Na última sexta-feira tive a triste visão do Prof. Gonzalo Vecina Neto, eminente e reconhecido médico sanitarista, fazendo uma defesa desesperada da ANVISA, na qualidade de fundador da agência, em uma entrevista na GloboNews que basicamente versava sobre a súbita mudança da agência na política de licenciamento para uso emergencial de vacinas e sobre a pressão do Congresso para que a mesma estabeleça um prazo de 5 dias para a avaliação de pedidos de registro emergencial de qualquer vacina doravante.

De fato, concordo com o Dr. Vecina no que tange à (necessária) respeitabilidade da agência e de seu potencial técnico, além de grandes feitos em prol da saúde e segurança sanitária de nossa população. Mas nem só de glórias e flores vive a nossa ANVISA. Na última edição do meu boletim semanal “Coronavírus e Política, uma infecção cruzada” (gravada no canal Coletivo Estrela, no Youtube) fiz uma longa introdução trazendo uma pequena lista de eventos históricos onde a ANVISA deixou marcas antipáticas de um complexo burocrático desconectado da vida real dos profissionais de saúde e de seus pacientes, e portanto, não me estenderei aqui sobre o passado. Ainda assim, não custa nada manter vivos na memória os eventos onde a ANVISA interferiu de forma excesivamente voluntariosa na vida das pessoas sob pretextos “puramente técnicos”, sendo o mais clássico (e semelhante ao momento atual) o caso dos anorexígenos anfetamínicos e não anfetamínicos, por ela banidos do mercado contrariando todos os pareceres das sociedades de endocrinologia e mesmo a conduta de outras importantes agências estrangeiras. O resultado desta política foi a inclusão de uma medicação usada para o tratamento do TDAH no rol de prescrições até de serviços universitários, o que aumentou tremendamente o custo do tratamento de um grande número de pacientes e também para o estado. O fim da ópera deu-se quando o Congresso decidiu legislar sobre o caso e restabeleceu a “legalidade” dos anfetamínicos, atropelando a agência, em semelhança ao que agora ocorre em relação às vacinas.

É certo que a ANIVSA é um órgão de fundamento técnico e que assim deve proceder. Entretanto, ela é executora de uma política, que é a política de regulação sanitária. Com este status, ela deve ser como a mulher de César, a quem não basta ser honesta, deve parecer honesta. E perdeu boa parte de sua credibilidade ao ser desavergonhadamente aparelhada pelo indigno presidente da República, que plantou na presidência da agência um amigo pessoal de alta patente (o Contra-Almirante Antônio Barra Torres) sem nenhum passado técnico que o capacitasse ao cargo e fortemente alinhado ideologicamente ao chefe do executivo.

No atual contexto de uma pandemia grave como a de COVID-19, é óbvio que medidas urgentes se impõem, entre elas o projeto, testagem e aplicação das vacinas, e desde o trimestre inicial de 2020 apontava-se que em algum momento ainda deste ano haveria a demanda regulatória para o uso emergencial. No final do último trimestre de 2020 surgiu a demanda do registro emergencial das vacinas. Qual foi a resposta da ANVISA? Simplesmente nenhuma. Não havia protocolo de aprovação emergencial na agência, o que teve que ser formulado às pressas e que causou atraso na liberação da Coronavac e da Oxford-AstraZêneca. Em outras palavras, a agência parece ter dormido de março a novembro e não foi capaz de antecipar-se à mais que óbvia demanda escandalosamente visível no horizonte.

Para piorar tudo no que tange à sua imagem enquanto protetora da saúde e da segurança sanitária da população, a agência quedou-se silente em relação ao ilegal exercício da profissão médica por parte do presidente da República, que literalmente prescreveu tratamentos inexistentes para COVID-19 a todos os brasileiros. Ora, aquela agência que me obriga como médico a ter cinco tipos de formulários para prescrever medicamentos aceitos pela ciência e referendados em todo o mundo, que notabilizou-se por uma série de interdições corretas, nada faz para coibir o uso incorreto e arriscado de medicações sob protocolo do Ministério da Saúde formulados goela abaixo pelo chefe do executivo. Esta omissão certamente será registrada como o mais trágico evento da história da ANVISA. E foi criminosa.

Se fosse apenas pelos dois eventos acima, a agência já estaria em uma grande enrascada.

Longe de mim querer criticar a defesa apaixonada do Prof. Vecina, e longe de mim querer a derrocada da agência. A questão é que os fatos mostram que a agência, enquanto resultante da soma de suas partes, seu corpo técnico e funcional, não consegue transmitir uma imagem de coerência à população geral e muito menos aos que tentam heroicamente nos tempos de hoje praticar uma medicina ética e científica. Como clínico que sou, só posso observar que o conjunto de sinais e sintomas apresentados pela nossa “paciente” são compatíveis com um quadro clínico de descolamento da realidade. Sim, o corpo técnico da ANVISA deve ter responsabilidade política além de técnica. Se como médico tenho o dever ético de zelar pelo bom exercício da profissão e também pela boa imagem da medicina e da classe médica, por analogia, e com ainda mais intensidade pelo grau de autoridade que a agência tem, seu corpo funcional deve capacitar-se continuamente ao diálogo com a sociedade e manter em construção permanente um conjunto de ações e princípios que despertem na sociedade o sentimento de segurança sanitária, além da segurança em si mesma.

Ainda no campo do diagnóstico, a guerra entre Ricardo Barros, líder do governo na Câmara e Antonio Barra Torres, mostra a fratura nas hordas bolsonaristas, algo previsível quando temos no governo um bando de loucos, bem adequadamente nominados pelo ex-presidente Lula.

É digna de compaixão mesmo a situação de muitas pessoas que já dedicaram boa parte de suas vidas à agência, e com grandes realizações. Mas o episódio deixa claro que o tecnicismo e o academicismo não dão conta sozinhos de um país com as nossas características. A autonomia de uma agência como a ANVISA só pode ser garantida por um corpo funcional fortemente articulado com a sociedade e que tenha preparo e formação política para que esteja sempre em estado de alerta e consciência sobre as forças do jogo do poder. É ingenuidade imaginar que a ANVISA sobreviva tão somente de tecnicidade. O que aliás, cabe a qualquer instituição. As más consequências desse erro estão no palco.