A freada no ritmo da melhoria da qualidade de vida dos brasileiros causou uma guinada à esquerda na preferência ideológica do país. Havia uma influência cada vez maior de sindicatos e de organizações trabalhistas na vida pública. Esses novos elementos fizeram com que as elites ficassem nervosas.

Talvez Jânio não fosse o melhor presidente para lidar com a situação. Ele tentou, à sua maneira, conciliar a crescente divisão política proibindo biquínis nas praias para agradar os conservadores de direita e reconhecendo a Cuba Castrista para agradar a esquerda. Essa decisão ousada foi fatal; além de fazê-lo perder o apoio da bancada direitista, em especial da UDN, a União Democrática Nacional, responsável pela sua chegada na presidência, o gesto chamou a atenção dos Estados Unidos.

Pressionado para fazer reformas populistas de um lado e para freá-las do outro, sem apoio no congresso, em 1961, Jânio renunciou na esperança de que o país se unisse para exigir o seu retorno. Isso nunca aconteceu e seu vice-presidente João Goulart tomou posse. Jango, como era conhecido, tinha fortes ligações com movimentos sindicais e com governadores de esquerda, como Miguel Arraes em Pernambuco e Leonel Brizola no Rio Grande do Sul. Contrariando interesses poderosos tanto fora quanto dentro do Brasil, assim que assumiu, deu início a um projeto de nacionalização de setores importantes da economia, apostou na educação das camadas menos privilegiadas e contemplou políticas abrangentes para melhorar a distribuição de renda.

No pano de fundo estava a ainda muito recente Revolução Cubana. Confrontando a hegemonia dos Estados Unidos na a América Latina, o levante trouxe a Guerra Fria para o continente. Na opinião da esquerda, Cuba havia demonstrado que a região tinha a capacidade de gerir o seu próprio destino. Em contrapartida, para as potências dominantes, países governados por revolucionários rejeitando a sua tutelagem e focados em cooperação ao invés dos lucros de uma minoria eram inaceitáveis. Washington fez tudo para esmagar o exemplo, impondo um embargo comercial, ajudando exilados numa invasão fracassada e tentando assassinar seu líder. O único resultado dessa tática foi o de empurrar os cubanos cada vez mais para perto da União Soviética e essa aliança tornou uma América Latina socialista – ou mesmo comunista – uma possibilidade assustadora, porém bastante real.

Situações parecidas com a qual o governo de Jango ameaçava não eram novidade e haviam sido revertidas por golpes de estado. Os primeiros apareceram no Irã no início dos anos 1950 e no Iraque quando estes resolveram nacionalizar suas reservas de petróleo. Pouco depois, Colômbia, Venezuela, Guatemala, Síria e Nigéria entre outros países, sofreram o mesmo quando resolveram enfrentar a ordem econômica estabelecida. O que todos tinham em comum eram pactos entre elites locais e potências mundiais interessadas nas riquesas naturais dos países em questão.

No caso brasileiro, os Estados Unidos estavam determinados a manter o maior país da América do Sul “livre”. Com apoio americano, os poderosos iniciaram uma conspiração para garantir sua permanência no comando do país. Para tanto, seguiram a mesma receita que Rafael tinha presenciado na Alemanha nos anos 1930. O primeiro passo foi conquistar a opinião pública. Distorcendo a verdade e apostando nos preconceitos dos leitores, a imprensa envolvida passou a retratar uma crise profunda na economia e uma ruptura nos valores tradicionais da sociedade. Em paralelo, começaram a “denunciar” a desonestidade dos dirigentes e sua inabilidade em restaurar a ordem. Pessoas comuns passaram a acreditar na imagem contraditória de uma liderança ao mesmo tempo corrupta e disposta a impor uma ideologia totalitária, destruidora da propriedade privada e nociva à herança cultural e religiosa do país. Os “cidadãos de bem”; sensatos, trabalhadores e honestos passaram a ver o governo de Jango como um inimigo. Agora, precisavam de um salvador da pátria acima do sistema político viciado e corrupto demais para resolver os gravíssimos problemas. Em 1964, esse “salvador” seria o exército.

No início de Abril, tropas e tanques foram para as ruas das principais cidades do país, onde os militares “revolucionários” não encontraram qualquer resistência organizada que os desafiasse. Ainda que os líderes do “movimento” declarassem que seu objetivo fosse restaurar a democracia livrando o Brasil do comunismo, o país precisaria de mais de duas décadas para voltar à normalidade política.

Assim que tomou posse, o novo regime exilou o presidente Goulart e seus aliados, além de perseguir e prender personalidades públicas e ativistas de esquerda. Como é comum em golpes de estado, enquanto a atenção se voltava ao drama político, passaram uma legislação revertendo os direitos dos assalariados e privilegiando os interesses dos grandes grupos econômicos que patrocinaram a mudança de regime.

Apesar da indignação de intelectuais e de pessoas mais esclarecidas houve, no início, uma indiferença geral dentro da classe trabalhadora. Por outro lado, os militares encantaram a comunidade dos negócios, inclusive Rafael. Para eles, o Brasil precisava se modernizar, imitar os americanos e alcançar o seu potencial econômico: o gigante tinha que acordar. Com os militares, amigos do “mercado”, no poder e com a orientação e a simpatia do Tio Sam – que na época financiava prosperidade como uma arma para enfrentar os avanços da esquerda – haveria um final feliz onde todos iriam enriquecer.

