(publicado originalmente em Brasil247 em 26.06.2020.)

Após um ano e meio de desgoverno, praticamente todos os dias pessoas ainda vêm a mim com as mesmas perguntas: “Por que Bolsonaro ama tanto Israel?” ou “Ele é muito amigo de Israel, não?” ou, ainda pior, “Ele é muito amigo dos judeus, hein?”. E fora perguntas educadas, há também sempre comentários antissemitas em meus textos ou lives, do tipo: “Bolsonaro e Israel são tudo a mesma coisa!” ou “Os judeus amam Bolsonaro porque ele apoia a opressão em Israel.”

Muito bem, sou professor há 20 anos e sei que se uma questão não está esclarecida, a melhor maneira de lidar é repetir a explicação quantas vezes for necessário. Assim, embora eu já tenha escrito outros artigos sobre o tema, cabe sempre mais um. Além disso, novos eventos ocorrem sempre e aumentam os desentendimentos. E a atenção do mundo a Israel, por sua vez, nunca diminui. Parece haver um imaginário quase místico ao redor deste pequenino país (que possui praticamente a metade do tamanho e da população do Estado do Rio de Janeiro, para se ter uma ideia).

Muito bem, vamos lá: a resposta para a questão do suposto amor de Bolsonaro por Israel está resumida no título deste artigo. É simples assim: Bolsonaro não ama Israel, não apoia Israel, não se importa com Israel e isso é completamente claro e evidente em sua agenda. O que ele ama é a direita/extrema-direita que se apropriou de Israel gradualmente na última década, sob o comando do Benjamin Netanyahu. Sim, o “capitão” ama a política e as ideologias do israelense. E uma coisa é totalmente diferente da outra. Apoiar um governo vigente não é apoiar um país e seu povo. Quem de fato apoia Israel deve antes de mais nada atentar para a pluralidade do povo que lá vive. Cerca de um quarto de sua população é árabe e o risco da instalação de uma política de pleno apartheid é cada vez maior. Além disso, a situação de opressão contra os árabes não-israelenses ou palestinos, que vivem na Cisjordânia e em Gaza, é a cada dia mais inaceitável e insustentável. Quem é verdadeiramente amigo de Israel busca chegar a uma situação em que todos no país – e também seus vizinhos – vivam bem, em paz e com dignidade, ou seja, o oposto do que Netanyahu faz e ao que Bolsonaro aplaude.

Deixo muito claro: ao meu modo de ver, Netanyahu é simplesmente a pior coisa que já aconteceu a Israel. Ele é racista, corrupto e possui muito sangue nas mãos. É terrível para os palestinos não-cidadãos do país; é terrível para os árabes israelenses; é terrível para os judeus israelenses que não são direitistas e querem paz e justiça para e com os árabes; é terrível para os judeus da diáspora que não são direitistas pelo mesmo motivo; é terrível para qualquer tipo de contato com o mundo árabe que circunda Israel. Ou seja, ele possui todos os atributos para ser amante de Bolsonaro e, é claro, de Trump, o monstro que representa tudo o que há de pior na essência ianque e que considero também o mais nocivo presidente da história deste país (sim, Nixon e Bush filho eram “fichinha” perto do “very stable genius”).

Estes três estandartes do Neonazifascismo mundial amam somente suas ideologias e seus nefastos projetos. E nada mais. Cada um elege inimigos em seus países (“comunistas” e comunidade LGBT no Brasil; árabes em Israel; imigrantes latinos e árabes nos EUA). Em comum, os três têm o asco pelo pobre, seja ele negro, índio ou parte de outro grupo desfavorecido. Perseguem então os “vilões” de suas nações e trilham a contramão de tudo o que representa Democracia, Justiça Social e Direitos Humanos.

Mas qual é exatamente a razão para esta relação tão estreita entre Bolsonaro e Netanyahu? Pois bem, Netanyahu interessa a Bolsonaro por duas razões principais. Primeira: ao acariciar Netanyahu, o small brother brasileiro agrada seu tão admirado big brother Trump. E como vemos acima na bela charge de meu amigo Renato Aroeira (obrigado pela charge para este artigo, meu caro!), os três “irmãos de fé” passam a formar a perfeita aliança neonazifascista contemporânea, deixando pegadas de sangue por onde passam.

