Pra lá deste quintal/Era uma noite que não tem mais fim (Chico Buarque)
Aparecem sempre nos mesmos dias, à noite. Abrem os latões de lixo dos prédios, mexem e remexem catando o que for aproveitável. Olhando-os do alto, parecem sombras tristes, compartilhando a ruína comum. Recolhem as sobras de nossa vida farta para aliviar a fome crônica e material reciclável para ganhar uns trocados. Certa vez, tive a impressão de que encontraram uma pequena garrafa onde se lia no rótulo “Tônico anti-indiferença: devolve o sentido de viver e alivia dores melancólicas”. Estava vazia. Irremediavelmente.
O exército de sombras é silencioso, pede, sem palavras e cabeça baixa, perdão por existir. Um dia, porém, ouvi travessuras. Fui à janela e vi crianças correndo pra lá e pra cá, soltando gritinhos de alegria improvável em meio ao lixo. Olha só, mãe, o que eu achei!, e a menininha mostrava, com orgulho de campeã olímpica, a garrafa de plástico vazia. Ali adiante, um molequinho chutava a bola imaginária, lance de gênio capaz de reverter o trauma do Maracanazo e absolver Barbosa e Bigode. Os sombrinhas davam sinais de vida. Era a infância que eclodia, triunfal, por breves momentos.
Em pouco tempo a algazarra constrangida desapareceu. Larguei a imaginar. Como se marcará na memória das crianças a vivência do lixo? Perceberão que é assim que todos as veem, descartáveis, incômodas, no máximo dignas de piedade? Como a falta de espaços abertos, campinhos de pelada, escorregas e balanços, habitará seus viveres? O Sol, definitivamente, não é para todos.
Enquanto discutimos a censura ao livro do Ziraldo, a crise no colégio Pedro II, as celulites e a estratégia empresarial da Anitta, a devastação do Pantanal e da Mata Atlântica, os crimes abomináveis praticados por bancadas religiosas, o aquecimento do mercado de iates luxuosos e as falcatruas no futebol, cresce a multidão dos abandonados à própria sorte, que só querem, mal e mal, sobreviver. Faz lembrar um velho episódio da minha série predileta de ficção científica, The Twilight Zone (Além da Imaginação). Chamava-se O homem obsoleto. Uma parte nada pequena da humanidade está se tornando obsoleta. São esses que vagam desesperados em botes precários e rotas perigosas, à espera de impossíveis acolhimentos. São os que estão empilhados em guetos urbanos, à mercê de grupos criminosos. São os clandestinos que trabalham em locais insalubres e enchem os cofres de grifes famosas. A família mais rica do Reino Unido, os Hinduja, foi acusada de exploração de mão-de-obra e tráfico humano. Bilionários, estes cidadãos de bem traziam indianos para cuidar de seus filhos e casas. Confiscavam-lhes os passaportes e impunham uma jornada de trabalho diária de 18 horas, remuneradas a US$ 8 por hora.
O Menino ouvia os adultos falarem de flagelados. Não entendia o que aquela palavra significava. Na escola, colegas disseram que eram pessoas açoitadas, miseráveis, submetidas a castigos degradantes. Muito assustador. Aos poucos, soube da verdade. Eram em sua maioria nordestinos que fugiam da seca endêmica na região. Gente que vi de passagem numa pequena estação ferroviária em Bonfim, interior da Bahia. Trouxa na cabeça, olhos vazios.
Os flagelados de hoje não andam de trem, vêm de todos os cantos e estão em todas as esquinas, são espectros sem esperança de luz. Viramos sociedades moedoras de carne, Humanidade que detesta a raça humana.
Comecei citando Chico e volto ao recém-octogenário. Diz ele num pedaço da Gota dágua: E qualquer desatenção/pode ser a gota dágua. Haverá limite para a geringonça grotesca e descompensada que identifica o mundo de hoje? Se chegar a gota d’água, para onde escorrerá tanto fel, tanta angústia, tanta ira, tanta revolta reprimida?
Abraço. E coragem.