*

Por suas mudanças terem beneficiado apenas os muito abastados, por não terem cumprido com a palavra de restaurar a democracia e pela corrupção ter aumentado em vez de ter diminuído depois do golpe, quatro anos mais tarde, em 1968, a sociedade civil brasileira se levantou em oposição ao regime.

Os protestos partiram de movimentos universitários inspirados na explosão do espírito revolucionário pelo mundo afora. Na mesma época, em pontos tão diversos como Paris, Chicago e Praga, a juventude estava tomando as ruas para reivindicar um mundo mais justo e mais livre. Embora a maioria silenciosa os considerasse sonhadores inconsequentes, as autoridades os levavam a sério. Tendo em conta o sucesso de vários movimentos revolucionários acontecendo na época, obcecados com a ameaça comunista e ouvindo ecos da Guerra Civil Espanhola, da Revolução Chinesa, da Revolução Russa e mesmo da Francesa, o complexo financeiro, industrial e militar acionou suas defesas.

No Rio de Janeiro a tensão estava borbulhando. Depois que a polícia baleou e matou um estudante, uma passeata 100 mil pessoas, incluindo artistas e intelectuais de peso, tomou conta da avenida Rio Branco no centro da cidade. Esta foi a maior manifestação contra um governo já vista no Brasil. A oposição se alastrou tão rapidamente que mesmo alguns deputados no congresso, agora tutelado pelos militares, passaram a criticar abertamente o governo.

A resposta do regime foi brutal; ignorando a constituição, publicaram o infame AI-5 – Ato Institucional Número Cinco – dissolvendo o congresso e o senado e dando total autoridade executiva e judicial ao presidente. Logo em seguida prenderam membros da oposição, líderes estudantis e jornalistas. A tortura tornou-se prática comum e quem pôde fugiu para o exílio.

Acuados, alguns estudantes passaram à clandestinidade e se juntaram às guerrilhas urbanas. Nelas, treinados em Cuba e em outros satélites soviéticos, organizaram bem-sucedidos assaltos a bancos e sequestros. Em 1969, depois do sequestro do embaixador americano no Rio e de ataques a bomba em quartéis militares, as autoridades intensificaram a repressão. Pessoas começaram a desaparecer, incluindo o filho do nosso médico de família. Por outro lado, núcleos embrionários de milícias revolucionárias partiram para o campo tentando emular a Revolução Cubana. Em uma ocasião, no começo dos anos 1970, o exército brasileiro enviou uma divisão de cerca de 10.000 soldados para capturar uns vinte jovens maoístas na remota região do rio Araguaia. As forças armadas acabariam por executar a maioria dos militantes capturados.

Esses eram tempos obscuros em que tudo era censurado: livros, peças de teatro, filmes e músicas. Os regime também controlava com rédea curta o conteúdo dos jornais e das estações de rádio e de televisão. Intuindo a tensão mas sem ter informações, as pessoas fantasiavam. Havia todo tipo de teorias circulando sobre o alcance do poder dos guerrilheiros, possíveis alianças militares com Cuba, China e União Soviética, ligas de camponeses prestes a invadir as cidades trazendo desapropriações e pelotões de fuzilamento para os ricos.

Como tudo na vida, quando a imaginação substitui a realidade nada de bom vem à tona. Nesse caso, tanto os militantes quanto seus repressores superestimaram o que minúsculos grupos de extremistas poderiam alcançar num país tão grande e tão complexo como o Brasil. Juntos, jogaram o país num período de trevas. A polícia e o exército montaram departamentos com amplos poderes para espionar a população e para coibir qualquer tipo de oposição. Entre eles estavam o SNI, o Serviço Nacional de Informações e o Destacamento de Operações Internas, DOI-Codi, em cujas dependências presos eram torturados, alguns até à morte. Também reativaram o DOPS, Departamento de Ordem Pública e Social, criado por Getúlio Vargas para esmagar seus adversários e agora utilizado para aterrorizar qualquer atividade contrária à ditadura.

*

O final dos anos 1960 foi um tempo politicamente intenso não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Havia uma forte consciência social, revoluções, guerras e guerrilhas pela liberdade e pela igualdade e um aprofundamento da guerra fria no planeta inteiro. Paradoxalmente, este foi o período de maior prosperidade econômica que o ocidente conheceu. Essa bonanza veio acompanhada de uma redistribuição de renda inédita e uma consequente ampliação gigantesca do mercado consumidor. Foi nesse contexto que o mercado jovem nasceu. Esta leva de novos consumidores abastados, filhos da vitória contra o nazi-fascismo, sem vínculos com o passado e ávidos por novidades, sacudiriam as bases dos valores tradicionais e inaugurariam o uso de inúmeras novas tecnologias.

A efervescência daqueles tempos afetaria a todos de uma maneira ou de outra. As novas gerações se veriam obrigadas a escolher entre serem agentes das mudanças ou serem defensores da situação. Muitos se esbaldariam na explosão de drogas ilícitas e no sexo livre facilitado pelo aparecimento da pílula anticoncepcional.

