A casa tinha o hálito e o figurino dos anos 50. Ao seu redor, cactos misturavam espinhos com tímidas flores vermelhas, num contraste belo. Corvos, tordos e, suspeito, um solitário pica-pau, quebravam o silêncio, presença que desapareceu faz tempo na cidade grande. Tudo aquilo compunha um quadro que acalmava minh’alma ferida.
Antes da porta de entrada, três mulheres sentadas em cadeiras vintage tiravam objetos estranhos de um alforje diáfano, como se de nuvem fosse tecido. Usavam crachás e tinham expressão de back in business. Cloto, Láquesis e Átropos, esses eram seus nomes. Pareciam vir lá dos cafundós-do-judas, esquina do grotão onde Judas perdeu as botas. Não tinham pressa, mas sentia-se que estavam satisfeitas. Farejavam peixe na sua rede funesta.
Entro na sala, aflito pela sombra das Parcas. O clima geral, no entanto, espanta as mensageiras do escuro e me transporta para um tempo de delicadeza. Todos ali reunidos sabiam que, no quarto ao lado, alguém muito querido estava de partida. Serena, consciente de uma vida intensa, consolada pelos quase devotos que a cercavam. Nossas lágrimas não seriam de melancolia, mas de celebração da vida. E com humor, por que não? Mário Quintana, o poeta alegretense que sorria, escreveu sobre a Morte: Minha morte nasceu quando eu nasci./Despertou, balbuciou, cresceu comigo…/E dançamos de roda ao luar amigo/Na pequenina rua em que vivi.
Alguém levanta o tema da eutanásia. Momento de revolta geral. Sua proibição em muitos lugares é uma estupidez de fundo religioso, que só faz aumentar o sofrimento de quem renuncia, livremente, a uma vida vegetativa, sem sentido, sem esperança. Cada um de nós deveria ter o direito elementar de convocar a Indesejada das Gentes. Sem dar satisfação aos carimbadores de documentos e aos fantasmas que se fazem de importantes.
Em cima de uma mesa de centro, vejo duas caixas verticais de madeira, finamente talhadas. Na tampa, o selo made in Vietnam. Ali seriam depositadas as cinzas Dela. Ironia da História. Durante décadas, os militares daquele país mataram, despejaram dor e desespero, oprimiram, torturaram, desfiguraram, milhões de vietnamitas. Deixaram atrás de si corpos mutilados e terra devastada. Ao final, os agressores voltaram para casa com o rabo entre as pernas. Hoje, o corajoso povo asiático manufatura as pequenas urnas funerárias de cremados em solo ianque.
Um dos amigos mais próximos Dela avisa que as Parcas estavam recolhendo as ferramentas de trabalho. Tarefa concluída. As filhas de Têmis comentavam, sem qualquer constrangimento ou emoção: “Ora vejam só, os mortais se acham. Não passam de frágil e irrelevante acidente cósmico. Vamos atualizar a contabilidade na secretaria do Olimpo”.
Aproximamo-nos do quarto. Cada um de nós encontra um jeito de despedir-se Dela. Abraços, carinho nos cabelos, toque nas mãos. Humanos sentimentos. A partir daquele momento, minha irmã entraria na vida dos que estiveram ao seu lado como um punhado de memórias. Fecho os olhos. Lembra, irmã, quando viajamos de carro até Montevidéu e, toda manhã, quando retomávamos a estrada, ouvíamos o Genesis tocar Eleventh Earl of Mar, o Phil Collins repetindo até dizer chega Daddy, you promised? E aquela garrafa de uísque, scotch legítimo, que um namorado teu trouxe dos Estados Unidos e eu quebrei sem querer? A gargalhada que você deu mostrou que o fulano já estava com o bilhete azul. A porta de saída era serventia da casa, e sem uísque. E aquela outra…
Enquanto as Parcas partem para o extermínio de cada dia, percebo um movimento incomum na porta dos fundos. Vou até lá. Minerva, que de boba não tem nada, e Apolo, chegado a um som, acompanhados por Harpo, Groucho e Chico Marx, ensaiavam uma dancinha desengonçada, assobiando With a little help from my friends. Sem protocolo, comme il faut. Felicia na veia. As Parcas não tiveram a última palavra.
You did good, kiddo!
Abraço. E coragem.