(ESCLARECIMENTO: Esta crônica foi escrita na sexta-feira, 3 de maio, um dia antes da apresentação da Madonna em Copacabana)

Numa foto antiga, provavelmente anos 1950, Danuza Leão caminha tranquila pela calçada do Leme. É uma imagem simples, mas algo chama imediatamente a atenção. Não há nada entre a calçada e o mar, exceto um esporádico banhista. A praia não era vista como “oportunidade de negócio”. O máximo de comércio que se achava na orla, que vai até o final de Copacabana, eram os carrinhos amarelos da Kibon.

Dou um salto de algumas décadas. A ocupação da areia e do calçadão ganhou proporção selvagem. Quiosques privados formam uma parede, bloqueando parte da vista para o mar. Som amplificado virou rotina, enviando ondas “musicais” assassinas para moradores das redondezas. Há cada vez mais academias particulares a céu aberto na areia, que também é alugada para todo tipo de evento privado. Urge atualizar a letra de Copacabana, música composta por Braguinha e Alberto Ribeiro. Ela deixa de ser a Princesinha do Mar e transforma-se em CEO of the sea.

Em determinados momentos, o bairro convulsiona. Constroem-se palcos babilônicos na areia, artistas assim ou assado atraem público enorme e moradores ficam confinados por segurança. Ruas, calçadas e areias recebem sobrecargas de imundícies durante os “concertos”. Foi assim, por exemplo, quando uma certa Chlaudya Leitttte apresentou-se por estas bandas. O inferno nas ruas internas avançou madrugada adentro.

Semana passada, uma senhora sessentona desembarcou em jato privado no aeroporto do Galeão. Sua comitiva mereceu das autoridades fluminenses tratamento de imperatriz da Abissínia. Os carros foram escoltados por batedores até o hotel, onde pequenos grupos de fieis aguardavam a cantora- celebridade. Gritinhos, choros represados, cenas patéticas de “mamãe, olha eu aqui!”. O transe contaminou repórteres deslumbrados, que fizeram cobertura medíocre dos acontecimentos.

Enorme trecho da areia de Copacabana foi interditado para a construção de um palco onde a cantora vai se apresentar em playback. Isso mesmo, a voz dela sairá de gravadores. Não haverá músicos tocando ao vivo. A enorme, descomunal, máquina de propaganda na mídia faz o espetáculo ganhar uma duvidosa dimensão cósmica. Com patrocínio parcial de dinheiro público (R$ 20 milhões). Não perguntaram se estou de acordo com esta aplicação do meu dinheiro.

Nas minhas caminhadas diárias, cruzo com os preparativos.  O frisson nas redondezas lembra Caramuru. Aquele que enganou índios com um tiro, levando-os à idolatria. Na frente do palco, destaca-se o curral VIP, onde se alojarão os ricaços que patrocinam o furdunço. A cantora permanece trancada no hotel, não dá as caras para os adoradores. Faz parte do roteiro de excitação.

Nos tempos em que assistia clipes na MTV, nunca fui chegado à Madonna. Preferia, por exemplo, o Nirvana, cujo Smells like teen spirit inspirou uma sátira hilária do Weird Al Yankovic. Até hoje, meus netos riem a bandeiras despregadas quando a assistem. Ah, contesta a seita madônnica, ela veio de baixo, é uma guerreira, foi pioneira na luta por direitos de minorias. Bem, estou falando de música, não de comportamento.

Madonna já se definiu como “piriguete”. Em bom português, predadora sexual. Talvez classifique isso de vanguarda de libertação feminina. Data vênia, discrepo. Houve vanguardas femininas muito mais consistentes ao longo da História. A chamada geração de 68, por exemplo, comandou a revolução do amor livre, livrando-se, com muita luta, das amarras conservadoras que predominavam. Sem playback. Nas ruas, escolas e lares. Quanto a ter tido vida difícil, não é mérito em si e não devia chamar atenção especial no Brasil, país de contrastes sociais obscenos.

Sábado, dia do show, ficarei recluso. Não saio de casa nem que a vaca tussa ou o boi assovie. Fico a pensar se não virei um chato ranzinza. A verdade é que meus heróis não morreram de overdose ou faniquitos em cadeia. Minhas referências musicais passam longe dessa que vai bloquear o bairro onde moro por muitas horas e mobilizar um aparato público a que não temos acesso na rotina carioca. Aprendi a ser cuidadoso com venerações, a desconfiar de histerias e a valorizar silêncios gestantes. Devo estar ultrapassado, mas assumo isso sem playback ou luzes artificiais.

Abraço. E coragem.