No Brasil, com a impossibilidade de se resolver as coisas pela via política, a contracultura surgiria como talvez a única alternativa de se manter vivo o germe da resistência fosse através da arte ou de atitudes. O slogan que sintetizaria aquele tempo foi “Seja marginal, seja herói!” do artista plástico Hélio Oiticica.

Considerada inofensiva pela repressão por não representar nenhuma organização política, a contracultura, além de conseguir manter uma certa distância da censura, tinha atrativos comerciais. Apesar do tempero subversivo, gravadoras e outros empreendedores da área cultural não hesitaram em explorar as oportunidades oferecidas por seu forte apelo, tanto artístico quanto ideológico, junto ao lucrativo mercado jovem. Essa aliança forçada entre revolução e lucro proporcionaria uma explosão de talento que daria luz a um dos períodos culturais mais criativos e pungentes da história, tanto nacional quanto internacional.

Apesar da repressão brasileira ter sido vitoriosa em abafar uma possível reviravolta política com censura, exílio, tortura e prisão, ela não contava com um porém; as ideologias de revolução tinham se tornaram dominantes na cultura jovem do mundo “desenvolvido”. Vindas dos mesmos países que patrocinaram o golpe, elas eram parte do pacote cultural apresentado à juventude privilegiada pela ditadura. Não dava para tapar o sol com a peneira. No país inteiro, qualquer pessoa munida com um dicionário tinha acesso às vozes dos contemporâneos estrangeiros, fosse em discos, livros, em revistas ou mesmo em filmes que conseguiam driblar a censura.

Embora a América fosse a maior responsável pela derrubada da democracia brasileira, sua juventude estava na vanguarda dessa rebelião. Eles tinham sofrido o seu próprio golpe com os assassinatos mal explicados do presidente John Kennedy, do seu irmão Bob Kennedy e do reverendo Martin Luther King, todos defensores de uma América mais próxima dos ideais libertários e progressistas dos seus fundadores. Isso, junto com a possibilidade de serem mandados para a Guerra do Vietnã – um conflito que visava tão somente manter os interesses americanos na região –  criou um enorme contingente de jovens inconformados.

A manifestação maior dessa onda contestatória aconteceu na música, mais especificamente o rock, que na época tinha um forte caráter revolucionário. O paradoxo de protestos nas ruas gerando uma demanda comercial por vozes subversivas, abriu espaço para ícones tais como Bob Dylan, Arlo Guthrie e Joan Baez. No Reino Unido, as superestrelas dos Beatles e dos Rolling Stones interessadas em atingir esse novo público e a dizer alguma coisa mais profunda do que canções românticas, juntaram forças com a rebelião. Ajudados por estratégias de marketing modernas e orçamentos milionários, expuseram a contestação no coração do sistema, num palco muito maior do que qualquer revolucionário de outrora jamais teria sonhado.

Talvez seja difícil de entender no cínico mundo de hoje que no auge das suas carreiras aqueles roqueiros genuinamente acreditavam que suas criações faziam parte de um movimento mais amplo para derrubar o status quo. A presença de novas tecnologias em sua música reforçou sua imagem de catalisadores de grandes mudanças. As possibilidades sonoras inéditas permitiram que o espírito revolucionário fosse espalhado nas guitarras distorcidas de gênios musicais como Jimi Hendrix, Jimi Page e David Gilmour, cujos solos forneceram uma trilha sonora – e mesmo um lado espiritual – a esse momento excepcional.

*

Essa foi a educação musical da minha geração. Eu tinha oito anos quando os Beatles se separaram; Led Zeppelin lançou Stairway to Heaven quando tinha nove; os Rolling Stones lançaram Exile on Main Street quando tinha dez e o álbum Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, foi lançado quando tinha onze. Para alguém de origem judaica tradicional crescendo numa uma ditadura militar, esses foram mísseis aterrissando no meu toca-discos. No entanto, igual aos programas matutinos do Haroldo de Andrade que ouvia quando criança, ninguém da família, nem a maioria dos meus amigos, conseguia entender como alguém poderia gostar daquele “barulho”. Dessa vez, nem a empregada estava do meu lado.

Apesar da incompreensão, era como se um circo mágico musical tivesse parado na esquina de casa. Queria fugir com ele. Não estava sozinho nessa busca, milhões de outros jovens pelo mundo afora também estavam sintonizados nessas mudanças. Muitos acabariam mais próximos uns dos outros do que das suas próprias famílias.

Trancados no quarto, ouvindo rock, se sentindo oprimidos por nossos pais e professores, meus irmãos de geração digeriam as palavras de ordem nos seus postos avançados. A mensagem era clara: resistir aos caretas, lutar para sermos nós mesmos e subverter os planos que o sistema tinha reservado tanto para nosso futuro quanto para o futuro do planeta.

No Brasil, a repressão acabaria percebendo que havia algo no ar mas não conseguia dizer ao certo o que era, muito menos sabia como lidar com aquilo. Podiam prender um hippie por fumar maconha, um militante por suas ações ou pelos seus livros, mas não dava para acabar com a insatisfação com a pequenez do mundo. Como nossos pais, torciam para que fosse fase de adolescente e que depois nos juntassemos docilmente ao rebanho.

