Ontem, faria sessenta e oito anos. A Indesejada das Gentes solou o bolo de aniversário. Com Ela, não se negocia. Fez plantão no quarto despojado e não se comoveu com o cortejo de amigos que se revezavam na cabeceira do leito, inconformados com o que estava para acontecer. Caronte já preparava os remos para a travessia final. O barqueiro sombrio desconhece o sentido de concessões.
Com pedaços de lucidez que lhe restavam, desejou apenas escapar do mês de fevereiro. Em anos diferentes, fora nele que morreram pessoas queridas. Não conseguiu. Sob os cantares de mockingbirds, que estavam particularmente agitados sob o sol californiano, parou de respirar no ano passado, no último dia do mês agourento.
Habitávamos extremos opostos. Ela tinha a irrequietude de um suricato. Talvez por isso tenha colecionado frustrações afetivas. Preferiu morar longe da família, embora demonstrasse por entrelinhas que não conseguiria viver sem ela. Mudava de planos à tripa forra, parecia estar ausente mesmo quando ficava ao alcance do olho. Escorregadia como os bons dribladores. Através dos alimentos, como cozinhava bem!, cativou, encantou e agregou vizinhos. A cozinha foi, provavelmente, sua área de descarga, de alívio das tensões, do sossego que, fora dali, não se permitia. Recuperou receitas ancestrais da avó materna, pássaro de Makow Mazowiecki, e as publicou num livreto precioso.
Dei-lhe esquecimento e silêncio, que duraram décadas, uma cicatriz no joelho, crueldade adolescente, o pavor de um fantasma (lençol semovente) em noite de ausência dos pais. Criei rivalidades artificiais, rixas pueris. Afrontava sua paixão beatlemaníaca dizendo que os Rolling Stones eram os maiorais. Bobagem que servia para demarcar territórios em épocas de disputa pela atenção dos adultos.
Hoje, muita estrada percorrida, estou convencido de que não é possível conhecer totalmente uma pessoa. Há tantas pedras no caminho, tanto caos e insegurança pendurados, tanta contradição cotidiana, que o máximo que se consegue é uma silhueta precária. Adaptamo-nos a ela para espantar a solidão. Afinal, caetaneando, de perto ninguém é normal.
No final da década de 80, passei por uma fase difícil, que resultou em muitas reavaliações. Com o degelo, selei um tratado de mútua tolerância com ela. Reconhecemos nossas diferenças, mas tentamos, sem rigidez, criar um pouco de intimidade. Visitei-a no exterior algumas vezes, conversamos um tantinho quando ela vinha aqui. Revelou-me, certa vez, um trauma de rachar. O pai morreu de ataque cardíaco aos 41 anos. Um dia antes, ela lhe deu um sanduíche de pão francês com leite condensado. Ao saber da morte fulminante, imaginou que tinha sido a culpada. Por envenenamento! Criança com 9 anos incompletos, pode-se calcular o tamanho do estrago psíquico.
Meses antes de morrer, demonstrou um afeto por mim que não esquecerei. Procurou um presente que teria a minha cara. Achou-o numa feira de antiguidades (sou mesmo muito antigo). Era um lindíssimo tinteiro francês, guarnecido por um leão (tara recorrente dos colonialistas europeus) e velho de séculos, que hoje enfeita minha escrivaninha. Todos os dias me saúda com mesuras imaginárias. Prova definitiva de que construímos laços, apesar de fantasmas e silêncios. Dá uma saudade estranha. Filme falado em sânscrito, sem legendas ou dublagem, que faço questão de não decifrar.
Eu estava no quarto, à cabeceira de seu leito final. Preparou-se para minha vinda com um cabeleireiro amigo, modelador de cabeleiras hollywoodianas, como se fosse receber o imperador da Abissínia. Perguntou-me sobre preferências alimentares. Esses cuidados, esses carinhos, tão imensamente significativos no momento da despedida derradeira, a Ceifadora não ia levar, não.
O sujeito oculto desta pequena, mas necessária, memória é Felicia Gruman Penido. Minha irmã.