E a segunda razão se dá pelo motivo de que Netanyahu representa a perseguição aos árabes e é o símbolo maior do clamor por uma Israel soberanamente judaica (quase bíblica), e isso agrada uma imensa parte do eleitorado brasileiro: os evangélicos neopentecostais. Estes, que em grande parte seguem a doutrina do Dispensacionalismo, creem que Jesus Cristo retornará ao mundo justamente em Israel, mas somente quando todos os judeus estiverem lá reunidos e o “aceitarem” como o messias (algo completamente contrário ao Judaísmo e que simplesmente não vai acontecer). Mas na mente neopentecostal, vai. E os árabes? Bem, estes devem ser simplesmente varridos de Israel. Ou, se quiserem ficar, terão também de “aceitar” Cristo, ou seja, se converter. Pois é, é mais fácil oprimi-los e expulsá-los, no melhor estilo Netanyahu.

“Ah, mas e as bandeiras israelenses nas manifestações bolsonaristas, não representam amizade entre Bolsonaro e Israel?”, perguntam-me. Respondo: não. Pelas razões doutrinárias que acima expliquei, antes de mais nada é necessário que se saiba que praticamente todas as bandeiras azul-brancas são empunhadas por evangélicos e não por judeus. Os judeus bolsonaristas normalmente não se prestam ao ridículo das manifestações de adoração ao Jair “Messias”, mas sim assistem de longe – do alto de seus olimpos empresariais – o país desmoronar, enquanto os favores econômicos da elite são garantidos. Simples assim: “Rezem para quem quiser, acreditem na fantasia dispensacionalista que quiser, adorem uma Israel cristã o quanto quiser. Contanto que nossa grana esteja garantida, nada mais importa.”

Dito isso, aproveito para fazer uma observação adicional para tentar quebrar mais um esteriótipo equivocado que escuto com frequência: “Os judeus apoiam Bolsonaro porque são todos ricos!” Por favor, né?… Erradíssimo. Existem no Brasil judeus ricos, não ricos, de classe média, de média baixa e até muito pobres, que necessitam de programas sociais e caridade para sobreviver. E todos estes, como toda a comunidade, também se dividem entre pró-Bolsonaro e anti-Bolsonaro.

Em suma, a relação dos judeus brasileiros com Bolsonaro é completamente mista. Ele é apoiado por uma metade da comunidade e rejeitado pela outra. E é combatido diariamente por algumas das mais ativas e militantes instituições contra o seu governo (‘Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil’, ‘Judeus pela Democracia’, ‘Judias e judeus com Lula’, ‘JUPROG (Judeus Progressistas)’, para citar algumas).

Enfim, cabe ainda acrescentar que este movimento neopentecostal é também um enlatado norte-americano que como sempre grande parcela do povo brasileiro consome de olhos fechados e com servil reverência. Os ‘evangelicals’, como são por lá chamados, possuem grande poder no país e seu símbolo maior atualmente foi cuidadosamente escolhido por Trump como seu vice-presidente, o de modo igual perigoso Mike Pence. Assim, uma espécie de “sionismo cristão” ascendeu, algo que é claramente nocivo para judeus (pois advoga por um judeu não-judeu, um judeu cristianizado), para muçulmanos e também para cristãos não-pentecostais. E Netanyahu se importa com isso? Não também. Sua mentalidade se concentra em metas muito bem definidas, das quais ele nunca desvia os olhos: contanto que apoiem seu projeto de subjugar os árabes israelenses a cidadãos de segunda classe e de usurpar os territórios palestinos, ele faz qualquer aliança, até mesmo com líderes que incitam o antissemitismo (ou melhor dizendo, o antijudaísmo), como os próprios Bolsonaro e Trump. (Aqui é necessário um adendo: embora relacionado com o assunto do “amor” de Bolsonaro pelos judeus e por Israel, não entrarei no tema do imenso ‘antissemitismo na Era Bolsonaro’, pois esse é um tema que merece ser tratado à parte. Mas anuncio aqui que o ‘Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil’ está preparando um documento completo sobre este específico assunto, que será publicado em breve, quando completa-se 18 meses da atual presidência. Aguardem.)