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Samba Perdido – Capítulo 04, parte 2

O próximo jogo era contra a Inglaterra. Torcendo em segredo pelo seu time mas sem entender nada do assunto, Renée e Rafael de repente se viram inundados por perguntas e comentários.

“Vocês vão torcer pelo inimigo!!??” A pergunta vinha amistosa, mas deixava claro que eram adversários. “Voces acham que vão vencer?! É?! De quanto? ”

“O que vocês acham dos jogadores ingleses? Dá para comparar Pelé com Bob Charlton?”

Embora nenhum dos dois soubesse responder a essas perguntas e fossem desinteressados por futebol, haviam motivos suficientes para que assistissem à partida. Fora o meu estado exaltado, queriam manter sua discreta pose de atuais campeões mundiais. Além disso, por coincidência, o árbitro seria o israelense Avraham Klein: o nosso sobrenome!

*

O jogo caiu numa tarde ensolarada de domingo. Os fogos de artifício que começaram a pipocar nas primeiras horas da manhã pareciam sinos de igrejas lembrando a todos que esse era um dia da maior importância. A Rádio Globo, minha fonte indispensável de notícias futebolísticas, estava fervilhando. Os apresentadores não falavam sobre outra coisa. A todo momento interrompiam o que estivessem falando para dar lugar às transmissões ao vivo de repórteres que haviam conseguido qualquer informação nova vinda do México.

Como de costume, a família saiu para o Clube Paissandu por volta das dez da manhã. Fanático, vestindo minha camisa canarinho, assim que o carro saiu da garagem, abri a janela e coloquei para fora minha bandeira verde e amarela que tinha amarrado num cabo de vassoura. Quando cruzávamos com alguém com a mesma camisa, sacudia meus punhos de fora do carro e gritava, “Brasil!!!”. As respostas ecoavam de volta com a mesma euforia.

A Sarah não veio. Sortuda e acometida de vergonha alheia pelo meu entusiasmo, ela tinha sido convidada para ver o jogo na casa de uma vizinha amiga e ia passar o dia lá.

No clube, fomos direto para a piscina onde fiquei chocado ao deparar com o que era, talvez, a única bandeira inglesa flamulando no céu do Rio de Janeiro. Ela estava dependurada entre dois coqueiros sobre um grupo de homens pálidos de meia idade bebendo whisky e olhando a todos com ar de gozação. Do outro lado, no bar coberto, os outros garotos, o pessoal do serviço e eu, em cochichos, ficamos questionando a masculinidade daqueles indivíduos, bem como as virtudes de suas mães.

Havia uma roda amontoada em torno do rádio do salva-vidas. Alguns de nós saíamos para dar um mergulho, mas voltávamos logo para aquele grupo que mais parecia um enxame de abelhas nervosas. Ávidos por informações e tentando ouvir o radinho melhor, faziamos silêncio quando um repórter conseguia entrevistar um de nossos craques.

Por volta da hora do almoço, o aumento no número de rojões avisou a todos que a hora do pontapé inicial estava chegando. A televisão começou a transmitir ao vivo de Guadalajara e as ruas se esvaziaram.

Para poder pegar o início do jogo, tinhamos comido mais cedo no restaurante do clube. A caminho do apartamento do Paulo, passamos por aglomerações em frente às lojas de eletrodomésticos se preparando para assistir o jogo nos televisores que tinham deixado ligados para a ocasião. Quase todos os torcedores na rua seguravam um radinho de pilha no ouvido, da mesma maneira que as pessoas hoje se agarram a seus telefones celulares. No carro, consegui convencer minha mãe a ligar o rádio na Rádio Globo. Tinha que ouvir o que João Saldanha, agora um comentarista, estava falando sobre o iminente jogo. Quando começou com sua voz lenta e grave, me esqueci da bandeira e me concentrei em cada palavra que dizia.

Paulo morava na Rua Barata Ribeiro, num apartamento modesto em frente ao nosso açougueiro que ficava do lado de um ponto de ônibus. Chegamos dez minutos antes do início​ da partida. A televisão já estava ligada e enquanto os adultos se cumprimentavam, fui logo me acomodando e consegui ver os jogadores entrarem em campo, se perfilarem e cantarem seus hinos nacionais. Pouco depois, com todos em seus lugares, o juiz apitou dando início ao jogo. Os nomes dos jogadores que logo entrariam para o panteão do futebol mundial, ressoavam da televisão: “Jair pra Pelé, Pelé com a bola, para Tostão… Gérson… para Rivelino”.

Copacabana inteira estava em silêncio torcendo pela seleção nacional. As ruas estavam desertas: lojas, delegacias, hospitais, corpo de bombeiros – tudo estava fechado. Caso você tivesse um ataque cardíaco, se seu apartamento pegasse fogo ou se você estivesse prestes a dar à luz, o azar seria seu.