O diagramador do jornal não deve ter percebido. Colocou em páginas consecutivas, uma ao lado da outra, dois assuntos aparentemente isolados, mas organicamente ligados. Na primeira, verdadeira revelação de horror, somos informados de que quase um terço dos adultos brasileiros (entre 15 e 64 anos) são analfabetos funcionais. Estamos estagnados aí desde 2018. Este mundão de gente não consegue interpretar frases elementares e tem enorme dificuldade para ler com um mínimo de fluência.
Os números aterradores mostram a indigência do sistema educacional básico, amputando o exercício pleno da cidadania. Além da falta crônica dos investimentos necessários, há situações que transformam as escolas em locais perigosos para alunos e professores. De acordo com levantamento do MEC, oito em cada dez professores de escolas públicas já presenciaram atos de bullying em sala de aula. São cada vez mais frequentes, também, os casos de agressões a professores.
A essas barreiras estruturais juntam-se os vícios das onipresentes telas. Conta uma jornalista, hoje professora da graduação, numa crônica recente do Ruy Castro: “É uma luta para fazer com que os alunos leiam um livro inteiro. Eles vivem grudados no TikTok ou no Instagram e não têm concentração. Outro dia, ao ver que todos estavam ao celular, parei a aula. Perguntei a alguns o que estavam vendo – e muitos não se lembravam. Não se lembravam do que tinham acabado de ver 15 segundos atrás!”.
No mundo digitalizado e dinamizado por tecnologias que se renovam rapidamente, o analfabetismo não é diferente de uma prisão. O analfabeto funcional exclui-se não apenas de amplos mercados de trabalho, mas do maravilhamento com as novidades que afirmam a criatividade humana. Não tomará conhecimento, por exemplo, da mais recente descoberta do telescópio James Webb. Analisando imagens do exoplaneta K2-18b, detectou moléculas que podem indicar a presença de formas de vida. Isso a 120 anos-luz de distância da Terra (cada ano-luz representa cerca de 9,5 trilhões de quilômetros)!
Bem, o que aparecia na página ao lado? Um adolescente de 15 anos, tratado como “missionário” e “profeta mirim”, diz ser capaz de curar o câncer. Faz pregações usando gestual e vocabulário de adultos. Simula ataques epilépticos como sinal de contato com transcendências. Já ultrapassou 1 milhão de seguidores em redes sociais. Cada vez que ouço falar neste tipo de charlatanismo, sou tomado por um misto de indignação e compaixão. Charlatães aproveitam-se de carências várias e prometem o impossível. Vejam vocês. Se alguém, qualquer alguém, fosse mesmo capaz de curar o câncer, melhor seria fechar todas as clínicas oncológicas, sucatear os equipamentos terapêuticos e incinerar os medicamentos usados em quimioterapia. Convocava-se o milagreiro, organizar-se-iam (desculpem o modo Jânio Quadros) filas de atendimento e a doença seria banida. Claro que isso jamais acontecerá e as multidões de crédulos, tomadas por dor e desespero, continuarão a idolatrar os mistificadores. Angústia nunca foi boa conselheira.
Há outros minipastores sapateando no rico mercado da fé. Tenho pena desta gente miúda. Encurtam a infância, sacrificada por interesses adultos. Por outro lado, quem consultaria uma criança ou adolescente em busca de orientação de qualquer tipo? É gente imatura, que está em formação, inocente do impiedoso vale de lágrimas, submetida a uma sólida corrente de inseguranças. Podem vestir-se como adultos, mas menores continuam sendo.
Duas páginas de jornal, dois aspectos que nos ajudam a compreender – e temer – o ornitorrinco Brasil.
A raça humana/não consegue suportar muita realidade (T. S. Eliot)
Quem mora neste balneário metido a besta conhece bem a expressão malandragem. Embora alguns a levem na maciota, uma brincadeira com assinatura carioca, a verdade é outra. Desde pequeno a ouço com muitas variantes. Quando a cidade era cortada por trilhos, apareceu o malandro que, ardiloso, tentou vender bonde para matutos mineiros. Provavelmente deu com os burros n’água. Mineiro (o folclórico) é quieto, mas de tolo não tem nada. Outros malandros inventaram truques para vender bilhetes de loteria. Existiam os do mundo cão, hábeis na navalha e exploradores do que a crônica policial chamava de baixo meretrício.
