E aquilo que nesse momento se revelará aos povos

Surpreenderá a todos não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto

Quando terá sido o óbvio”

 

Enquanto inicio o texto ouço Clara Nunes cantar a sua belíssima e definitiva canção o Canto das Três Raças. Não sei explicar o que sinto por completa inabilidade de transformar sentimentos em palavras. É um daqueles meus momentos da minha relação bipolar com o Brasil. Enquanto o circo de espetáculos macabros se desenrola na política nacional, dentro de mim é uma ebulição , uma emoção sem par. Música e imagem tem esse poder comigo. Sempre fui sensível a imagens, não fotos posadas de mulheres inacessíveis ou mares transparentes que o dinheiro curto me impede de visitar, mas flagrantes do mundo real. Alguns desses instantâneos foram tão fortes que permanecem na minha retina. Imagens que me impactaram, a ponto de mudar a minha perspectiva de vida, abalar meu senso de realidade. Na epígrafe do livro Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago cita o Livro dos Conselhos de El Rei D. Duarte:” Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. E se deter em algo que parece novo para você é de uma potência extrema.

Foi assim em 1982.Eu era uma meninota de 11 anos, que gostava da Rita Lee (só fui entender o que significava me deixa de quatro no ato outro dia gente, sério), usava melissa fumê e meias de lamê. Achava que um dia casaria com o Fabio Junior (hoje vejo que não seria um sonho impossível) e tinha como projeto de vida adulta ser chacrete. Minha vida era escola, academia de dança, fins de semana com os avós em Valença ou na casa de primos. Gostava de ler, mas não tinha muita noção do que era bom ou ruim. Intercalava leituras de revistas de banca de jornal, Bianca, Julia, Sabrina com Agatha Christie e  George Sand. Meu pai assinava o Jornal do Brasil, do qual só me interessava as tirinhas. Mas aquele dia foi diferente…Na capa seis homens negros amarrados pelo pescoço levados por um policial. Não a toa intitulada de “Todos os Negros”, essa foto rendeu o Premio Esso ao fotógrafo Luis Morrier. E a mim rendeu um choque de realidade brutal. Sejamos sinceros, vivendo num apartheid social, com raros colegas negros e todos os negros que faziam parte do meu cotidiano sendo subalternos, ser negro ou não nunca se apresentou como um problema para mim. Até eu fixar os olhos naquela foto. O que senti foi horror do mundo. E compreendi, da pior maneira, que 500 anos não significavam nada. Aquela fotografia foi muito mais eficiente que qualquer tratado antropológico sobre o Brasil.

1996.Escrevendo uma dissertação de mestrado cujo tema era a A Escravidão Negra em Antônio Vieira. Intercalo a vida entre Dionísio e Apolo. Pudesse vivia nos braços de Baco, mas há um estoicismo que me salva. Gosto do método talvez pela ilusão que assim manipulo essa história de som e de fúria contada por um idiota, que não tem sentido nenhum, como disse lá atrás o bardo.  Então minha animada rotina de estudante era: Deixar mochila e roupa arrumadas para o dia seguinte, acordar mais cedo para desembaraçar os cabelos (dos quais me libertei),sair de casa, parar na padaria para tomar meu café sem açúcar de psicopata, ir a banca de jornal comprar O Globo, que eu ia lendo   no ônibus e assim a viagem corria mais rápido. Me detive na matéria principal. Era sobre o reencontro do fotógrafo Pedro Martinelli, que há 23 anos atrás havia participado da expedição com os Irmãos Villas-Boas, que tentavam contato com a chamada Tribo dos Índios Gigantes. Pedro se encontraria com o personagem da foto, que estava na capa, duas décadas depois. Sem nunca ter tido contato com os brancos, o que vi foi um indígena com o corpo todo pintado, altivo, com seu arco e flecha, mirando aquelas pessoas estranhas. Era a representação carnal da música do Caetano Veloso:” Um Índio Descerá de Uma Estrela Colorida Brilhante”. Aquele homem, hoje para mim um menino, de 23 anos, mesma idade do fotógrafo, sustentando o olhar para aquelas pessoas que nunca vira e muito menos sabia a procedência, era de uma altivez natural que vi em poucas pessoas. Me dirigi então a matéria, no miolo do jornal, que registrava o reencontro do fotógrafo com o fotografado. O que vi foi um homem triste, sem dentes, com uma blusa com uma inscrição em inglês, vestindo um daqueles shorts da Adidas que brilha e de Havaianas no pé. O olhar altivo era coisa do passado. Ele mirava o chão, passando a sensação de estar com muita vergonha. Lembrei de Pirrer Verger, na década de 50, querendo fotografar uma baiana paramentada vendedora de acarajé e ela se recusando, dizendo que a foto roubaria a alma dela. A sensação que me ocorreu é que haviam sim roubado a alma dele. A dignidade daquele guerreiro foi levada. E eu passei o resto da viagem chorando.