O início foi nervoso e defensivo. O estilo chato tinha uma razão; a tática de Zagallo era segurar seu time atrás no primeiro tempo. Confiando na melhor forma física e no talento natural dos seus jogadores, ele esperava seus adversários cansar para depois líquida-los no final da partida. No entanto, nada estava garantido. Todos estavam tensos e o adversário era difícil. No segundo tempo, os ingleses começaram a sofrer com o calor e a exaustão tomou conta. O Brasil passou a dominar e o goleiro inglês, Gordon Banks, estava fazendo milagres para manter a partida no zero a zero. Dava para sentir que a seleção estava prestes a marcar – não era uma questão de se, mas de quando – ainda assim a espera era angustiante. Naquela altura, até Rafael e Paulo estavam totalmente concentrados na partida. Quando o ataque brasileiro finalmente conseguiu superar a defesa da Inglaterra e Jairzinho marcou, brasileiro nenhum conseguiu conter sua emoção e todas as casas explodiram em gritos selvagens.

Não podia deixar de ir à loucura e fazer com que os adultos – todos na sala menos eu – achassem graça da minha espontâneidade. O apartamento de Paulo destoava furor do lado de fora. Para já, minha mãe, decepcionada com o  placar, apesar de estar quase na faixa dos cinquenta, era a mais jovem do grupo. Quando o jogo terminou e a transmissão retornou para os estúdios no Rio de Janeiro, não houve cerveja ou nem mesmo uma taça de vinho para comemorar. Enquanto os adultos se voltaram para assuntos mais sérios, sobretudo Israel, peguei uma tigela de bolachas, uma Coca-Cola na geladeira e mudei para o canal onde passava Tarzan. Fiquei horas curtindo a liberdade de ter uma TV à minha disposição. Enquanto isso, meus pais ficaram esperando que o Carnaval fervoroso dos “selvagens” acalmasse na rua antes de ir para casa.

Conforme o Brasil foi progredindo, as comemorações foram durando mais e o samba foi ficando mais intenso. Entre um jogo e outro, a combinação da exposição exagerada da seleção com o verdadeiro show de bola que seus craques estavam dando no México, fez com que um estado de espírito especial tomasse conta do quotidiano. Artificial ou não, dava para sentir a tal “corrente pra frente” a toda hora e em todos os lugares.

Depois da vitória contra a Inglaterra, até a Sarah acabou imersa na febre do futebol. Ela passou a vestir uma camisa canarinho nos dias de jogo e a torcer pelo Brasil na casa da vizinha. Por ser cinco anos mais velha e por ter a escolta dos irmãos mais velhos da sua amiga, meus pais permitiram que fosse à rua para participar das comemorações. Isto me fez questionar a justiça divina pela primeira vez na vida.

*

Na final, o Brasil derrotou a Itália por quatro a um em um dos mais famosos jogos da história do futebol. A campanha terminou com Pelé passando a bola para Carlos Alberto Torres que deu um chute cinematográfico de fora da grande área estufando a rede italiana. O triunfo deu início à uma catarse nacional e proporcionou ao país uma autoconfiança que duraria anos. Por ser seu terceiro campeonato mundial, a taça Jules Rimet veio para o Brasil de vez, selando a glória. A vitória também significou um sucesso para a máquina de relações públicas do governo militar. Agora os generais se sentiriam ainda mais legitimados para expandir seu domínio político-policial.

Ninguém chegou a perceber que essa foi a maneira grandiosa que a época de ouro de Copacabana havia encontrado para se despedir. Dentro de poucos anos, o charme desse bairro à beira-mar começaria a desbotar. Pessoas de círculos sociais alheios começariam a substituir a elite carioca em seus prédios hollywoodianos. A classe alta migraria para as áreas requintadas de Ipanema e do Leblon, e para bairros mais afastados como São Conrado e Barra da Tijuca. Enquanto isso, à noite, o calçadão da Avenida Atlântica acabaria se transformando no maior bordel a céu aberto do mundo.

Quanto a mim, aquela Copa do Mundo selou minha identidade como Brasileiro. A partir dali, a Inglaterra passou a ser o país de onde meus pais vieram, só isso.

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Samba Perdido – Capítulo 04, parte 1

Capítulo 04

 "Todos juntos vamos, 
Pra frente Brasil, 
Brasil! Salve a seleção” 

Hino da seleção - 1970

Em 1962, enquanto o mundo despertava para a década mais colorida do século vinte, Renée voltou do hospital com um filho, os Rolling Stones e os Beatles gravaram seus primeiros singles, o mundo quase começou uma Terceira Guerra Mundial, desta vez nuclear, por causa de mísseis soviéticos em Cuba, Adolf Eichman, o engenheiro do Holocausto, foi executado em Israel, João Gilberto e Tom Jobim fizeram a sua estreia americana no Carnegie Hall em Nova York e Marilyn Monroe morreu de overdose em Los Angeles.

No entanto, para a grande maioria dos Brasileiros, o que mais marcou aquele ano foi o segundo campeonato mundial da sua seleção de futebol. Se alcançar a glória no esporte mais popular do planeta eletrizava países “desenvolvidos” como a Itália, a Alemanha e a França, é difícil imaginar a explosão de orgulho nacional e de pura alegria que tomou conta do país. Aquele time mulato, vindo das ruas, se impondo no cenário internacional pela segunda vez foi uma injeção insubstituível de autoestima e de otimismo.