As práticas foram se aperfeiçoando e hoje sentam praça na administração municipal do Rio. Temos, aí está!, um prefeito malandro. Adora fazer jogo de cena, fantasiado de gente boa. Na prática, a cidade que governa está entregue às traças. Montado no jogo das aparências, anda lorotando por aí que o Rio deve ser a “capital honorária” do Brasil. Mais um carimbo ilusório, fantasia rota, para quem mora e circula pela cidade, onde o direito de ir e vir em segurança foi amputado e a desordem urbana e a incivilidade reinam sem concorrência e em cada rua, em cada esquina. Não conheço estatísticas, mas suspeito que o Rio não faria feio num torneio de ansiedade, insônia e sustos paranoides.
Desconheço os critérios, mas a Unesco escolheu o Rio como Capital Mundial do Livro em 2025. Sério mesmo? Alguns dos bairros mais populosos da cidade não têm sequer uma livraria decente. A calle Corrientes, em Buenos Aires, tem muito mais livrarias do que o Rio inteiro. Não há políticas públicas de incentivo permanente à leitura e ao consumo de livros. Salvam a honra e o apetite literário dos cariocas os heroicos sebos, polos de resistência bibliófila. Não há mais livrarias como a José Olympio e a Civilização Brasileira, que, muito além da venda de livros, eram pontos de encontro de intelectuais e de convivência entre leitores e seus autores prediletos. O prefeito, claro, capitaliza a notoriedade que lhe caiu no colo. Vai assinar eventos efêmeros, brilharecos que renderão aplausos alugados e morrerão no último dia do ano. Malandragem de baixa estirpe.
Ano passado, o bairro de Copacabana foi violentado muitas vezes por eventos privados. A prefeitura alugou a areia da praia para todo tipo de furdunço. O maior deles, com uma autodenominada periguete recebida a pão-de-ló, forçou os moradores a um exílio interno, ornado por trânsito caótico, vias interditadas, montanhas de lixo, urina e resíduos impublicáveis espalhadas por todo canto. Animado com a publicidade, o Malandro do Piranhão decretou: maio será, doravante, o mês de grandes eventos. Tradução: conformem-se, cidadãos, seu direito de ir e vir estará limitado por um tempinho. Já estou abastecendo meu bunker com provisões e paciência. Daqui a alguns dias, uma certa Lady qualquer coisa (seria a Neide Aparecida, atualizando suas perucas?) vai sacudir a pança e comandar a massa. Ótimo para os que também vão sacudir panças. Nosotros, os demais, fecharemos pra balanço e aguardaremos a borrasca passar.
Se o Reizinho da Cidade Nova gosta de mobilizações, que tal seria transformar o mês de maio, por exemplo, num período de convocação da população para mutirões de conserto e manutenção das escolas municipais? Seria uma forma criativa de aproximar os cariocas da triste realidade dos equipamentos educacionais públicos desta cidade e uma alternativa não demagógica de fazer política ao lado da que João do Rio chamava “alma encantadora das ruas”. Sem plumas, paetês e figurinos exóticos, mas com verdadeiro amor pela cidade.
Ainda em Copacabana (desculpem o excesso de citações do bairro, mas é aí que moro), aconteceu uma situação que resume o espírito de porco que anda reinando por aqui. O cinema Roxy, inaugurado em 1938, fechou as portas e seus restos mortais foram transformados em Roxy Dinner Show. Trata-se de casa de espetáculos para turistas, com refeições inacessíveis ao cidadão médio.
Assim tem funcionado o botequim. Tapete vermelho e balangandãs para turistas, salve-se quem puder para os locais. Com trilha sonora eletrônica em volumes assassinos.
