Naquela esquina, o corre-corre de sempre. Muitos olhos abduzidos por celulares, gente em luta inútil contra o relógio e a solidão, driblando buracos, ilusões, camelôs e ruídos. All the lonely people/Where do they all come from?/All the lonely people/Where do they all belong? Um ou outro mendigo desfila agonia em busca de restos.
E de repente… Atrás de uma teia negra de fios em postes percebo letras. Tantas vezes por ali e jamais as havia visto. Cegueira de cidade grande. Chego perto. Na parede ao lado de uma velha janela de madeira, num sobrado que já conheceu dias melhores, a frase: Reservada para pichador amador. Fiquei encantado, com uma pontinha de curiosidade. Que convite era aquele? Alguém cansado das pichações “profissionais” que emporcalham a cidade, dando vez à turma criativa? Ou seria a transgressão do entendimento comum da palavra amador, o não-profissional? Uma sugestão aos enamorados, ou amadores, para colorirem seus afetos em paredes mortas.
No auge da pandemia de Covid-19, ingênuos acreditavam que o mundo sairia diferente da calamidade. Não era possível, diziam, que, depois de tanta dor e sofrimento tamanho, saíssemos iguais ao que éramos. Estamos a ver que estavam redonda e quadradamente enganados. Apesar da velocidade de expansão do Universo estar desacelerando, continuamos acelerados, cada vez mais dependentes de telas e geringonças eletrônicas, olhando gentes e coisas em planos horizontais. As cidades entregues a interesses corporativos, agredindo espaços de memória que constroem identidades. Não se consegue notar uma calçada livre sem que os “empreendedores” planejem entupi-la com bagulhos lucrativos. Silêncio é desperdício, sacrilégio. Os incomodados que se mudem e, pelo andar da carruagem, chegará o tempo em que os incomodados não terão mais para onde se mudar. A não ser que aceitem colonizar a Lua, transportados por bólidos construídos pelo Elon Musk.
É libertador, nesse contexto, ver uma ideia original, como a que vi na tal esquina. Se conhecesse seu autor, proporia estendê-la. Vamos colocar tabuletas em jardins abandonados e praças maltratadas, dizendo-os abertos a jardineiros em flor? Que tal jogar garrafas ao mar com mensagens poéticas, antecipando a surpresa e o prazer de quem as encontrar? Em pleno delírio, que não seria tremens, semearíamos coretos pelos cimentos tristes e ali ressuscitaríamos Noel, Vadico, Chiquinha, Jacob, Donga, Nazareth, Alfaiate, em acordes do balacobaco.
Tudo bem, confesso que estou soltando a franga hippie que existiu em mim. Paz e amor em meio a guerras, rancores e estupidez da cobiça suicida. Às vezes, este tipo de sonho é essencial para manter a sanidade em meio aos destroços da humanidade em marcha batida para o precipício.
Dia desses, revi Yellow Submarine, produzido em 1968. No desenho animado (ainda se chama assim?), os Beatles propunham uma revolução pela música. Na idílica Pepperland, onde tudo é harmonioso, surgem os Meanies, os bad guys, que transformam o lugar em gelo e cor única. É pela música que são derrotados, numa grande apoteose psicodélica animada por All together now. Em cena típica daquele ano, John, Paul, Ringo e George caminham, enquanto sua sombra é pintada com arcos-íris mutantes. O sonho ainda estava vivo. E ativo.
Racionalmente, não creio que apenas a música vai salvar o planeta. Talvez um cabeludo chapado em 1968 acreditasse em utopia sonora. No entanto, não consigo imaginar uma sociedade revolucionada sem música e poesia. Nestes terrenos a alma humana tem enorme grau de liberdade. Ela, convém lembrar, é sempre radical e transformadora.
Ao meu parceiro imaginário, sugiro um nome para nossos sonhos. Seria o Projeto Xenohyla Truncata. Essa coisa esquisita é o nome científico de uma pererequinha (do tamanho de um botão de rosa), espécie endêmica da Mata Atlântica do Rio de Janeiro. É vegetariana (só come frutas e pétalas de flores) e único caso de anfíbio polinizador do mundo. Ao sugar néctar, o pólen anexo gruda em suas costas úmidas. Quando pula, de flor em flor, espalha o pólen e fecunda novas vidas vegetais. Salve ela! E salvemo-nos todos, polinizando de belezas as cidades brutas!
Abraço. E coragem.
Jacques