Depois do apito final que selou a vitória brasileira de três a um na final contra a Checoslováquia, no Chile, as comemorações tomaram conta das ruas e só pararam nas primeiras horas da manhã do dia seguinte. Como seria de se esperar, as batucadas de rua foram a alma do Carnaval fora de estação. Sambistas desceram dos morros lembrando ao “asfalto” que suas proezas instrumentais eram irmãs das proezas futebolísticas dos craques que estavam trazendo o título para casa. As comitivas de batuqueiros contavam com mulatas espetaculares se requebrando ao ritmo irresistível dos tambores. Bem antes dos biquínis fio-dental aparecerem nas praias cariocas, seus trajes já deixavam quase tudo à mostra, realçando seus movimentos ousados e deixando a moçada com água na boca. Acompanhando o samba, torcedores de todas as raças, idades e classes sociais extravasavam sua alegria. Inebriados pela vitória e regados pela cerveja, recordavam os gols dos heróis daquela campanha – Garrincha, Didi, Vavá entre muitos outros. Pelé havia se contundido e tinha ficado de fora.

*

Oito anos depois, em 1970, depois de uma decepcionante campanha em 1966 na Inglaterra, onde o país de Renée tinha se sagrado campeão, o Brasil estava a caminho do México para tentar o seu terceiro título mundial. Dessa vez, além de um time repleto de craques, entre eles um Pelé superpreparado e consciente de que esta seria sua última Copa, havia uma novidade: as transmissões televisivas. Graças a elas, a nação inteira poderia ver seus craques jogando ao vivo no estrangeiro.

Aproveitando o casamento de um evento tão popular com a nova tecnologia, o regime militar, instaurado já há seis anos, resolveu investir pesado na seleção. Com problemas de popularidade devido à crescente polarização econômica e ao endurecimento da repressão política, os militares queriam assegurar uma aposta vital de que o país se sagraria campeão.

A ideia era unir a nação em torno do futebol e, por via de maquinações midiáticas, associar as conquistas dos atletas a uma imagem positiva do regime. Foi assim que o país se viu mergulhado  numa febre de patriotismo, a chamada “corrente pra frente”.

Nos recantos mais remotos do país, milhares de vilarejos receberam seus primeiros televisores para que o povo pudesse fazer parte dos “noventa milhões em ação”, como dizia a canção oficial da seleção. Durante a Copa, seus moradores se amontoariam em torno desses únicos aparelhos, muitas vezes em praças de terra no meio do mato, para assistir o “escrete canarinho” em ação.

Pelo país inteiro, praticamente todo carro tinha uma fita verde e amarela amarrada à antena e todo estabelecimento ostentava pelo menos uma bandeira ou um cartaz da seleção, fosse de um jogador ou do time completo. Nossa rua, a Siqueira Campos, se juntou à comoção. Quase todo apartamento tinha uma bandeira pendurada da janela. Os moradores mais entusiasmados se deram ao trabalho de colocar milhares de bandeirolas coladas em fios que cruzavam de um lado a outro da rua, começando na praia e indo até seu final no morro da Saudade. O bairro todo fez igual e Copacabana se fantasiou para a Copa.

Ao mesmo tempo, em qualquer oportunidade, as estações de rádio e de televisão estimulavam o fervor futebolístico e o misturavam com mensagens pró-regime. Haviam adesivos colados por todos os lados com slogans como “Brasil: ame-o ou deixe-o” e “Deus é brasileiro”.

O que poucas pessoas sabiam é que o técnico do time, João Saldanha, apesar de um apaixonado pelo seu país e pelo talento dos seus jogadores, era um comunista dedicado que organizava reuniões do partido ilegal em sua casa. Porém, depois de Saldanha ter se negado a convocar Dario – o Dadá Maravilha –, um dos favoritos do presidente Médici, e de dar declarações políticas inconvenientes enquanto fazia a inspeção de um dos estádios onde o time ia jogar no México, os generais interviram. Eles ordenaram que Zagallo, um ex-jogador branco e de classe média que havia participado das campanhas vitoriosas de 1958 e 1962, o substituísse.

*

Graças às teorias conservadoras da minha mãe, eramos uma das poucas famílias no bairro sem um televisor. Para mim, com oito anos de idade e imerso até o pescoço na febre assolando todos os meninos brasileiros, aquela aversão à tecnologia era deseperadora. Já tinha perdido a oportunidade de ver o primeiro homem pisar na lua na casa de uns vizinhos porque era tarde demais. Porém me barrar de ver a Copa do Mundo seria cruel demais.

Rafael aliviou minha barra anunciando que iríamos assistir os jogos no apartamento do Paulo. Ainda que fosse um esquerdista convicto, seu amigo pertencia ao século vinte e possuía uma televisão, apesar da propaganda fascista, que na sua opinião, ela vomitava sem parar.

O primeiro jogo da Copa foi entre União Soviética e México. Todos consideravam esses dois times potentados menores do futebol mas, por alguma razão, assistir a cerimônia de abertura era uma obrigação para qualquer um que quisesse merecer o título de torcedor brasileiro.

