Março se inicia com a impressão marcante de que após atravessar a selva escura de 2020, aportei num cenário distópico de Blade Runner, na porta de um cinema decadente onde se vê em letras de Neon: “Vós Que Aqui Entrais, Abandonais Todas as Esperanças”. Não paguei pra ver esse filme. Não foi por meu voto que esse Ares do Rio das Pedras, com seu plano de matança, destruição e sua saciedade irredimível por cadáveres, nos aterroriza. Mas estamos numa democracia (dizem) e pagar pelas escolhas dos outros é risco que se corre. Ainda que risco de vida, como é o caso.

A morte paira sobre nós. Não estou com cabeça e saúde para filosofar sobre a Indesejadas das Gentes, só digo o lugar comum, ser ela a nossa única certeza. Em tempos normais tentamos não pensar nela, vendo-a, quando muito, como possibilidade de um futuro incerto. Como disse Heidegger: ”Algum dia se morre, mas por enquanto não”. Ate nos permitíamos zombar dela. Minha mãe, ao ver a imagem da capela feita de ossos em Évora e a inscrição: ”Nós que Aqui Estamos Por vós Esperamos”, achou um desaforo e respondeu para até os mortos ouvirem: ”Eles que esperem pela puta que os pariu!”. Não há mais espaço para isso, até esses gracejos nos foram tirados. Porque a morte está presente. Terrivelmente presente. Não há um só dia que eu não dê condolências a alguém pela perda de um ente querido ou que me debata com meu ateísmo enviando preces que não sei se serão ouvidas pela melhora de uma pessoa.

Foi pensando nisso, nesse jogo que já não há, de se esconder e driblar o inevitável, que me veio a memória o caso de uma aeromoça que aconteceu há décadas atrás. Ela ficou presa no transito, se atrasando para o voo de sua companhia, sendo substituída por outra comissária. Era um voo rotineiro, entre NY-Paris, levando a bordo entre outros passageiros um grupo grande de adolescentes , acompanhados de alguns professores, que iriam comemorar a formatura da High School na capital francesa. Era o voo TWA800, no ano de 1996. O avião explodiu na altura de Long Island, levando a morte 230 pessoas. Três anos depois, em 1999, essa mesma aeromoça estava no Parque Nacional de Bwindi, em Uganda, para observar os gorilas. Nesse mesmo dia o parque foi invadido por 150 rebeldes, armados de porretes e facões. Separaram os estrangeiros em duas filas: numa, os que falavam inglês, na outra os que não falavam. Sem entender o que acontecia, ela se postou na fila dos anglófonos. Até ver o homem que estava a sua frente ser trucidado a porretadas. Em um átimo de segundo compreendeu que falar inglês não era um passaporte para a vida e quando já ia ser executada começou a falar em francês e mostrou sua identidade suíça. Foi poupada. O mesmo não se pode dizer dos quatro britânicos, dos dois norte americanos e dos dois neozelandeses que estavam nesse evento. O fato é que essa driblou o encontro com a tesoura da fiandeira Átropos por duas vezes. Mas o jogo vai sendo jogado e uma hora a morte leva a melhor.

Toda essa história da aeromoça (da qual não sei sequer o nome, por preguiça em entrar em acervos jornalísticos, mas garanto que é real, inclusive porque tenho vivo na memória o comentário de um amigo quando li a matéria pra ele: ”Nossa, essa mulher devia ser uma pessoa insuportável, nem a morte quis”) me lembrou da minha história favorita do período colonial. E sei que não estou sozinha nessa, porque quem na escola ouviu o nome do sujeito do enredo e sua triste sina, e não gargalhou, brasileiro não é.

Primeiramente, não há como falar da formação do Brasil sem citar a Companhia de Jesus. Nascida da visão política e militar do basco Ignácio de Loyola, possuía como objetivo principal a realização das tarefas definidas pela Contrarreforma: Recuperar os fiéis perdidos para o Protestantismo e converter os “bárbaros”. Sua função sempre foi apostólica, desde a sua fundação em 1540. Eram Combatentes de Cristo nas Fronteiras recém abertas do Novo Mundo. Antonio Bosi chama  atenção para a bi-frontalidade da expansão colonial: “Por um lado incorporavam-se novas terras, sujeitando-as aos poderes temporais dos monarcas europeus, por outro ganhavam-se novas ovelhas para a religião e para o Papa”. Óbvio que alguns dos costumes indígenas aterrorizavam os religiosos, eles despencaram aqui como astronautas nessa terra estranha e não tinham sustentáculo antropológico para entender e aceitar a cultura dos nativos. Mas sem duvida a que causou mais espanto foi a antropofagia. Novamente citando Bosi: ”Era uma pratica rica de significados, o rito que atava a mente do índio no seu passado comunitário, ao mesmo tempo que garantia sua identidade no interior do grupo”. Não estou aqui para discutir o papel desempenhado pelos jesuítas no Brasil. Acusados de ocidentalizarem os índios com seus planos de catequese, de incentivarem indiretamente a escravidão negra, o que não falta é polêmica envolvendo esses religiosos. Eles porém, por uma exigência da própria Ordem, faziam cartas e relatórios minuciosos do que ocorria, não davam um passo sem registrá-lo. Sem eles seria impossível reconstruir a história do Brasil Colônia.

