A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores (Karl Marx)
Acabo de ler uma seleção de crônicas inéditas em livro escritas pelo Vinicius de Moraes. Vão dos anos 1940 até 1970 (quando escreveu para O Pasquim). Muitas surpresas no calhamaço de 400 páginas. Uma delas foi a paixão política do poeta, derramada em muitos textos. A gente imagina o Vinicius bebericando seu whisky num bar em Ipanema, maltratando o fígado (órgão que ele homenageou numa crônica hilária) e arremessando olhares sugestivos para o mulherio ao redor. O Moraes foi muito além disso.
Durante algum tempo, Vinicius manteve a coluna Crônica da Cidade na revista Diretrizes. A publicação, lançada em pleno Estado Novo por Samuel Wainer e Azevedo Amaral, teve muitos colaboradores ilustres, como Rubem Braga, Álvaro Moreyra, Jorge Amado e Graciliano Ramos. No dia 5 de julho de 1945, saiu a crônica A grande convenção. É uma das várias em que Vinicius demonstra profunda admiração por Luiz Carlos Prestes e seu papel político no tempo que se seguiu ao final da Segunda Guerra Mundial.
A que convenção Vinicius faz referência? Estava em curso a organização, em nível nacional, de centros e comitês populares para discutirem as reivindicações mais sentidas da população. A ideia da convenção que integraria os grupos regionais foi verbalizada por Prestes no comício do PCB realizado no estádio do Vasco da Gama, em 23 de maio de 1945. A pauta era extensa: ia da luta contra o fascismo à melhoria de abastecimento, transportes e educação. Vinicius previa que aquela seria “mais uma vitória das massas politizadas contra as forças da reação, mais um marco plantado no caminho da redemocratização do Brasil”. Quem o visualizasse no Villarino, frequentador assíduo da casa ao lado do Antônio Maria, do Rubem Braga e do Tom Jobim, falando das massas, logo associaria com um farto espaguete à bolonhesa ou uma lasanha carregada no molho branco. Outros tempos, outras massas.
O entusiasmo do poeta/diplomata/cronista fazia sentido. Dava gosto de ver a mobilização intensa de gente desabituada a debater como a política interfere no cotidiano. A imagem do político entrincheirado numa galáxia distante era hegemônica na sociedade. Outro aspecto era o encontro da esquerda com sua essência existencial: a organização de oprimidos, humilhados e ofendidos na luta contra as raízes da desigualdade e a exploração de classe. Prestes e seu partido eram, naquele momento histórico, a melhor representação deste impulso.
Estamos hoje muito longe daquela movimentação. Houve, durante a ditadura civil-militar, a multiplicação de formas de resistência. Das entrelinhas dos textos à luta armada, da agenda parlamentar à crítica pelo humor, da solidariedade internacionalista à reconstrução sindical, não deixamos os milicos e seus lambe-botas em paz. Foi um período difícil, mas rico em criatividade. Brotaram no Rio, por exemplo, associações de moradores, que, sonhávamos, poderiam ser embriões de formas mais avançadas de organização e luta. Não chegaram a tanto.
Participei da AMAL, uma das associações de moradores na zona sul. Em Laranjeiras, chegamos a nos reunir na rua, embaixo de postes de luz, cada um trazendo sua cadeira. Discutia-se de tudo, o importante era recriar o hábito da conversa e da busca por formas diferentes de fazer política, sem os reducionismos tão comuns nos dias que correm. Conseguimos barrar o projeto da chamada Via Paralela, que transformaria o bairro num mero lugar de passagem.
O ímpeto organizacional murchou lentamente após 1985. Aqui não é o espaço para debater em profundidade as causas disso. Quero, no entanto, destacar um aspecto. Parte significativa da esquerda renunciou ao papel de organizar o povo, de representar interesses de classe, de integrar lutas isoladas num projeto comum de conquista de poder. Resumiu-se ao uso do espaço parlamentar, que tem os limites comuns a todas as democracias burguesas. Desviou a atenção das causas profundas das enormes desigualdades no Brasil para o campo, certamente importante mas secundário, do identitarismo. Neste cenário, a direita nada de braçada. Pode perder eleições, pouco importa. Seu projeto estratégico, de hegemonia do capital, permanecerá intacto. Sabe que, com a esquerda conformista no tabuleiro, tudo que terá pela frente são sonhos. Como disse lá atrás o Milton Nascimento: Sonho feito de brisa/vento vem terminar.
Abraço. E coragem.
Jacques