Olha bem no dicionário e reflita: não há nenhuma palavra com um significado só (Millôr Fernandes)
Colecionador e pesquisador precisam de sorte. Num porão semiabandonado, o filatelista sonha esbarrar no Olho de Boi. Num sebo, soterrado por livros e revistas empoeirados, o pesquisador atento, e bem-aventurado, descobrirá a edição original do Almanhaque 1949, autografada pelo Barão de Itararé. Dentro de uma lata enferrujada, amassada e descartada de Balas Balsâmicas Silva Araújo, o numismata pode encontrar a pataca há muito desejada. Pé de pato, mangalô, três vezes. Salve o pé de coelho!
Imaginem então a excitação do jornalista, escritor e pesquisador Thiago Uberreich quando descobriu o conteúdo de um lote de áudios que ganhou de um desconhecido. Eram registros sonoros de transmissões pela TV dos jogos da seleção brasileira na Copa de 70. Estavam no acervo da falecida TV Tupi (canal 6, no Rio de Janeiro) e, há muito, dados como perdidos. A transmissão naquela Copa foi feita por um pool de emissoras, com imagem e locução unificadas. Ali, ao alcance dos tímpanos de Thiago, ressuscitavam Fernando Solera, Geraldo José de Almeida, Walter Abrahão e Oduvaldo Cozzi. Equipe de lordes da voz, antíteses dos esgoeladores sem noção que dominam as narrações de hoje.
A ascensão dos locutores estridentes não é gratuita. Ela se dá no exato momento em que tudo no tecido social parece demandar algazarra e som nas alturas. Desde a praga dos bares aos shows megatônicos nas praias, dos “debates” tóxicos nas redes sociais à prática política. O silêncio, a introspecção, o murmúrio, o papo calmo, viraram esquisitices. Coisa de gente chata.
Com o excesso de ruído, perde-se o espetáculo das vozes ao redor. Drummond conversava com a amendoeira que coloria seu olhar na janela do apartamento em Copacabana. Quantas poesias nasceram desta troca silenciosa? Numa das cenas mais belas da história do cinema, com enorme carga dramática, não há palavras. No final de Eles não usam black tie, os personagens de Gianfrancesco Guarnieri e Fernanda Montenegro catam em silêncio as pedrinhas que vinham misturadas com os grãos de feijão. Tinham acabado de passar por experiências difíceis, traumáticas. Suas expressões mostram cada nervo rompido, cada angústia, cada afirmação de solidariedade. Quem precisava de palavras? The sounds of silence.
Certa vez, perguntaram ao José Saramago o que achava da morte de palavras, aquelas que desaparecem pelo desuso. Respondeu lamentando-se e projetando um futuro em que nos comunicaremos por monossílabos. O empobrecimento vocabular acentua-se com a linguagem telegráfica das mensagens eletrônicas e o tombo na leitura de livros. Este tipo de silêncio destrói conteúdos.
Há vozes sufocadas, muitos pedidos de socorro que caem no vazio. As populações periféricas nas grandes cidades não conseguem interlocução para agregar vozes à luta permanente contra violências identificadas e toleradas. Moradora do Complexo da Maré, conjunto de favelas na Zona Norte do Rio, descreve sua infância com trilha sonora de tiros e gritos. “Cresci achando que o mundo era assim. Que era normal ter tiro toda hora. Aqui na Maré a gente conhece a maldade cedo”. E vai seguindo a procissão, a cidade barulhenta, surda às vozes de seus filhos persistentes.
Como Thiago, eu gostaria de recuperar vozes do passado. Melhor dizendo, uma voz. No Bar Mitzva, o Menino discursou por cercaintimidade de 15 minutos. Texto decorado depois de meses de ensaios. Escrito em ídish, idioma com o qual tinha pouca . O Grande, enfatiotado e cabelo reco fazendo dupla com o Menino, segurou o microfone e lascou: “Manda brasa!”. A coisa foi toda gravada, mas a expressão robertocarlista acabou cortada na edição final. Tantos anos depois, eu queria ouvir novamente o Zissinho sair do sério por breves segundos e me animar daquele jeito. Se pudesse, eu pediria que, depois, ele largasse o microfone e me abraçasse. Em silêncio cúmplice. Faria muita diferença.
