Espelho distorcido
Os mais rodados não devem ter esquecido. Delfim Netto, czar da economia no período mais sanguinário da ditadura civil-militar, pedia paciência para o povo. “É preciso deixar o bolo crescer para depois dividi-lo”. Com o cinismo de sempre e protegido pela caserna, garantia que a riqueza gerada pelo processo de acumulação de capital seria dividida por todos. Antes, porém, era necessário engordar o PIB. Por trás da mensagem, a crença na sabedoria dos mecanismos de mercado. Era dele, postulavam Delfim e seus blue caps, que viria a justiça social.
Das ruínas da ditadura sobrenadou a realidade: um país obscenamente desigual. As políticas econômicas delfinistas beneficiaram as camadas mais ricas, que jamais repartiram seus ganhos. A gula da classe dominante não tem limites e, sem luta, continuará voando em céu de brigadeiro. Esperar senso de justiça do capital é o mesmo que acreditar que da gravidez de uma girafa vá nascer um periquito.
Já faz tempo que a imprensa vem falando do humor do “mercado”. Ora está nervoso, ora está eufórico, ora se deprime, ora se exalta. Dito assim, parece um organismo autônomo, predicado sem sujeito. Não é difícil desmascarar esta metáfora mal-ajambrada. Os senhores do “mercado”, na sombra das notícias e com aparência neutra, são os proprietários dos meios de produção material e subjetiva da sociedade. Querem nos convencer de que seus interesses de classe se confundem com os do conjunto da população. A farsa é difundida com a colaboração dos grandes meios de comunicação, eles mesmos parte deste “mercado”.
Não faz muito, uma pesquisa da Genial/Quaest indicou que 90% dos operadores do mercado financeiro não confiam no governo e 85% acham que a isenção do Imposto de Renda de quem ganha até cinco salários mínimos é nociva à economia. Eis aí o “mercado” sem maquiagem. Concorda com todas as isenções fiscais para seus investimentos e aplicações financeiras, discorda com veemência de pequenos alívios na canga que tortura os trabalhadores. Resumo da ópera: ao ler “mercado” no noticiário, substitua por classe dominante. Não compre gato por lebre, não se iluda com o espelho distorcido.
Vejam o que acontece na Argentina. Depois de um ano do governo protofascista de Javier Milei, o “mercado” (representantes do agronegócio, dos setores bancário, industrial e de turismo) anda rindo à toa. Os ajustes macroeconômicos dão sinais positivos em alguns indicadores, mas resultaram na explosão da indigência e da pobreza. Nunca houve tantos pobres no país (já são mais de metade da população), o número de indigentes dobrou em um ano. São vidas sacrificadas no altar das convicções ultraliberais da extrema-direita. Lá como cá, difunde-se o mito de que o sacrifício terminará em breve e a riqueza gerada pelo trabalho será distribuída com justiça. Espontaneamente, por compaixão e solidariedade. Acredite quem quiser. Torço para que a conhecida combatividade dos oprimidos argentinos enfrente a hidra como se deve.
Por aqui, o “mercado”, que já apoiou golpes e aventuras sórdidas, vai desenhando seu representante para 2026. O periscópio visualiza um governador bolsonarista “moderado”, cuja polícia tem cometido atrocidades em série. Com a alergia usual ao povo, setores da classe média tendem a apoiá-lo. Tudo contra os “comunistas”! Não vai ser trivial combater o projeto da extrema-direita fantasiada de civilidade.
Comecei com Delfim, termino com ele. O Gordinho Sinistro morreu este ano, sob salva de loas de boa parte da imprensa e dos que consideram seu apoio à ditadura um pormenor. Ele, que assinou o AI-5 e não se arrependeu disso. Ele, íntimo dos ditadores fardados, e que, garantem várias fontes, intermediou a coleta de recursos empresariais para sustentar a OBAN. Estranho país, o Brasil. Como dizia o Ivan Lessa, a cada 15 anos o brasileiro esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos.
Abraço. E coragem.
Jacques
Fevereiro, vespeiro
Ao Joaquim Ferreira dos Santos, pela inspiração involuntária.
“Agosto, desgosto”. Cresci achando que o oitavo mês do ano chamava desgraça. Mal saído dos cueiros, ouvi os Grandes, expressões pesadas, cochicharem sobre o suicídio do Getúlio Vargas, multidões em desespero nas ruas. Era agosto, 1954. Teria sido uma frustração amorosa? Um bife que desmerecia a memória gaúcha e clamava por haraquiri? Praga daquele mês agourento? Que sabia o Menino dos ardis, tramas, alcovas e trapaças da política nacional? A fase, para ele, era de calças curtas e inseguranças.