Aí que entra o Primeiro Bispo do Brasil, D. Pero Fernandes Sardinha. Para ser sincera sempre me liguei mais no ocorrido do que na pessoa, recorri então a artigos , inclusive um intitulado Religião, Administração e Justiça Eclesiástica, com varias transcrições de cartas trocadas pelos jesuítas e documentos da Biblioteca da Ajuda. Vamos fazer o mapa: Pero Fernandes era filho da fidalguia, estudou na Universidade de Paris, instalando-se no Colégio de Santa Bárbara, como bolseiro régio. Se formou em Teologia, ingressou no clero e lecionou em Paris, Salamanca e Coimbra. Em 1545, amparado por João de Castro, então indicado como governador geral da Índia, foi nomeado provedor-mor e visitador geral de Goa. Logo de cara ficou claro que não estava preocupado com a conversão dos naturais da terra, em suas pregações a temática era invariavelmente os desvios dos portugueses que lá estavam, em sua maior parte de cunho sexual. ”Poucos meses após o desembarque em Goa, já dizia mal do lugar, tal como sucederá no Brasil, demonstrando que nunca se afeiçoou as terras para onde foi a serviço do rei”.  A real é que Sardinha gostava mesmo é de dinheiro. Puxa saco de João de Castro e de seu filho Álvaro de Castro, chamava esse último de Ilustre e Magnífico, não ficou registrado mas não duvido que chamasse de Mito também. Essa relação clientelar entre os Castro, lhe trouxe proteção e proventos materiais. Gostava de fazer umas maracutaias também, recebendo a alcunha de clérigo-mercador. E há forte indício de que vendia perdão. Nada de rezar Ave Maria por um pecado cabeludo, dá uma moeda de ouro pra Sardinha que você é absolvido.

Com a morte de João de Castro, depois de juntar um bom pé-de-meia, Sardinha voltou a Lisboa em 1549. Atendendo ao pedido de Nóbrega, que queria uma diocese no Brasil, D. João III comunicou ao Papa essa intenção. Nóbrega, em carta para o Mestre Simão Rodrigues, escreveu sobre aquele que viesse a ser indicado para o cargo de Primeiro Bispo no Brasil ”Que venha para trabalhar e não para ganhar”. E quem veio? O Bispo Sardinha. Mais uma das ironias da história.

O agora sagrado bispo Sardinha, chegou na Bahia em 1551.Conhecido por sua vaidade e suas citações dos clássicos latinos, essa Odete Roitman de batina odiou o que viu. Salvador era um povoado recente, com cerca de mil colonos, vários cumprindo pena de degredo , contando com 200 ou 300 casas, acrescentando aí escravos africanos e nativos. Grande parte dos colonos viviam amancebados, os naturais da terra andavam nus , praticavam a poligamia, incluindo o canibalismo. Mal pisou por essas plagas o Bispo já arrumou confusão. O padre Nóbrega, animado com a chegada, tomou logo um banho de água fria, porque o Bispo não queria saber das crianças convertidas e sim dos rendimentos do colégio. Salvar os índios nunca foi sua preocupação. Aliás, ele odiava os índios. Proibiu os métodos de catequese dos jesuítas, de tocar e saltar e cantar no meio dos curumins, receando que a conversão fosse ao contrário. Os índios foram proibidos de assistir missa com os colonos e sua opinião sobre os nativos era: “Não havia salvação para os gentios, pois são incapazes de aprender a doutrina por sua bruteza e bestialidade”.

O problema da diva quinhentista porém, não foi os aborrecimentos com os inacianos, foi outro muito pior. O governador geral Duarte da Costa, talvez o mandatário mais inepto da História do Brasil , só perdendo para o Bolsonaro, trouxe para Salvador 260 pessoas em sua chegada. Órfãs para casar, fidalgos e seu filho Álvaro da Costa, que havia lutado em África e cavaleiros amigos dele. Eufemismo chamá-los de cavaleiros. Álvaro na verdade trouxe uma gangue, a diversão deles era caminhar nas ruas de Salvador com um porrete na mão batendo em quem estavam a fim. Um pit boy da Idade Moderna. Mulherengo, era acusado de desviar mulheres solteiras e casadas e de fornicar com as índias. Bispo Sardinha faz então um sermão, condenando os hábitos do filho do governador e se inicia uma grande confusão. Só que o playboy era matador de índio, e salvou Salvador de um grande ataque Tupinambá. Sendo assim, Álvaro aclamado herói, o Bispo Sardinha teve que meter a batina entre as pernas, juntar seus barris de ouro e teve sua volta ordenada pelo rei em 1556, embarcando na Nau Nossa Senhora da Ajuda (haja ironia involuntária nessa saga). Ele e mais uma centena de infelizes estavam no navio. A nau naufragou em Alagoas, mas sem vítimas. Todos conseguiram chegar a terra. O que não contavam era com a recepção de 200 caetés, que os esperavam simpaticamente na praia. Foram aprisionados e devidamente devorados. A tristeza dessa história é o revide dos portugueses, que acabaram com os caetés. A grandeza da História é o Bispo ter servido de repasto para quem mais odiava. E o curioso é que, segundo Frei Vicente Salvador,  apenas três pessoas foram poupadas do massacre: dois índios, que estavam num rolé aleatório, tipo nem deviam saber o que estavam fazendo no navio e um português. Que sobreviveu, foi poupado,  por saber falar a língua nativa. Refletindo sobre a aeromoça e o portuga, salvos pelo idioma, a morte se afasta da velha alegoria de uma caveira com uma foice na mão e ganha contornos de uma senhorinha dona de uma franquia do Wizzard. Chupa Heiddeger, filosofia brasileira de botequim é INSUPERÁVEL!

Em Salvador, ano 465 da deglutição do Bispo Sardinha.