No dia do jogo, para minha alegria e alívio, fomos lá. Depois da abertura espetacular, presenciamos o Paulo torcer para o time que levava estampada na frente da camisa a inscrição “CCCP” – a URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Recusando-se a pronunciar a palavra “soviético” muito menos “socialista”, o locutor se atinha a chamar o time de “Rússia” e mesmo assim mencionava o nome o menos possível provocando alguns resmungos da parte de nosso amigável anfitrião. Depois que o jogo terminou, voltei para casa empolgado.  A aguardada copa tinha começado e como o resto da nação não podia esperar pelas batalhas que estavam por vir.

O Brasil jogou sua primeira partida, contra a Checoslováquia, alguns dias depois. O jogo era à noite e em um dia de semana, muito tarde e um tanto incômodo para assistir na casa do Paulo. O jeito foi ouvir no rádio. Ignorando os protestos de minha irmã, meus pais permitiram que trouxesse meu radinho de pilhas para a mesa de jantar. Quando o jogo começou, liguei o aparelho coloquei o volume alto o suficiente para que pudesse ouvir e baixo o suficiente para que a Sarah aceitasse. Depois de uns dez minutos, para o desespero da nação verde e amarela, o adversário marcou o primeiro gol. As palavras secas do narrador cortaram o peito do Brasil como uma navalha. Lá fora o silêncio era tanto que parecia que o fim do mundo tinha chegado. A Sarah olhou para minha cara entristecida e debochou.

“Ha, ha, ha! Tomaram um gol, bem feito!”

Aquela provocação foi um erro. Xinguei ela de vaca e joguei minha coxa de frango na cara dela. Na hora meu pai me mandou para o quarto. Fui com o rádio feliz da vida, pelo menos lá, poderia ouvir o resto do jogo sem a interferência de uma menina. Logo depois, para alívio geral, o Brasil marcou seu primeiro gol, virou a partida e terminou ganhando por um convincente quatro a um.

*

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Samba Perdido – Capítulo 02, parte 2

Assim como inúmeros imigrantes que através dos séculos partiram da Europa em busca de ares melhores, na hora de partir meus pais estavam mais interessados na promessa de felicidade do que na realidade que iriam encontrar. Foi como se tivessem acreditado num comercial enganoso: se encantaram com as cenas lindíssimas de praias mas não prestaram atenção no contrato mencionando o pântano traiçoeiro logo atrás. A verdade é que o Brasil, mesmo naqueles anos dourados, era muito mais complexo do que a Zona Sul carioca. Atolar a vida num terreno lamacento era uma possibilidade muito real.

Os filhos vieram num momento de trânsito em torno da criação de um personagem especial, de sucesso financeiro e de um processo de adaptação ainda não resolvido. Primeiro veio minha irmã, Sarah, e cinco anos mais tarde foi a minha vez. Nasci em 1962 no há muito demolido Hospital dos Estrangeiros, no morro da Babilônia, entre os bairros de Botafogo e de Copacabana. Como veremos, estes dois nomes não poderiam ter sido mais emblemáticos. Quanto ao futuro, havia um sinal de aviso na passagem mais bonita do Hino Nacional: “Dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada Brasil”.

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Rafael se reconectava com seu universo em caminhadas de madrugada pela praia deserta. Na paz e na simplicidade daquelas horas, ele se sentia bem dividindo o bairro com empregadas em busca do primeiro pão quentinho – seu cheiro maravilhoso saindo das padarias dos imigrantes portugueses e se dissipando na maresia fria das ruas desertas –, com raros porteiros zelosos limpando as entradas dos edifícios e com os bandos de cachorros vira-lata que corriam atrás de caminhões de leite e de jornais.

Adorava quando ele me levava junto. Depois de atravessar a avenida deserta, tiravamos os chinelos e cruzavamos a areia húmida até chegar na beira da água. Lá, com a praia só para a gente, começávamos nossas caminhadas. Na falta de outro assunto, e talvez precocemente, eu puxava conversas existenciais. Enquanto o sol dissipava a bruma e o mar desmanchava nossas pegadas na areia molhada, lhe perguntanava sobre o significado da vida, sobre a existência de Deus, do porquê das coincidências, de como era possível explicar a sorte e outras coisas que não conseguia entender. O que​ sabia, Rafael respondia da maneira mais fácil que conseguia e quando não tinha resposta, mudava de assunto.

As andadas eram sempre até a colônia de pescadores na ponta da praia de Copacabana, o Posto Seis. Sua sede era uma das primeiras construções do bairro: um velho barracão de madeira onde vendiam sua pesca a donos dos restaurantes, ao comércio e a moradores dos arredores. De dia, ao lado do depósito, dúzias de pequenos e coloridos barcos pesqueiros de madeira descansavam sobre a areia em meio a redes. Gaivotas disputavam os restos da pescaria com cachorros magros, observados por jumentos sonolentos e bodes amarrados. Ao seu redor, enxames de moscas zuniam no cheiro forte de sal e de peixe podre que permeava o ar.

