Welcome to the jungle/It gets worse here everyday (Guns N’ Roses)
Volta e meia lembro de personagens do seriado Seinfeld, que alguns consideram o melhor de todos os tempos. Um deles, certamente ironizando a onda zen-oriental da época (anos 1990), vivia repetindo “Serenity now!”, mesmo em situações tensas, venenosas, injustas. Até que um dia … bum! Sai quebrando tudo em volta a sopapos e pontapés. Então, descobre que pode até ser um “Serenity now!” forçado, mas chega a hora do “Insanity later!”.
Difícil manter um ar blasé, uma postura de mestre iogue, na atual conjuntura. Daí que resolvi usar este espaço para descarregar a acidez acumulada pela onda planetária de estupidez e retrocesso civilizatório. Minha geração, que foi sequestrada em pleno voo por uma ditadura, lutou não apenas para derrotá-la, mas para construir uma sociedade alternativa, mais justa e fraterna. É duro admitir, mas levamos um chocolate, sete a um na veia. Esmagados em todas as frentes.
Jamais imaginei que o Brasil fosse viveiro tão portentoso de reacionários, oportunistas e mistificadores. Um esgoto que corria subterrâneo e agora dá o ar da (des)graça. Fala-se muito, e com razão, do Congresso nacional. Ele, no entanto, é espelho de vontades coletivas bem estabelecidas. Já estamos nos habituando com um falso conservadorismo que, na verdade, não passa de retorno a fumaças medievais, com forte teor religioso. O debate parlamentar é diálogo de surdos, contaminado por moral tacanha de natureza religiosa e encenações patéticas para o mundo virtual. Na feliz expressão de um professor da UFBA, os bagunceiros do fundo da sala chegaram na primeira fila.
As baixarias, adornadas por verborragia ultrajante, produzem cenas de mundo cão. O governador de São Paulo declarou, num evento evangélico, que seu estado pertence a Jesus Cristo. Interessante que ninguém viu a escritura com registro em cartório. O mesmo bolsonarista sancionou a lei que institui escolas cívico-militares em São Paulo. Alega que os alunos vão “desenvolver o civismo” e “cantar o Hino Nacional”. Caramba, já não tivemos doses elevadas de caserna na vida nacional? Os celerados querem ordem unida, continência e obediência fanática. Pesadelo.
A lista de aberrações é extensa. Privatização de praias (com enorme prejuízo ambiental) e da gestão de escolas públicas, criminalização da posse de pequenas quantidades de drogas, divulgação maciça da “cura gay”, isenções tributárias para templos de todas as denominações. Tudo isso é café pequeno perto do projeto que transforma em assassina a mulher que aborta, depois de 22 semanas de gravidez, o filho de um estuprador.
Um mínimo de informação torna este projeto uma bestialidade sádica. No Brasil, quase dois terços das vítimas de estupro têm, no máximo, 13 anos. Muitas só descobrem tardiamente a gravidez e, quando descobrem, são muitas vezes desencorajadas a abortar por médicos que desonram a profissão. Outro dado abominável, muito conhecido: 60% das crianças abusadas o são por seus próprios familiares.
O que acontece em nosso país é a ascensão da extrema-direita, que parece mais e mais ganhar musculatura. Sente-se à vontade com a absoluta falta de reação articulada, orgânica, da sociedade. O governo atual não pode levar a culpa por tudo, mas claramente está acuado, sem ação, frente à ofensiva obscurantista. De recuo em recuo vai-se ao tombo.
A lembrança do Guns N’ Roses aí em cima veio pela minha irmã, morta recentemente. Morava nos Estados Unidos e, quando nos visitava aí pelos anos 90, chegava no Galeão, abria um sorriso sacana e dizia: Welcome to the jungle! Eu ficava uma arara! Como ousava falar assim da minha cidade, do espírito de luta que derrotou uma ditadura, das perspectivas que, àquela época, pareciam promissoras? A gente mudava rapidamente de assunto. Se acontecesse hoje, minha revolta, confesso com tristeza, não seria tão grande. Continuo ativo e olho com alguma esperança para a frente. Há momentos, entretanto, em que a vontade é chutar o balde, esquecer a racionalidade e mandar a choldra reacionária, seus filhotes e apoiadores, trocar umas ideias com o Sete-Pele. Sem ar condicionado e mastigando brasa viva. Melhor ainda, como numa velha praga em ídish: que todos vão ao banheiro a cada três minutos ou a cada três meses.
Abraço. E muita coragem.