Olha bem no dicionário e reflita: não há nenhuma palavra com um significado só (Millôr Fernandes)
Colecionador e pesquisador precisam de sorte. Num porão semiabandonado, o filatelista sonha esbarrar no Olho de Boi. Num sebo, soterrado por livros e revistas empoeirados, o pesquisador atento, e bem-aventurado, descobrirá a edição original do Almanhaque 1949, autografada pelo Barão de Itararé. Dentro de uma lata enferrujada, amassada e descartada de Balas Balsâmicas Silva Araújo, o numismata pode encontrar a pataca há muito desejada. Pé de pato, mangalô, três vezes. Salve o pé de coelho!
Imaginem então a excitação do jornalista, escritor e pesquisador Thiago Uberreich quando descobriu o conteúdo de um lote de áudios que ganhou de um desconhecido. Eram registros sonoros de transmissões pela TV dos jogos da seleção brasileira na Copa de 70. Estavam no acervo da falecida TV Tupi (canal 6, no Rio de Janeiro) e, há muito, dados como perdidos. A transmissão naquela Copa foi feita por um pool de emissoras, com imagem e locução unificadas. Ali, ao alcance dos tímpanos de Thiago, ressuscitavam Fernando Solera, Geraldo José de Almeida, Walter Abrahão e Oduvaldo Cozzi. Equipe de lordes da voz, antíteses dos esgoeladores sem noção que dominam as narrações de hoje.
A ascensão dos locutores estridentes não é gratuita. Ela se dá no exato momento em que tudo no tecido social parece demandar algazarra e som nas alturas. Desde a praga dos bares aos shows megatônicos nas praias, dos “debates” tóxicos nas redes sociais à prática política. O silêncio, a introspecção, o murmúrio, o papo calmo, viraram esquisitices. Coisa de gente chata.
Com o excesso de ruído, perde-se o espetáculo das vozes ao redor. Drummond conversava com a amendoeira que coloria seu olhar na janela do apartamento em Copacabana. Quantas poesias nasceram desta troca silenciosa? Numa das cenas mais belas da história do cinema, com enorme carga dramática, não há palavras. No final de Eles não usam black tie, os personagens de Gianfrancesco Guarnieri e Fernanda Montenegro catam em silêncio as pedrinhas que vinham misturadas com os grãos de feijão. Tinham acabado de passar por experiências difíceis, traumáticas. Suas expressões mostram cada nervo rompido, cada angústia, cada afirmação de solidariedade. Quem precisava de palavras? The sounds of silence.
Certa vez, perguntaram ao José Saramago o que achava da morte de palavras, aquelas que desaparecem pelo desuso. Respondeu lamentando-se e projetando um futuro em que nos comunicaremos por monossílabos. O empobrecimento vocabular acentua-se com a linguagem telegráfica das mensagens eletrônicas e o tombo na leitura de livros. Este tipo de silêncio destrói conteúdos.
Há vozes sufocadas, muitos pedidos de socorro que caem no vazio. As populações periféricas nas grandes cidades não conseguem interlocução para agregar vozes à luta permanente contra violências identificadas e toleradas. Moradora do Complexo da Maré, conjunto de favelas na Zona Norte do Rio, descreve sua infância com trilha sonora de tiros e gritos. “Cresci achando que o mundo era assim. Que era normal ter tiro toda hora. Aqui na Maré a gente conhece a maldade cedo”. E vai seguindo a procissão, a cidade barulhenta, surda às vozes de seus filhos persistentes.
Como Thiago, eu gostaria de recuperar vozes do passado. Melhor dizendo, uma voz. No Bar Mitzva, o Menino discursou por cercaintimidade de 15 minutos. Texto decorado depois de meses de ensaios. Escrito em ídish, idioma com o qual tinha pouca . O Grande, enfatiotado e cabelo reco fazendo dupla com o Menino, segurou o microfone e lascou: “Manda brasa!”. A coisa foi toda gravada, mas a expressão robertocarlista acabou cortada na edição final. Tantos anos depois, eu queria ouvir novamente o Zissinho sair do sério por breves segundos e me animar daquele jeito. Se pudesse, eu pediria que, depois, ele largasse o microfone e me abraçasse. Em silêncio cúmplice. Faria muita diferença.
