Certa vez, meu filho perguntou como era o cotidiano durante a ditadura. Ele fantasiava que havia um meganha, um araponga, por trás de todas as paredes. Respondi que os mecanismos de controle eram mais sutis. Claro que o SNI e suas filiais faziam o grande trabalho sujo. No entanto, destaquei a importância do que chamo os pequenos poderes. O sargento que distribuía gritos e tabefes sem medo de retaliação, o civil que se beneficiava do clima autoritário e espalhava carteiradas e arrogâncias. Os frutos tinham, quase sempre, alcance limitado, mas afagavam os egos dos subditadores e criavam uma cultura de intimidação. O censor que proibia uma peça de teatro era o último elo da cadeia que começava num “sabe com quem está falando?” espalhado em ruas e almas.

Um dos episódios mais flagrantes da promiscuidade entre as esferas autoritárias foi o chamado Massacre de Manguinhos. Acho importante recuperar essa história, já que vivemos um período em que a ciência está sob ataque em várias partes do mundo.

No dia 1º de abril de 1970, pouco mais de um ano após a promulgação do Ato Institucional número 5, dez cientistas do Instituto Oswaldo Cruz (atual Fiocruz) tiveram seus direitos políticos cassados pela ditadura. Foram aposentados compulsoriamente e proibidos de trabalhar em todas as instituições públicas do país. Desenvolviam importantes pesquisas e tinham reconhecimento internacional. As equipes que coordenavam foram desfeitas, com enorme prejuízo para o conhecimento científico. Apesar de trabalharem no Instituto há muito tempo, foram obrigados a abandonar, sumariamente, os laboratórios e tratados como criminosos. O que havia por trás de tanta arbitrariedade?

Tudo começou com divergências sobre os objetivos do IOC. O grupo de cientistas achava que, além da produção de vacinas, o Instituto deveria dedicar-se à pesquisa básica, sem imediatismo. Um dos diretores na época, o médico Francisco de Paula da Rocha Lagoa, discordava, e se produziu um clima de animosidade. Agravado pela acusação de que Rocha Lagoa desviara verbas para combate à malária, meningite e peste bubônica. O confronto derivou em falsas acusações de “subversão” e “conspiração” contra os cientistas. Nada foi provado. No início de 1970, Rocha Lagoa foi nomeado Ministro da Saúde pelo ditador Emílio Garrastazu Médici. Aproveitou-se, de acordo com os cassados, para levar adiante uma vingança pessoal. O resultado foi a cassação a granel. O Massacre de Manguinhos. O tiranete sacou do bolso do colete seu próprio AI-5.

Entre as alegações que alavancaram o decreto de cassação, estava a de que os cientistas promoviam “feijoadas e vatapás subversivos”. Hoje, isso tem cheiro de folclore, mas na época às vezes era difícil provar que asno não produz lã.

Impossível medir o prejuízo à ciência brasileira causado pelo poder civil, disfarçado de “interesse nacional”, em aliança com a boçalidade fardada. Cálculos conservadores indicam que pelo menos 160 novos cientistas deixaram de ser formados entre 1970 e 1986.

Em agosto de 1986, os cassados foram reintegrados à já então Fiocruz. Na bela cerimônia em frente ao Pavilhão Mourisco situado no bairro de Manguinhos, Mario Lago, presidente da Comissão Nacional de Anistia, disse que todos estavam alegres, mas não felizes. Milhares de pessoas continuavam com seus direitos cassados e a luta ainda seria árdua. Darcy Ribeiro, vice-governador do Rio, foi certeiro. “A dor que me dói, a lágrima que choro, é pelas pesquisas que foram interrompidas e que nunca mais se farão (…) A ciência é o último artesanato do mundo, é a última profissão que não se aprende nos livros. É um cientista que cria outro, à sua sombra”.

Memória pode ser arma letal. Contra a ignorância, o autoritarismo, a propaganda anticiência, é importante citar os nomes dos que foram abatidos pelo Massacre de Manguinhos. Que sua perseverança na luta pelo conhecimento e pela inteligência sirva de exemplo às futuras gerações.

Sebastião José de Oliveira, Herman Lent, Moacyr Vaz de Andrade, Augusto Perissé, Domingos Arthur Machado Filho, Fernando Braga Ubatuba, Haity Moussatché, Hugo de Souza Lopes, Masao Goto e Tito Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti: presentes!

Abraço. E coragem.

 

 

 

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