A vida preparou outros fados. Para mim vale o dito “fevereiro, vespeiro”. Neste mês, em anos diferentes, morreram cinco familiares diretos. Cinco lutos, cinco sentimentos rascantes, cinco reinícios penosos. Sou o último remanescente da família original e, nesse papel, aprendi a respeitar o mistério insolúvel da Morte. Seria exagero dizer que há uma forma de beleza nestas despedidas. Não há. O que me coube foi descobrir estratégias pessoais para definir o que é a Vida.
No último dia de fevereiro deste ano, minha irmã, radicada há muitos anos nos Estados Unidos, perdeu a batalha contra o câncer. Enfrentou-o corajosamente por três anos, fazendo planos, viajando, lutando. Não deu. Deixara claro que preferia acabar rapidamente caso a perspectiva fosse de transformar-se num vegetal espetado de tubos. Respeitamos seu desejo. Para ela, viver não era apenas durar com expedientes artificiais.
Pertencíamos a galáxias diferentes, mas tive com ela breves momentos em que o prazer da companhia dava algum sentido à vida, com sua essência efêmera. Num impulso mal planejado, casou-se em Los Angeles. Lá estivemos e o inesperado se fez belo. Saímos da casa dela para o local do casório ouvindo no carro uma rádio local. O programa chamava-se Breakfast with The Beatles, versão ianque do nosso Cavern Club, do impagável Big Boy. Minha irmã era devota do quarteto de Liverpool. Cantamos/tralalamos durante todo o trajeto. Foi um tal de Here, there and everywhere, A hard day’s night e She loves you, tudo tão feliz e intenso que, asseguro, ainda não acabou. Transitando para o Led Zeppelin, aquilo foi um Stairway to heaven. Como diz a letra: Makes me wonder.
O avô materno, imigrante, pequeno comerciante, viveu sempre no fio da navalha. Adoeceu gravemente e, hospitalizado em estágio terminal, teve um fim relativamente rápido. Certo dia, fui visitá-lo e cheguei na hora do almoço. Estava semiconsciente, tomando mecanicamente uma sopa rala. Os olhos estranhamente opacos. Apesar daquele estado, em que a Indesejada das Gentes já estava de plantão, afiando sua ferramenta implacável, meu avô reclamou severamente: “A sopa está sem sal!”. Naveguei entre choque e surpresa. Que importância podia ter um tantinho de sal para um moribundo? Não fazia o menor sentido. Hoje, acho que ele se agarrou, sem perceber, ao que simbolizava o sabor da vida. Não era, afinal, um vegetal. Tinha desejo de viver e queria ir assim, dignamente, até a última volta do ponteiro. Com saleiro e tudo.
Minha mãe viveu uma triste coincidência. Como assistente social, trabalhou alguns anos no Instituto do Câncer. Dizia, para um Menino atônito, que entrava em elevadores onde estavam enfermeiros levando órgãos de mortos para pesquisa, usando-os como malabares! Minha imaginação dava cambalhotas de horror. Quando adoeceu, ficou internada por um tempo naquele hospital, o que deve ter-lhe despertado más lembranças. Já em casa, para morrer em ambiente familiar, recusou certos cuidados paliativos. No fundo, decidiu quando era hora de saltar do bonde. Um direito elementar, que ainda hoje certos apóstolos do sofrimento, vestindo capa religiosa, teimam em censurar.
Tudo aconteceu em fevereiro, que não é para mim mês de ziriguidum, esquindô-esquindô e fantasia de pirata. É tempo de pensar nessas histórias, no que podem ensinar enquanto não termina meu prazo de validade. E la nave va.
Abraço. E coragem.
A favor dos livros
Livro não enguiça (Millôr Fernandes, fazendo sugestão de slogan para editores de livros enfrentarem a mídia informática de modo geral)
É de amargar. Pesquisa recente concluiu que, pela primeira vez, a maioria dos brasileiros não lê livros. Tudo muito estarrecedor. Entre os entrevistados, 53% não leram sequer uma parte de um livro nos três meses anteriores à pesquisa. Estão incluídas obras didáticas e religiosas, bem como edições nos suportes impresso e digital. Em números absolutos, houve uma queda de 6,7 milhões de leitores em relação à pesquisa anterior (cinco anos atrás). A parcela dos que afirmaram não gostar de ler subiu 7 pontos percentuais, ultrapassando a fatia dos que gostam muito de ler.