Assisti recentemente os dois primeiros episódios do documentário Folha Corrida, que tem na direção e equipe de pesquisa/apoio os queridos irmãos Chaim e Rachmiel Litewski. O tema é a colaboração do Grupo Folha com a repressão durante a ditadura civil-militar instalada em 1964. O Ministério Público Federal abriu inquérito que analisará a responsabilização do grupo em violações dos direitos humanos cometidas no período 1964-1985.
Assinante da Folha de São Paulo há mais de trinta anos, resolvi aproveitar o gancho para refletir sobre o papel geral da imprensa na implantação e consolidação da ditadura. Como cauda do cometa, dou uma espiada nas reiteradas acusações de golpismo que determinados setores lançam sobre a Folha. Como a acusação é genérica, suponho que este golpismo refira-se aos dias que correm.
Parto de uma premissa: abandonem-se as ilusões sobre a imprensa na sociedade capitalista. Sem duvidar da integridade e da competência de muitos jornalistas aqui e alhures, que têm minha admiração e respeito, os objetivos de jornais e grupos de comunicação não são diferentes dos de qualquer empresa privada. Os proprietários visam o lucro, vivem da exploração de mais-valia e defendem, com estratégias mutantes e linguagem adaptável, os interesses da classe dominante. Noves fora, este é o resumo da ópera.
Isto posto, vejamos o que disse a mídia impressa na alvorada da ditadura. O Globo, entre 2 e 4 de abril de 1964: “Ressurge a democracia! Vive a nação dias gloriosos”, “Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares que os protegeram de seus inimigos”, “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restaurada, atendendo aos anseios nacionais de paz, tranquilidade e progresso”. Correio da Manhã, 31 de março e 1 de abril: “Basta! Fora! Só há uma coisa a dizer ao senhor João Goulart: saia!”. Tribuna da Imprensa, 2 de abril: “Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas”. Jornal do Brasil, 1 de abril: “Desde ontem se instalou no País a verdadeira legalidade”.
O que pensava O Estado de São Paulo, jornal que representava as elites quatrocentonas da pauliceia desvairada? Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal, propôs a dissolução do Poder Legislativo em todos os níveis, a anulação dos mandatos dos governadores e prefeitos e a suspensão do habeas corpus. Perfil e sombra dos “democratas” dantanho. Mesquita, Marinho, Nascimento Brito e outros “empresários da notícia” afinados aos interesses burgueses ameaçados pelas tímidas reformas do governo João Goulart.
Indo para a Folha de São Paulo. Eu a leio desde os anos 70, quando o regime exercia draconiano poder de censura e coerção. Ao longo de todos estes anos, o jornal não foi uma linha reta. Fez coberturas importantes no assassinato do jornalista Vladimir Herzog (quadro do PCB, morto sob tortura nas dependências do DOI-CODI), na campanha pelas Diretas e no atentado do Riocentro. Acho que a direção percebeu, nestes dois últimos casos, o aroma de mudanças no ambiente político. A ditadura dava sinais de esgotamento, a linha do jornal acompanhou esta percepção, em benefício dos que lutávamos pelo fim do regime.
É importante lembrar alguns dos jornalistas/colaboradores que passaram pela Folha e lhe deram uma personalidade sem equivalente na imprensa brasileira. Alberto Dines, Claudio Abramo, Newton Rodrigues, Jânio de Freitas, Carlos Heitor Cony, Otto Lara Resende, Isac Akcelrud, Lourenço Diaféria, Ricardo Kotscho, Florestan Fernandes, Marcelo Coelho, Aloysio Biondi, Vladimir Safatle: globetrotters do ofício. Como registro adicional, lembro de uma série de matérias que o Eduardo Suplicy escreveu sobre a China, numa época em que isso podia resultar numa visitinha noturna de agentes do DOPS.