Já vimos o interesse de Bolsonaro em Netanyahu. Qual é a reciprocidade para o israelense então? Bem, o brasileiro é tanto um aliado na ONU, quanto pode tornar-se um parceiro mais próximo economica- e até militarmente. Desta forma, em termos diplomáticos, a trica ultradireitista vota sempre em uníssono quando se trata de qualquer resolução que concirna aos planos de Netanyahu. O Brasil é um país grande e importante na América Latina e tê-lo ao seu lado nesta aliança ultradireitista é um grande ganho para este que pretende se tornar uma espécie de “rei moderno de Israel”.

E desta forma chegamos à principal notícia do momento no Oriente Médio: com o aval de Trump (e do irmãozinho brasileiro ao seu lado lhe dando a mão), um dos maiores passos para a anexação definitiva da Cisjordânia está prestes a ocorrer. Compreendam: isto é uma catástrofe para os palestinos, pois sacramenta de vez a ocupação de suas terras. Mas não é somente isso. Esta ação afeta também toda a região e pode implicar até mesmo no rompimento de acordos de paz entre Israel e alguns países vizinhos. Só mesmo a configuração atual do mundo, com Trump no poder e seus aliados de peso, poderiam permitir que isso ocorresse. É a tempestade perfeita sobre a árida “terra de Deus”.

Vejam, se amanhã o governo netanyahista caísse e – por um milagre – Israel voltasse a ser governado pela Esquerda (como foi por décadas) e as negociações de Paz com os palestinos fossem retomadas e progredissem, como aconteceu na época de Yitzhak Rabin, certamente Bolsonaro não teria absolutamente nenhuma amizade com Israel. E a mesma lógica serve para a relação com os EUA. Se em novembro próximo Biden vencer, veremos uma mudança drástica na relação entre Brasil e EUA. E se Bernie Sanders – para mim o maior político do mundo nas últimas décadas – vencesse, a devoção e a continência de Bolsonaro pelo Tio Sam desapareceria imediatamente.

Por fim, cabe ainda comentar mais uma novidade que surgiu nas últimas semanas: a questão da presença da bandeira palestina em manifestações pró-democracia no Brasil. Primeiramente digo que pessoalmente vejo a presença desta flâmula com ótimos olhos, pois nós judeus progressistas e humanistas somos também ativistas pela causa palestina. Para nós, não há Israel livre, justo e seguro, sem um Estado Palestino livre, justo e seguro. Assim, nestas demonstrações brasileiras, ao lado das bandeiras palestinas, há também sempre representações judaicas, ainda que não empunhando a bandeira israelense. É um erro imenso e um grande desconhecimento de causa pensar que estas bandeiras são antagônicas. O mal uso da flâmula israelense – seja por parte de evangélicos que sequestram símbolos judaicos ou por parte de judeus bolsonaristas – não tem o poder de decretar que Israel e Palestina (ou judeus e árabes) estão cada um em um lado, antidemocrático e democrático. Esta simplesmente não é a realidade destes povos nem no Oriente Médio nem na diáspora.

Em janeiro de 2020, no grande evento do grupo ‘Judias e judeus com Lula’, em São Paulo, (com a presença do próprio Lula, de Haddad, de Gleisi e diversas outras personalidades da Esquerda brasileira), era possível ser vista a bandeira israelense ao lado da palestina na decoração do espaço, feita pelos organizadores do evento.

Enfim, espero que este artigo ajude os brasileiros a compreenderem um pouco mais sobre este complexo cenário. É fundamental que a Esquerda brasileira assimile estes conceitos e compreenda os contextos, para que a verdade supere generalizações, esteriótipos e distorções que levam à intolerância dentro da própria esfera da Resistência no país. A consciência sobre o contexto mundial e uma visão panorâmica sobre temas contemporâneos são essenciais para que não ajamos com a mesma postura racista e ignorante que tanto desprezamos no bolsonarismo, no netanyahismo e no trumpismo.