Magnífico ! Mal terminavam os últimos acordes do concerto, vinha aquela voz grave, antecipando-se aos aplausos. Os músicos já a conheciam no teatro Municipal e na sala Cecília Meirelles, e lembro dos gêmeos Santoro sorrindo com a manifestação mais do que esperada. Tinha variações. Maravilha ! e um hilário Wundenbach! (sic) na apresentação de um conjunto de câmera suíço. Com direito a sotaque maranhense.

Mariano Gonçalves Neto reservava sempre a mesma poltrona, bem próxima às orquestras. Seu grito despertava reações diferentes. Alguns o levavam na esportiva, afinal de contas o baixinho careca trazia um pouco de surpresa para o ambiente solene da música clássica. Outros, presos à tradição, olhavam torto e murmuravam “ridículo, a que ponto leva a vaidade!”. Mariano, do alto de sua elegância terno-e-colete, pouco se lhes dava. Se divertia e, reza a lenda, conseguiu acesso às estrelas do palco. Dizia, com orgulho, que Luciano Pavarotti deu-lhe um telefone de contato. Seu lema, variação de um Milton Nascimento clássico, era: Solto a voz no teatro/já não quero parar.

Mariano chegou a ser deputado estadual nos anos 80. Brizolista, seita em acelerado estágio de extinção no Rio. Figura folclórica, desses tipos que dão forma ao que João do Rio chamava de alma encantadora das ruas. Do mesmo nível do Bloco do Eu Sozinho, do feirante inventor do bordão “mulher bonita não paga … mas não leva”, dos velhos camelôs que, antes de fugir do rapa, vendiam giletes Wilkinson, a ingreza legítima, e perfume francês made in Praça Paris. Do Beijoqueiro, do Sheik das Cocadas, do Oi de Botafogo (vendedor de amendoim em viaduto, vestido de terno e gravata), do Profeta Gentileza.

A cidade, mergulhada numa depressão de dar gosto, vai matando seus tipos folclóricos. Geraldinos e arquibaldos, expulsos do Maracanã, coloriam o cimento com seus dentes sumidos, seus radinhos de pilha, seus urubus e pós-de-arroz. Madame Satã, travesti perito em rabos-de-arraia e navalhadas, soberano da velha Lapa, pródiga incubadora de causos, não deixou herdeiros. Conta-se que Madame Satã matou com um soco só o sambista Geraldo Pereira (“O escurinho era um escuro direitinho/Agora está com mania de brigão”). Enfrentou rádio-patrulha a pernadas e levou vantagem.

Políticos? A gente logo associa com máfia, pestilência, dissimulação. Pois já tivemos Barão e Lurdinha, digo, Tenório. Apparício Torelli, o Barão de Itararé, foi eleito vereador pelo PCB, nos anos 40. Consta que as sessões da Câmara tinham audiência redobrada quando ele estava em plenário. Ficou célebre seu discurso de despedida, quando a legenda do PCB foi cassada em 1947. Concluiu dizendo: “Saio da vida pública e entro na privada”. Alguém consegue imaginar Crivella ou Paes falando assim? Saudações baronis. Tenório Cavalcanti era outro estilo. Andava com uma submetralhadora, a quem apelidou de Lurdinha, escondida numa capa preta. Jogou Flávio Cavalcanti, apresentador de TV demagogo e conservador, na piscina de sua casa, em Duque de Caxias. Não faço juízo de valor, mas reconheço nele os traços do folclore político, que tanto nos enriqueciam de histórias.

A escassez das figuraças, dos inventores da realidade montados em nuvens, entristece as calçadas, os becos, as esperanças. Sua ausência carrega nas tintas a nossa pressa de não chegar a lugar algum. Sua falta nos lembra como andamos mais estressados, menos cordiais, indisponíveis para sair da couraça. Vivemos, oh vida, oh azar, o ocaso da carioquice.

Por onde andará o Magnífico ?

Abraço. E coragem.