Dando um salto para o presente, o jornal desidratou e perdeu muito do peso que tinha, especialmente nas seções de economia e política. Apesar disso, mantém uma equipe respeitável, que, como leitor e atento observador de coisas e loisas, não posso prescindir. Ruy Castro, Alvaro Costa e Silva, Mariliz Pereira Jorge, Drauzio Varella, Mario Sergio Conti, Thiago Amparo, Vera Iaconelli, Antonio Prata, Muniz Sodré, Juca Kfouri, Tostão, Conrado Hübner Mendes, Laerte, Jean Galvão e Bennett (cartunistas), ensaios do caderno Ilustríssima. Fora esses e alguns colaboradores eventuais, há o João Pereira Coutinho, um liberal inteligente, com quem mantenho diálogo silencioso em torno de muitas divergências. Sobre ele, que não apela para ofensas, usa bons argumentos e tem muito bom-humor, vai uma observação. Acho mutilante ler apenas os que, a priori, pensam como nós. É a tal da bolha, que, no fundo, funciona como espelho narcísico e ignora a mais rica das tradições da esquerda: o diálogo com os contrários. Marx debatia com Bruno Bauer, Engels enriqueceu seu tempo contestando Dühring, Leandro Konder propôs conversa com Mário Henrique Simonsen.
Não leio “a” Folha, mas artigos, reportagens e colunas da Folha. Como acredito que fazem todos os leitores de qualquer jornal. E aqui chego à acusação recorrente que mencionei no início. Seria o jornal da família Frias um órgão a favor do golpismo (assim mesmo, genérico, atemporal, que é como aparece nos dedos apontados)? Estaria ombreado, por exemplo, à estrutura recém desarticulada que tentou impedir a posse de Lula em 2023 e implantar uma nova ditadura? A alegação dos acusadores é de que isso fica claro nos editoriais e, adicionalmente, numa cobertura enviesada por supostos apoios velados ao bolsonarismo (as entrevistas com o JMB e Carla Zambelli o “demonstrariam”).
Confesso, mea maxima culpa, que não costumo ler os editoriais da Folha. No entanto, aqueles que li mostram uma oposição antipetista, que se manifesta em críticas a programas econômicos e escolhas políticas, mas não estimula, promove ou defende golpe para derrubar governo (como no caso clássico, já mencionado, do Correio da Manhã, em março/abril de 64). Alguma surpresa? Só para ingênuos.
Por outro lado, o jornal publica uma imensa diversidade de opiniões sobre a conjuntura político-econômica nacional. Dezenas delas claramente antigolpistas e com chamada de capa. Cito, pela contundência, o artigo Biblioteca oficial do crime bolsonarista, do dia 3 de abril passado, assinado por Conrado Hübner Mendes (professor da USP, doutor em direito e ciência política e membro da SBPC). Esta diversidade, longe de ser tóxica, é estimulante. Ler não é aderir, pensar não é concordar. Em tempo: achei ótima a ideia de entrevistar JMB e a Zambelli. Com perguntas pertinentes, o jornal desnudou com elegância estes personagens pérfidos. Quando se quer matar um vampiro, joga-se luz sobre ele.
Há um outro detalhe, nada irrelevante. Qual seria a atitude de jornalistas experientes e nada conservadores se percebessem que o jornal colabora para derrubar governo? Fariam voto de silêncio? Participariam, “vendidos” e na calada da noite, da conspiração para quebra da legalidade? Imagino a cena surrealista de gente como Mario Sergio Conti e Alvaro Costa e Silva, iluminados por lampiões trêmulos, esfregando as mãos e passando o pano para bacanais golpistas. A coisa é tão verossímil quanto acreditar que Eurico Miranda não passava de um rubro-negro infiltrado nas hostes vascaínas.
Acho que a ditadura deixou um rastro de intolerância no convívio com as diferenças. Isso é agravado com a lógica das redes sociais. Vejo em setores da esquerda uma reação pavloviana quando esbarra em posições/opiniões divergentes. Atira-se de imediato e sem delongas, com evidente fragilidade conceitual, os rótulos de “golpismo” e “fascismo”. A generalização, como sempre, esvazia o sentido destas palavras. Claro que existem fascistas e golpistas, o combate a eles deve ser implacável. É preciso, entretanto, identificá-los e diferenciá-los dos adversários conservadores. Sob pena de se montar uma estratégia equivocada para enfrentá-los.