Antes do amanhecer, os pescadores morenos de ar não urbano, partiam em grupos de cinco ou seis. Os mais experientes ficavam na praia coordenando a atividade através de gritos, assobios e sinais. Na hora que chegávamos à colônia, o sol já iluminava os barcos que voltavam. Para tirá-los da água, os homens deitavam troncos de árvores na areia à frente das embarcações e as empurravam com toda força até que chegassem na área seca próxima da avenida.

Os peixes vinham logo depois, presos em redes gigantescas. O momento de puxá-las para a areia era um mini festival. Os pescadores sempre precisavam de reforços e nunca faltavam voluntários. Um grande círculo humano se formava trazendo as centenas de criaturas, pulando em todas as direções ao tentar se libertar. Ja espalhados na areia, enquanto se contorciam em busca de ar, os patrões separavam os melhores pescados e deixavam o resto para quem havia ajudado.

Às vezes, meu pai me deixava participar. Como todo mundo, depois de suar e de maltratar as mãos nas cordas, fazia questão de aceitar os peixes que ofereciam. De volta em casa, invariavelmente meus troféus acabavam no lixo, ou por serem pequenos demais ou por não serem bons o suficiente para nossos jantares pretensiosos.

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Poucas horas mais tarde, as famílias iam para a praia. Elas saiam dos prédios tal como cardumes surgindo das barras dos rios e nadando em direção ao mar. A manhã começava com babás ou mães girando o pé do guarda-sol para dentro da areia até que o cabo se firmasse. Quando não conseguiam, sempre havia por perto vendedores ambulantes ou salva-vidas para dar uma mão. Findo o processo, abriam os guarda-sóis que passavam a fazer parte do tapete de pontos coloridos que cobria os kilômetros areia dourada. Depois era hora de estender as toalhas, desdobrar as cadeiras e, por fim, liberar as pranchas, bolas e baldinhos para a gente brincar com os amigos.

Aquilo era um parque de diversões sob o sol escaldante. Corriamos atrás de cardumes de peixinhos na água transparente, nos enterrávamos na areia, levantávamos barragens para conter as ondas, caçávamos tatuís – bichinhos que viviam debaixo da areia molhada – cavávamos túneis, construíamos castelos e fazíamos guerras de areia.

Para descansar, a gente se sentava na beira da água e ficava espiando o fluxo constante de pessoas que iam e vinham. De tempos em tempos, os adultos acenavam para a gente voltar ao guarda-sol. De volta às bases, mandavam a gente se limpar e paravam um dos vendedores ambulantes que cruzavam a praia carregando caixas de isopor com picolés da Kibon ou mini tanques de lata com Matte Leão. O gelado doce dos seus refrescos era perfeito para amenizar o sol forte.

Apesar de imprescindível, o sol não era o rei da praia, quem comandava o espetáculo era o mar amplo e aberto na nossa frente. Ele era a liberdade completa que só a natureza pode oferecer. Depois da arrebentação, gaivotas mergulhavam para pescar criaturas que saiam do mar se debatendo nos seus bicos. Às vezes, golfinhos pulavam para fora d´água e, mais raramente, cações inofensivos mas com barbatanas parecidas com as de tubarões, passavam causando comoção na praia.

A água salgada do oceano era muito mais gostosa e refrescante do que qualquer chuveiro ou do que qualquer piscina. Conforme íamos adquirindo mais intimidade com a agua, íamos descobrindo as ondas e aprendendo a mergulhar por baixo ou pelo meio da sua espuma.

Em tardes com vento, meninos desciam das favelas. Não se aventuravam na água; a diversão deles era travar batalhas aéreas com suas pipas artesanais. Alguns passavam cola com vidro moído nas suas linhas para que ficassem mais eficazes na hora de cortar as dos outros. Uma pipa girando descontrolada no ar era o sinal de que um grupo havia tomado o escudo voador de outro. Quando finalmente caía na areia, a meninada saia correndo às dezenas para apanhar o troféu.

No fim do dia, quando o sol ia descendo, a praia parecia relaxar. O calor ficava menos intenso, uma brisa aparecia e a sombra dos prédios começava a cobrir a areia. As áreas ainda recebendo sol ficavam com um dourado que pintava a tudo e a todos na praia com um colorido especial. De vez em quando, grupos de amigos vindos do morro aproveitavam o frescor da hora para fazer uma roda de samba, oferecendo uma trilha sonora especial àquela hora do dia.

Enquanto me esbaldava na areia, dona Renée, já desinteressada da praia, preferia ir ao clube jogar tênis, Sarah já frequentava a escola e seu Rafael garantia o conforto da família no escritório no centro.

Minha companheira de praia era Pilar, uma babá portuguesa bonita de vinte e tantos anos. A única coisa de que me lembro bem dela é de ficar espiando o seu corpo nu com marcas de maiô enquanto tomávamos banho juntos depois da praia. Na banheira, podia examinar todas aquelas coisas sobre as quais tinha conversado com meus amigos e que não sabia como funcionavam. Pilar acabou se casando com meu barbeiro, o gentil Sr. Ribeiro, também português porém baixo, barrigudo, de bigode e com os cabelos louros e encaracolados. Certamente para atrair sua simpatia, sempre me guardava balas Soft, chicletes Ping-Pong e as mais recentes revistas Manchete, Cruzeiro e Placar, proibidas em casa mas que eu adorava.

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