Há muito caroço debaixo deste angu. A ascensão das redes sociais e de todo tipo de detrito eletrônico sequestra tempo e neurônios de boa parte da humanidade. Na pesquisa que mencionei, muitos entrevistados alegaram “não ter tempo” para ler. Ora, é evidente que essa é uma escolha, não uma fatalidade. Mais fácil e ligeiro engolir memes fofinhos, bichinhos se comportando como humanos, receitas mil num país de desdentados, sensacionalismos e piadas imbecis do que encarar um texto que exige atenção, envolvimento com personagens e histórias complexos, exercício da imaginação. O resultado é que despenca o número de livrarias. O Rio de Janeiro perdeu 60 delas em seis anos. É um processo devastador, que propaga ignorância e pavimenta o caminho da desinformação.
Pequeno parêntese. Já existem várias doenças associadas à dependência de telas de tamanho variado. A nomofobia, por exemplo, é uma condição patológica relacionada ao medo de ficar sem o aparelho celular. É um povo que sua frio, tem espasmos nas tripas, taquicardia, boca seca e alucinações não-lisérgicas quando se vê ameaçado de perder conexão por frações ínfimas de tempo. Zumbis instantâneos. Livro não tem disso não. A aflição do leitor é, no máximo, a de lamentar não ter descoberto antes aquela história interessante e uma pontinha de inveja por não ter sido o escritor.
Para agravar o quadro de ataque à leitura, que está longe de ser epidemia apenas verde-amarela, há lugares onde a censura vai bem, obrigado. Na “maior democracia do Ocidente”, está em curso uma blitzkrieg em bibliotecas públicas e escolares. De acordo com a PEN America, organização que defende a liberdade de expressão na literatura, houve este ano 10.046 casos de banimento de livros nos Estados Unidos. As obras são retiradas de prateleiras de bibliotecas públicas ou de escolas. O cardápio da aberração vai de Shakespeare a George Orwell, de Oscar Wilde a Toni Morrison, de James Baldwin à, pasmem!, Bíblia (banida em Utah por “vulgaridade e violência”), de Hemingway a Flaubert.
De mãos dadas com os ianques, o governo argentino atual apoia pedidos de uma fundação conservadora para retirar das escolas de Buenos Aires alguns livros que considera pornográficos. Há resistência. Mais de 120 escritores fizeram leitura pública coletiva das obras ameaçadas, num teatro portenho. Livrarias expõem estes livros nas vitrines.
Sou incapaz de me imaginar sem livros por perto. O Menino se construiu desde cedo pelas palavras impressas. Através delas, percorreu pradarias, atravessou rios e riachos, estraçalhou escudos e armaduras, derrotou Botvinnik e Tal em partidas épicas, aprendeu a sonhar de olhos abertos. Valsou com donzelas setecentistas, capoeirou, tangou, bancou o ladrão de casaca, teve pernas tortas e renasceu em Itabira. Sem se mover, abraçado em capítulos que nunca têm ponto final.
Lamento os que se privam da experiência da leitura. Ficam menos capazes de compreender alhos e bugalhos. Perdem uma das formas mais ricas que o Homem desenvolveu para se comunicar. Desconhecem o prazer do convívio que se processa na imaginação, do compartilhamento de sentimentos que se julgavam isolados, das ideias que brotam de assombros.
Jorge Luis Borges dizia que a melhor imagem do paraíso seria uma livraria (em tradução livre). Ruy Castro pensa diferente. Para ele, em vez de livraria, o paraíso seria um sebo. Atrevo-me a fazer um cruzamento dos dois. Para mim, o Nirvana teria uma arquitetura mista. Parte livraria, com novidades em desfile infinito como a curiosidade humana. Parte sebo, com prateleiras habitadas por livros esquecidos, fungos, traças, poeira e beleza de imagens que marcam os caminhos incertos que nos trouxeram até aqui.
Abraço. E coragem.
Sombras da cidade
Circo desarmado, a cidade volta ao aflitivo normal. Como sempre acontece nas reuniões deste tipo, o G20 produziu papelada, discurseira e fotos que vão rápido para a lata de lixo da História. Ninguém acredita à vera que as grandes questões internacionais se resolvem sob holofotes ou microfones abertos. Os jogos de poder são, por natureza, sigilosos e inescrupulosos. Não há sorrisos em guerras comerciais e culturais.
