Esta é uma crônica da perplexidade. Ou das perplexidades. Quantas vezes, com expressão assombrada, temos ouvido perguntas do tipo “como isso é possível?”, “de onde saiu essa gente?”, “mas logo ele?”, “aonde vamos parar?” ? Não tenho a menor intenção de matar as charadas, isso deve ser trabalho coletivo, com fôlego olímpico. Fiz um pequeno exercício de livre associação e apareceram paternidades (há muitas) desta sensação de desconforto, que em alguns beira o desalento.
Era novembro de 1998. Ariel Dorfman estava no Chile e passeava tranquilamente pelo centro de Santiago. Numa praça, viu um grupo de mães, irmãs e mulheres de presos desaparecidos durante a ditadura Pinochet. Portavam fotos dos assassinados e, mãos dadas, cantavam baixinho, dispostas a não esquecer o tempo sombrio e as consequências da barbárie. Reivindicavam o direito aos corpos de seus mortos.
Atrás de Ariel, uma mulher de seus 60 anos, meio descontrolada, começou a gritar: “Comunistas de merda! Mentirosos! Deveríamos ter matado todos vocês!”. O golpe sanguinário contra o governo socialista de Salvador Allende já tinha mais de 25 anos, o muro de Berlim caíra há uma década e o ódio contra a experiência democrática radical da Unidade Popular permanecia intacto no coração de madame e dos de sua classe. O pinochetismo deixara filhotes e neles a Morte substituía o confronto de ideias.
Antes de seguir adiante. Ariel Dorfman, escritor, poeta e professor universitário nos Estados Unidos, participou do governo Allende, atuando na área da cultura. Foi obrigado a exilar-se depois do golpe de 1973. Seu livro Para ler o Pato Donald, em que analisa a linguagem dos quadrinhos, foi leitura obrigatória para nosotros que lutávamos contra a milicada brasileira e seus capangas civis. Uma visão original sobre o papel da linguagem na dominação de classe.
Pinochet acreditava ser o “salvador do Chile contra o marxismo”, missão à qual atribuía caráter divino. Essa característica messiânica de ditadores estava longe de ser inédita. Na Espanha da Guerra Civil, por exemplo, o general Francisco Franco se autoatribuiu o título de “caudillo de España por la gracia de diós”. Para tanto, tinha a cumplicidade de boa parte do clero espanhol. Em 1936, no início da guerra, quase 8 mil prelados foram mortos pelo lado republicano. Era a manifestação do ódio profundo das classes populares contra o apoio secular da Igreja à monarquia parasitária e aos latifundiários (o país era maciçamente rural). Nos anos 20 do século passado, havia províncias inteiras de propriedade de uma pessoa. Franco dizia que “na Espanha, ou se é católico ou não se é nada”.
Violência extremada contra adversários políticos, promiscuidade entre Estado, política e religião. Soa familiar? Em 1999, um deputado federal medíocre deu entrevista na TV Bandeirantes defendendo não apenas tortura, mas a eliminação de 30 mil adversários numa guerra civil. Em julho de 2016, entrevistado pela rádio Jovem Pan, ejaculou: “O erro da ditadura foi torturar e não matar”. A indisposição para o debate civilizado sempre foi marca do equino que acabou nos governando.
Em 2017, num comício, o mesmo deputado não teve o menor pudor em declarar que “não tem essa historinha de Estado laico não. É Estado cristão, e quem for contra que se mude”. Já na presidência, disse várias vezes que sua eleição era parte dos planos de deus. A esposa não fez por menos, sempre em clima de prédicas religiosas travestidas de atos políticos: “E eu declaro todos os dias: Jair Messias Bolsonaro, sê forte e corajoso, não temas. Ele é um escolhido de deus”. Num grande ato religioso, um aliado anunciou o mesmo: “Esse homem é escolhido por deus”. E completou: “Jesus Cristo é o Senhor de São Paulo e do Brasil”. Parecem reproduções de cloacas da Idade Média, mas estão aqui mesmo, nas nossas esquinas, nas escolas, em atos públicos e, sobretudo, em redes sociais. Púlpitos & palanques, devoção & rigidez inegociável, vestem o modelito filofascista.
A superestrutura do fascismo, suas tripas mais visíveis, é esta. É a espuma que esconde os beneficiados por elas: as classes dominantes, que não são propriamente o falangista intoxicado ou o pastor de ovelhas desesperadas. Às vezes, tentam maquiar-se para esconder os caninos afiados. No entanto, e volto a um provérbio ídish, se o porco usa um shtreimel (chapéu de pele típico de judeus ortodoxos), isso não o torna um rabino. Por trás de aparências civilizadas escondem-se porteiros do inferno.
Abraço. E coragem.