Lula podia ter criticado o primeiro-ministro israelense e a coalizão religiosa de extrema-direita que o mantém no poder sem, para tanto, ofender e ferir o povo judeu e, para além, toda a humanidade. Afinal, Bibi e seu governo são mais que criticáveis, pelo pouco apego à democracia, pela corrupção, por ter negligenciado a segurança do país, por privilegiar os interesses pessoais, pelo extremismo e enfim, mais importante, pelos crimes de guerra que vem cometendo. Mas não, o presidente brasileiro preferiu, de maneira consciente ou não, se atacar ao símbolo máximo do mal absoluto, o Holocausto. Acabou, como só podia ser, ferindo gravemente a memória universal. Machucou cruelmente os judeus, claro, porém não apenas, ultrajou todas as vítimas do nazismo, seus sobreviventes e herdeiros, ou seja você, eu, muitos de nós. Netanyahu foi o menos atingido pelas palavras ferinas; os judeus do mundo inteiro, os principais ofendidos. Lula não deve desculpas ao primeiro-ministro de Israel, mas sim a nós.
Talvez ele não tenha se dado conta da crueldade de suas palavras, imaginando que tudo não passava de uma “simples” crítica à morte deplorável de milhares de mulheres e crianças, em Gaza. Errou, e feio. Propositadamente ou não, atiçou o fantasma do antissemitismo, imediatamente abraçado pela esquerda radical, que não hesita em responsabilizar os judeus pelos horrores da guerra. Para chamar a atenção sobre a tragédia, Lula comparou o incomparável e para deixar bem claro o seu alvo, apelou para Hitler. Recorreu, como lembrou a jornalista Lygia Maria na Folha de S. Paulo, para a lei de Godwin, que postula: ” À medida que uma discussão online se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tende a 100%”.
“Findados os argumentos senasatos para provar determinado ponto, acaba-se descambando em Hitler ou no Holocausto…Lula foi parar na lei de Godwin sem escalas. Poderia ter se saído bem com argumentos legítimos, como comparar aos crimes de guerra perpetrados pela Rússia na Ucrânia…Mas nesse caso não agradaria à militância de esquerda.”
Único porém, o episódio Lula se deu no mundo real, não no virtual.
Ao invés de tentar trazer o presidente brasileiro de volta à razão, seu entorno aplaudiu, conclamando que não havia nenhum motivo a pedidos de retratação, de desculpas e nem sequer de explicação. Celso Amorim, Gleisi Hofman, Janja, entre outros, vieram a público para defender o “mito”. Sim, porque Luis Inácio Lula da Silva virou mito, e, como tal, tem sempre razão, é infalível.
Dá pra’ entender, pois a esquerda brasileira hoje depende dele para sobreviver. O resultado da eleição presidencial mostrou claramente que ele era o único capaz de derrotar o nazifascista Bolsonaro, graças aos votos dos conservadores, que se a democracia não estivesse em risco jamais teriam apertado na tecla 13.
Como escreveu o filósofo Vladimir Safatle (de esquerda) em seu novo livro “Alfabeto das Colisões”, a esquerda morreu, a extrema-direita é a única força política real no país. A vitória de Lula foi só um respiro, enquanto a extrema-direita continua forte, e mascara a dificuldade de propor soluções para os desafios atuais.
Pobres daqueles que ousaram reclamar uma retratação. Lula nem sequer respondeu, limitando-se a dizer que os críticos não leram a sua entrevista na Etiópia. Ou seja, que a alusão ao holocausto foi tirada do contexto (argumento sempre presente na boca de políticos quando pressionados). Paralelamente, o dono da política externa brasileira, Celso Amorim, autor do prefácio do livro “Engajando o mundo: a construção da política externa do Hamas”, declarou, em alto e bom som, que aqueles que querem um pedido de desculpas podem esperar sentados: – O improviso de Lula em Adis Abeba, disse Amorim, não foi um lapso nem merece reparação, pois representa a política externa do país.
