Madrugada. As nuvens pesadas prenunciam chuva. As ruas caladas por falta dos transeuntes davam a sensação de abandono. Apenas um uivo longe de um cachorro solitário espantando os medos. Marcos debruçado sob a máquina de escrever, que era de seu avô, tentava redigir a crônica do domingo para o Jornal do Povo. Uma inquietude o atormentava, pois seu texto, mesmo com humor e trocadilhos, iria mexer com a intimidade do homem mais importante daquelas paragens. Dono de um latifúndio e rede de farmácias e supermercados. O homem era excêntrico e sua vida era marcada por muitos mistérios. Vivia sozinho, apenas um serviçal e dois pequenos lagartos eram suas companhias. Usava sempre a mesma cor cinza. Até sua casa suntuosa tinha essa cor dando ao lugar um ar de solidão e tristeza. Só em alguns dias e noite especiais, como natal, páscoa e dia de todos os santos ele contratava as floriculturas da cidade para enfeitar todos os cantos e recantos do jardim e da casa. As boleiras e confeiteiras eram levadas para a grande cozinha que ficava ao fundo da mansão e passavam a manhã inteira a fazerem bolos, doces e iguarias deliciosas para serem servidas as crianças de toda a cidade e redondeza. A cidade ficava em festa. Os presentes para a criançada era escolhidos com esmero e parece que ele adivinhava cada desejo e sonho de cada uma. Era mágico aquilo. Ninguém sabia explicar o milagre das festas e o lúgubre tempo de silêncio da mansão. Quando as crianças entravam tudo era lindo: brinquedos, piscinas, as iguarias, tudo perfeito. O homem ficava de sua sacada olhando toda alegria e folia da meninada e seu olhar sempre sério e frio ficava doce e terno. Parecia que certa juventude tomava conta dele e por pequenas horas ele se tornava vivaz e fagueiro. Era algo lindo de se reparar. Os comentários perduravam por dias e dias e o homem voltava para o seu mundo desconhecido. Apenas falava com os homens de sua confiança de negócios e nada mais. Nenhuma palavra. Nenhuma revelação. Marcos queria escrever sobre um fato que ouvira em um dos bares da cidade sobre o misterioso dono do “mundo”. Era assim que o chamavam. Os homens entre um carteado e outro, comentavam sobre uma noite de chuva que o haviam visto se dirigindo para o bosque que cercava a cidade e ao voltar carregava algo como se fosse um corpo em seus braços. Com tantos carros ele andava a pé. Era isso que estranhava e fomentava os fuxicos daquele lugar. E os longos e profundos gritos de dor que se ouvia dos muros daquele lugar de estranheza. A crônica seria sobre o imaginário mundo dos ricos, e, por recorte, ele escreveria sobre as esdruxulas manias do homem em questão. Mas sabia que correria o risco de ser cruel e sarcástico com alguém que pouco sabia e aparentemente era inofensivo. Mas abana a cabeça e inicia a escrita como sempre. Um fato espantador… O homem guardava em um porão a alma de sua filhinha e precisava das crianças para senti-la viva e correndo pelo jardim, assim diziam os homens daquele bar e caiam na gargalhada já embriagados pela cachaça caseira. Marcos fumou mais um cigarro e sem reler o seu texto leva-o ao jornal para divertir e provocar a curiosidade das pessoas que o acompanhava domingueiramente as suas crônicas cheias de picardias e poucas verdades. Era a sua marca. Verdades absolutas só em seus escritos nunca publicados em que caminhos eram cruzados de dor e abandono.

Gigi Pedroza