Ailton Krenak, no documentário Além Mar, que foi feito em comemoração aos 500 anos do Brasil, narrado lindamente pela deusa Bethânia, ao discutir a questão de identidade disse: “os negros ficaram com uma geografia em relação a casa grande, que era a senzala. Mas naquela geografia que Gilberto Freyre faz para a casa grande, não há lugar para índio. Sabe onde o índio está? Espreitando a casa Grande. É o estranho. É o gentio”. Essa fala foi importante para eu ter ideia do tamanho da minha ignorância. O que eu sei dos povos originários? O mais próximo que cheguei foi através das histórias que meu pai contava, quando tinha 17 anos , recém aprovado no vestibular, de sua viagem com S. Wanderley, sertanista amigo do meu avô e ficou em Xavantina, quando os Xavantes estavam sendo “pacificados”. Mas o que me impressionava mesmo era ele falando das imensas sucuris que atravessavam o Rio das Mortes.

E tinha meu tio-avô Luiz que merecia uma crônica só para ele. Tio Luiz estudava tartarugas e até descobriu uma espécime na Amazônia, que carrega nosso sobrenome. Era um homem alto, de voz potente , ir a casa dele era a suprema aventura. Éramos recebidos por ele com um papagaio pendurado no ombro e com seu inseparável tapa-olho. Durante um bom tempo corria uma lenda entre as crianças que ele perdeu o olho numa pesca submarina, até que um adulto inconveniente contou a verdade. Tio Luiz era péssimo motorista, bateu num carro e ainda teve o topete de sair com o olho vazado para discutir com o infeliz que estava no outro veículo. E sim, o outro motorista estava com  a razão. Só sei dizer que ir a casa dele era um programão. Eles nos mostrava animais diferentes, explicava calmamente o que era cada um e claro, havia um tanque imenso cheio de tartarugas, dos mais variados tamanhos. Ele também colecionava artefatos indígenas, e jamais esquecerei o dia que ele pegou um objeto de madeira maciça, vermelho escuro , bem polido e perguntou se eu aguentava segurar. Claro que não, pesado demais para a menina franzina. Ele me explicou que aquela era uma arma indígena, chamada borduna, disse a que tribo pertencia e explicou sua serventia com apenas uma palavra: DEFESA. Perguntei então se os indígenas metiam aquilo na cabeça das pessoas e recebi uma resposta que só por ela percebe-se que não fui adotada: ”Ninguém que não tivesse merecido”.