No meio do convescote, uma certa senhora, que me parece deslumbrada pela súbita notoriedade, deitou falação desastrada. O marido, velha raposa, passou-lhe um pito elegante, embora óbvio. Do episódio, resulta uma pergunta a quem interessar possa: quando é que vão extinguir o “cargo” de primeira-dama? Não falo de uma em particular, mas de todas. Nada vai me convencer que alguém ganha status/voz especial apenas porque está casada com um presidente. Seja da Associação Trairiense de Futebol, da Confederação Brasileira de Bocha e Bolão ou da Transnístria.
Aproveitando o banzé que se criou para a reunião do G20, uma revista inglesa publicou matéria sobre o quê os cariocas não tolerariam ouvir de visitantes (sic). Veio, claro, um desfile de clichês. Criticar, por exemplo, o hábito de andar com chinelos de dedo, a qualidade das cervejas locais, a suposta indolência em comparação com os paulistanos e a violência sob diversas formas seria entendido como ofensa. Bobagem grossa. Temos, os cariocas-raiz, um senso afiado e longamente cultivado de autocrítica. Razões não faltam.
Nosso trânsito foi muito bem definido por um californiano com quem conversei faz tempo. Ele cometeu a imprudência de alugar um carro para se movimentar na nossa cidade. Muitos sustos depois, desabafou: If you can drive in Rio, you can drive everywhere. O jeitinho sangue-nos-olhos ao volante tem velho pedigree. Júlia Lopes de Almeida, cronista da belle époque carioca, escreveu em 6 de agosto de 1912: “Quem tiver de sair a passeio pelas ruas do Rio terá por prudência de confiar sua alma a Deus antes de pôr pé nas ruas mais frequentadas pelos automóveis, que não matam só pelo esmagamento, mas pela sufocação também”.
As cervejas, das quais seríamos, na visão britânica, enfáticos porta-estandartes, jorram aos hectolitros da maior infecção da cidade: os bares, que entulham calçadas, propagam todo tipo de barulho sem qualquer controle, empesteiam o ar com as frituras que vendem. Uma praga de proporções bíblicas. Tenho inveja dos moradores de Praga, capital da república tcheca. Os vereadores de lá aprovaram medida que proíbe os chamados tours noturnos por bares (grupos de frequentadores que, sem medir decibéis, invadem estes espaços). Entre outras razões, alegaram a grave perturbação do sossego dos moradores. Pois é, lá não ignoram que a cidade vai além de coxinhas, pataniscas e tremoços. Por incrível que pareça, tem sempre gente morando nas redondezas.
Não vou citar o crescimento metastático das milícias, a miséria que se exibe nos becos, embaixo de marquises e nas calçadas, a mais absoluta indiferença à sujeira que se acumula em equipamentos urbanos, a sensação crônica de insegurança. Fico numa observação ligeira feita pelo Álvaro Costa e Silva, o Marechal, cronista bamba das coisas e gentes do Rio. De uns tempos para cá, disse o Marechal, há uma sonoplastia bossa nova no ar, que substitui o canto dos pássaros nas árvores. São os latidos, numa sinfonia neurotizada e sempre inacabada (que não se associe isso ao pobre Schubert). Cães de todos os tamanhos, dos unicelulares aos megatérios, reinam sem freios, transformando silêncio em pecado capital.
Não vivo numa cidade fácil, cada vez menos amigável, e não teria o menor problema de ouvir críticas de visitantes. Acho risível o bairrismo brega, que prefere olhar apenas para as lindezas da cidade e relevar os graves problemas do nosso cotidiano. Apesar de tudo, aviso aos navegantes: o Rio continua na minha pele, nos meus caminhos e senhor das minhas memórias. E, como diria o Chico, “mesmo com o nada feito, com a sala escura, com um nó no peito, com a cara dura, não tem mais jeito, a gente não tem cura”. Não tendo jeito, ué, a gente vai levando.
Abraço. E coragem.
Vida e morte
Eram uma espécie de Quarteto Fantástico com digital mineira. Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos conheceram-se em Minas Gerais, mas foi no Rio de Janeiro que apareceram para o mundo. Cada um do seu jeito, mantendo por décadas uma amizade que ainda hoje, tempo de ligeirezas e superficialidades, espanta.
