Há três espécies de mentiras: mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas (Disraeli)
Dias atrás Lula anunciou, empolgado: o FMI prevê que o Brasil está próximo de se tornar o 8º maior PIB do planeta. Compreendo a animação. Isso parece ser boa notícia e políticos se nutrem delas para permanecer no topo da cadeia alimentar. Meu Fradim de estimação, no entanto, fez uma associação com épocas azedas e não deu boa coisa. Vamos lá.
Aloysio Biondi, jornalista de economia obcecado por dados e rigor analítico, colaborou com a imprensa alternativa no período da ditadura empresarial-militar. Escrevia regularmente para o semanário Opinião, severamente perseguido pela censura. Com ele aprendi o beabá das manhas estatísticas. Renda per capita, por exemplo. Biondi era didático. Suponha que existam 2 frangos assados e 2 pessoas famintas. Na aparência, um frango per capita. Proteína garantida. Na realidade, é possível que uma das pessoas, poderosa e sem escrúpulos, coma os dois frangos, matando de fome o outro fulano. Nas tabelas oficiais, tudo paz e amor, bicho.
No período do “milagre econômico” (1969/73), o PIB brasileiro cresceu a taxas elevadas (perto de 10% anuais), abastecido por gordos empréstimos externos, e a inflação oficial estava baixa. Ganharam todos? Faz-me rir. Num raro momento de sincericídeo, o ditador Garrastazu Médici disse que “a economia vai bem, o povo vai mal”. Estava confirmada a pensata do Millôr Fernandes: “As estatísticas provam: as estatísticas não provam nada”.
Como está o Brasil real, fora da euforia lulista? Os 10% mais ricos concentram 51% da renda total do país. Os 50% mais pobres ficam com 14% dos ganhos. No quesito Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) ficamos em 89º lugar entre 193 países. Atrás de Uruguai, Argentina, Chile, Irã, México, Equador, Peru e Cuba, entre outros. O reacionarismo de base religiosa está em alta, as correntes protofascistas movimentam-se com desenvoltura, o fisiologismo é cláusula pétrea no parlamento. O resumo da ópera é o seguinte: o crescimento do que se produz no país não o torna mais justo nem tolerante. Há desequilíbrios obscenos, e o companheiro ex-metalúrgico deveria ter a honestidade política de moderar o entusiasmo e denunciar, dia sim, outro também, as enormes mazelas que nos tornam um animal disforme. Mais do que isso: deveria discutir com o povo as causas estruturais de tanta e tamanha distorção. Luta de classes, no entanto, está fora do radar do ex-sindicalista. Sua abordagem sempre foi a da administração do capital. Tudo fica na superfície de algarismos, conchavos, arranjos, quebra-galhos. “Ninguém quer abrir mão de privilégio”, disse um dos seus ministros. Jogo de poder. Poder aparente.
Quem não se lembra do Bernie Sanders? Um hippie extemporâneo, voz menos convencional dentro do Partido Democrata dos EUA (do qual acabou desligando-se). Deu entrevista à Folha de S. Paulo e foi certeiro nos números. “Três pessoas no topo possuem mais riqueza do que a metade de baixo da sociedade americana. Globalmente, você está vendo o 1% superior possuir mais riqueza do que os 95% inferiores e essa disparidade está se ampliando cada vez mais. Não é apenas injusto: as pessoas no topo com toda essa riqueza têm um enorme poder político”.
Bernie e seus pares constatam os sintomas da doença, mas suas terapias partem do princípio de que as causas são e serão permanentes. No máximo, podem ser atenuadas. Penso diferente. Os modos de produção de bens materiais e simbólicos que garantiram a sobrevivência do homem até aqui são produto do próprio homem. Podem, portanto, ser alterados pela ação do homem. Todas as tentativas de reformar, “humanizar” e maquiar o modo capitalista de produção fracassaram. Seus princípios levaram à exploração brutal da trabalho humano, ao descaso com o meio ambiente, à proliferação de doutrinas supremacistas, ao belicismo crônico. A História, madame caprichosa e enigmática, pode se encantar por um pós-capitalismo. Ao som de Cazuza: “Mas se você achar que eu tô derrotado/Saiba que ainda estão rolando os dados/Porque o tempo, o tempo não para”.
Abraço. E coragem.