Centro e trinta e seis anos da abolição da escravatura no Brasil. Na escola dos meus primórdios, a professorinha falava de uma bela cerimônia palaciana, onde a princesa magnânima encerrava séculos de exploração brutal de escravos africanos. Uma canetada, e pronto.

Cada vez que penso nisso, lembro de uma passagem uruguaia. Tive o privilégio de estar em Montevidéu quando a ditadura desabou, em 1985. A cidade era uma festa só. Bandeiras de todos os tipos, choros de alegria, buzinaços, vontades libertadas, sonhos reanimados, abraços desabortados. O Palácio Legislativo foi afogado num mar de faixas e bandeiras. A avenida 18 de Julio flutuava em nuvens de afeto e esperança.

Em meio à euforia, passei por um muro grafitado. Um grupo anarquista mandou ver: “Pero qué mierda festejan?”. Para aquela turma, o fim da ditadura não era motivo de grande celebração. Os problemas estruturais do país permaneciam intactos, a burguesia continuaria explorando o trabalho assalariado, e por aí vai. Socialismo? Nem pensar. Achei aquilo meio exótico, afinal de contas, tal como no meu país, não era pouco sair de um regime que exilou, prendeu, torturou e matou a granel. Passado un ratito, acho que compreendi. Era a afobação de recuperar o tempo maltratado pelas baionetas, fundida com a percepção de que o principal estava por fazer. Depois do porre, a ressaca.

Que destino tiveram os negros libertados formalmente em 1888? Sem formação escolar, profissão, moradia, foram jogados na barriga da miséria nas cidades e descobriram-se andrajosos no campo. O que havia para comemorar era a extinção dos castigos físicos e dos grilhões. No mais, o horizonte era o pior possível. Castigos e grilhões seriam de outra natureza. A República, proclamada um ano depois, provou-se um projeto segregador, promovendo um projeto de branqueamento que se estendeu por décadas.

Cresci num tempo em que mesmo as famílias de classe média baixa tinham empregadas domésticas. Moças, em geral negras, que vinham das periferias urbanas ou do interior rural. Trabalhavam sem limite de horário, dormiam no trabalho, neca de direitos trabalhistas, salários ao sabor dos patrões. Convivi com várias ao longo da infância e delas guardo imagens tristes, de submissão e resignação, “deus quer assim”. A distância social era intransponível. Para mascarar a situação injusta, dizia-se que as empregadas eram tratadas “como se fossem da família”. Na realidade, prevalecia o “ponha-se no seu lugar”. Naquela etapa da vida, os descendentes dos escravos eram para mim figuras remotas, quase sobrenaturais, confinadas em bairros distantes, malvestidas, coadjuvantes do mundo branco dominante.

Hoje, mais de metade (55,5%) da população brasileira é composta por negros e pardos. Entre os pobres e miseráveis, negros e pardos representam 75% do total. O racismo se manifesta de muitas formas, embora 76% dos brasileiros digam que ele não existe no Brasil. “Como posso ser racista? Até já namorei um negro” é clichê conhecido, noves fora irmão de sangue do “negro de alma branca”. É uma forma de negação, de escravidão mental.

Certamente serão os discriminados que desenharão as melhores formas de luta contra o preconceito. Há exemplos históricos que mostram alianças políticas com brancos neste caminho. Joe Slovo, judeu lituano residente na África do Sul, foi proeminente lutador contra o apartheid e companheiro querido de Nelson Mandela. Muitos judeus norte-americanos engajaram-se na luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, oferecendo-lhes ajuda jurídica e manifestando-se nas ruas. Agregar setores sociais não-negros aos movimentos antirracistas, evitando o sectarismo, tem sido uma relevante estratégia política. Longo será o caminho até uma verdadeira liberdade.

Espero que meus amigos negros não se ofendam com minhas observações/sugestões. Sobretudo que não me processem no tribunal do “lugar de fala”. Semana passada, opinei sobre movimentos feministas e fui bombardeado por … não ser mulher. Acho este reducionismo empobrecedor, flertando com a censura. Opinar, observar, analisar, não implicam em exigir, coagir, decidir. Diálogo sempre se faz com os diferentes.

Abraço. E coragem.