Cresci na época da ditadura, o que aprendia na escola sobre os povos originários era que viviam em ocas, pescavam, plantavam e contribuíram para a nossa culinária. Não havia uma preocupação em distingui-los: tem penacho, tem cocar, é indígena. Houve um apagamento deliberado desses povos e de sua história. Que se iniciava na capa dos cadernos escolares, quando não era Pedro I declarando a Independência , ou a imagem do “bravo Duque de Caxias”, patrono do exercito, era a imagem da primeira missa. Homens com roupas de cavalaria medieval, imponentes, uma cruz e os índios de saiotes de penas como coadjuvantes, reverenciando a cruz e os colonizadores. O outro momento que éramos lembrados da existência deles era   no temível dia 19 de abril, quando se comemorava o dia do índio. Aqui explico: Mães da década de setenta pareciam estar numa infindável viagem lisérgica, não há como esquecer meu irmão com penas em degradê do rosa choque ao roxo caixão, com um cocar que poderia servir como destaque para a Cacique de Ramos e muitas, muitas miçangas. Clovis Bornay aprovaria. Essa foto rolou por  um tempo aqui em casa, mas alguém disse que ia mandar para aquele blog criança viada e meu irmão desapareceu com ela. Então era basicamente isso: aulas superficiais, imagem da Primeira Missa e fantasias montadas no Mercadão de Madureira para nos envergonhar para o resto da vida.

E foi com essa linha de pensamento que fui refletindo sobre esse encontro índio-europeu. O fato é que com a chegada da esquadra de Cabral, em 1500, através de diferentes perspectivas um novo mundo abria-se ambos. Para os portugueses velhas certezas foram desmentidas, o mundo geográfico se revelando. A nova terra empurrou para adiante os limites do mundo desbravado pelos navegadores em décadas anteriores. Já para os povos autóctones a perda do domínio sobre o espaço que viviam e sobre outra dimensão: o tempo. Era a história modernizadora que vinha com as caravelas, para se confrontar com o tempo mítico vivido pelos indígenas.

Laura de Mello Cardoso, em seu livro O Diabo e a Terra de Santa Cruz, diz que o Brasil foi uma utopia desde antes de ser descoberto. Para os teólogos medievais, o Éden não era uma representação simbólica, e sim uma realidade concreta e acessível. Ao mito das ilhas Afortunadas sucedeu o da Terra dos Papagaios, que deveria conter o paraíso terrestre. Desta ilusão religiosa se deduziram  versões mais laicas, afinal estavam no Paraíso e não existe pecado do lado de baixo do Equador. É interessante observarmos a forma como os europeus viam esse novo mundo, tão longa quanto a história do Brasil é a história das narrativas de viagem que figura o Brasil. Desde que os europeus aportaram nessa estranha terra, ela foi abundantemente descritas por eles e se alastrava pela Europa com o auxílio nada desprezível da imprensa. Viajantes como Thevet e Levy, podem ser considerados os iniciadores das fake news no nosso solo pátrio. Pululam em seus escritos absurdos como gigantes de dezesseis palmos, selvagens com os pés ás avessas e por aí vai.

Contrapondo-se porém a visão edenizadora, mais que nuvens e insetos , calor intenso e cobras gigantescas, a imagem do Brasil como um inferno vai estar presente nos nativos da terra. Sobretudo quando passam a ser um obstáculo para a sua ocupação. E de todas as diferenças entre os europeus e os indígenas, nenhuma causou mais espanto que a antropofagia. Causa, aliás, de grandes discussões filosófo-religiosas acerca da verdadeira índole dos bárbaros: descendentes de Adão para alguns, mas pouco mais que bestas  feras para outros- o que era um pretexto bem conveniente para escravizá-los. Seria necessário, que em 1537, uma bula papal reconhecesse explicitamente a natureza humana dos americanos. Assim, desta terra , segundo o escrivão da esquadra: ”O melhor fruto que se pode tirar, me parece que seria salvar esta gente. E esta deve ser a Principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”. A esta gente, indecifrável aos olhos dos europeus, eles não viriam apenas salvar a alma. Mas aliciar, dominar, exterminar, subjugar, escravizar, conforme seus interesses específicos. Toda vez que nos desesperarmos com esse desgoverno que fomos metidos, lembremos do sábio Ailton Krenak: ”O que são quatro anos? Nós estamos resistindo há quinhentos!”