Havia uma outra dupla de mineiros que, mais tarde acariocados, teceram uma rede de afetos que atravessou mundos e fundos. Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, interioranos, encontraram-se por acaso, nos anos 1920, em um restaurante de Belo Horizonte. Ali era o quartel-general de amigos em busca de movimento numa cidade proverbialmente quieta. Drummond chamou a atenção de Nava pelo temperamento tímido, de poucas palavras. Por uma dessas alquimias inexplicáveis, entrosaram-se.
Já no Rio, Carlos e Pedro nunca perderam contato. Ainda que morando na mesma cidade, trocavam cartas e mensagens carinhosas regularmente. Foi Drummond que estimulou o amigo, médico de prestígio, a escrever poesias, o que ele fez de forma bissexta. A partir dos anos 1960, foram assíduos frequentadores do Sabadoyle, sarau literário que acontecia aos sábados na casa do bibliófilo Plínio Doyle, em Ipanema. Drummond escreveu atas memoráveis dos encontros.
Prestes a completar 80 anos, Pedro Nava, com sólida carreira como reumatologista, cercado de amigos, saúde em dia, casado por quatro décadas com a mesma mulher, memorialista caudaloso, tomou uma atitude inesperada. Em maio de 1984, finzinho de noite, tocou o telefone de seu apartamento, no bairro da Glória. Dona Nieta, sua mulher, atendeu. A voz pediu para chamar Pedro. Ele atendeu e, ao desligar, parecia transtornado. Ninguém sabe o teor da conversa.
Sem que Nieta o percebesse, Pedro pegou um revólver e avisou que ia sair por uns instantes. Já na calçada, andou uns duzentos metros, apontou a arma para a cabeça e matou-se. Sua morte provocou uma onda de choque. Como era possível que uma pessoa como aquela, sem traços depressivos aparentes, com projetos interessantes em curso (seus livros memorialísticos viraram clássicos), sem dívidas ou pendências alucinadas, resolvesse acabar com a vida? É um mistério que ultrapassa o tiro dado naquela noite na Glória e faz lembrar, com pequena alteração, o bordão de um velho programa da rádio Nacional: Quem sabe o mal-estar que se esconde nos corações humanos? No programa, dizia-se que O Sombra sabia. Sorte dele, porque, em verdade, nenhum de nós sabe.
Vida e Morte andam por aí, em diálogo permanente. A gente acha que a cara da Morte, a Ceifadora Implacável, é feia. E é mesmo. O que fazer com ela é uma tarefa encarada de formas diferentes. Cada cultura, um olhar. O próprio Nava deu seu pitaco no poema O defunto, de 1938. Eis um trecho: “Quando morto estiver meu corpo/evitem os inúteis disfarces,/os disfarces com que os vivos,/só por piedade consigo,/procuram apagar no Morto/o grande castigo da Morte./Não quero caixão de verniz/nem os ramalhetes distintos,/os superfinos candelabros/e as discretas decorações./Eu quero a Morte com mau gosto!”. Sem choro, nem vela, talvez mesmo sem uma fita amarela. Morreu, acabou.
Há um filme japonês que mostra outra possibilidade, da tradição oriental. Igualmente respeitável, igualmente humana. Trata-se de A partida, de 2008. Um músico erudito desempregado volta para sua cidade de origem e, para manter-se, aceita ser agente funerário. Só que de um jeito pouco usual para nossos hábitos. Para que família e amigos levassem uma última imagem, mais suave, do morto, ele fazia uma preparação minuciosa, que terminava com maquiagem sofisticada para esconder a melancolia da ausência. É um filme lindíssimo.
Podemos não perceber, mas a silhueta da Morte aparece todos os dias em pequenas doses. Ela é um processo. Pode estar de tocaia nas multidões de estressados, tristes e inconformados com a vida que levam. Pode fungar na nuca dos adolescentes e crianças que arriscam a vida nos tetos dos vagões de trens, infância e juventude despedaçadas. Também pode agitar a foice coletivamente, enlouquecida, na espiral suicida que está levando o planeta à breca.
São palavras ao vento e uma homenagem ao Mistério. Daqui a uns cem anos, sou otimista!, a Morte terá levado todos os que nos deram um pouco de presença e nada seremos além de memória inexistente. Tudo se passará como se nunca tivéssemos andado por essa bela e efêmera esfera. Enquanto isso não acontece, vamos caminhando e cantando e seguindo a canção da Vida possível.
Abraço. E coragem.