Em outras palavras, não foi um deslize ou algo não ou mal pensado. Ao contrário, trata-se da posição oficial do Brasil.
Na apresentação da edição brasileira do livro, lançada pela editora Memo em 2023, assinada pelo diplomata, lê-se : “O Hamas pode desempenhar um papel central na restauração dos direitos palestinos.” Estamos longe portanto da afirmação de que o Hamas é um grupo terrorista. Ao contrário, o principal conselheiro de Lula exalta o Hamas.
É verdade que a maneira como o governo israelense tratou o assunto não foi adequada. Ao chamar o embaixador brasileiro para explicações, devia ter seguido as regras diplomáticas, que exigem discreção, e não ter dado um show humilhante. No entanto, uma coisa não justifica a outra.
A postura de Amorim talvez não seja tão absurda como parece à primeira vista. Tem sua lógica. Explico: É sabido que os 8,5 milhões de quilômetros quadrados do país não são suficientes para Lula, que sonha em se tornar uma liderança global, uma espécie de consciência universal, como foi Nelson Mandela. Muito se falou, no Brasil, da possibilidade de Lula vir a ser secretário-geral da ONU, enquanto outros apresentaram seu nome para o Nobel da Paz.
Seus dois primeiros mandatos foram marcados internacionalmente pela pela criação dos BRICS, pela onipresença do Brasil na América Latina e pela necessária reforma do Conselho de Segurança. No mesmo movimento, o terceiro começou com a inclusão de outros cinco países no grupo, dentre os quais o Irã.
O presidente sabe que suas chances são aquém de mínimas, mas isso não significa que ele desistiu do reconhecimento global. Só mudou a estratégia. Megalomania é uma das características da personalidade de todos os políticos, ainda mais daqueles que querem alcançar o cargo máximo da Nação. Lula não é exceção, busca os holofotes, dentro e fora do Brasil.
Em importância geopolítica, o mandatário brasileiro não tem como pesar tanto quanto seus pares da China, Índia ou Rússia, resta-lhe portanto por um lado se juntar a estes, de outro – e simultaneamente – cimentar o Sul Global, com vistas a formar uma grande coalizão anti-ocidental, que representaria no médio prazo os mesmos 40% do PIB mundial do G7 . O papel de Lula seria o de atrair os países do sul para a constituição deste polo, que pretende mudar as relações internacionais e, assim sendo, o mundo. As viagens de fevereiro de 2024 ao Egito, aproximando-se da Liga Árabe, e à Adis Abeba, para discursar na abertura da conferência da União Africana, tiveram este objetivo. O Brasil tem uma situação privilegiada, podendo servir de ponte entre as grandes potências não ocidentais e o Sul Global.
Neste contexto internacional, a “defesa da democracia”, tão presente na campanha de Lula para vencer a extrema-direita bolsonarista, tem valor zero. A coalizão está aberta a todos os países, que respeitem ou não os direitos humanos, o Estado de Direito, à única condição que se oponham ao ocidente, representado pelos Estados Unidos, Europa e, no Oriente Médio, Israel. É uma estratégia que se resume em uma frase: – Os inimigos dos meus inimigos são meus amigos.
Lula, Xi Jinping, Putin, Narandra Modi, estão juntos na perspectiva do Novo Mundo. No caso do brasileiro, os interesses geopolíticos explicariam os ataques nojentos aos judeus, da mesma forma como ficou claro porque Lula se negou a comentar a responsabilidade de Putin no assassinato de Alexei Navalny e os crimes cometidos pelos russos na Ucrânia, ou ainda se opôs a criticar os ataques ditatoriais de Nicolas Maduro.
Para fechar este texto, cito novamente Lygia Maria:
“Ao cair na lei de Godwin, Lula incita polarização política (vide o número de bandeiras de Israel na manifestação bolsonarista do dia 25/2), antissemitismo e, de lambuja, ainda envergonha o Brasil.”
Por tudo isso, em nome do respeito pela memória, o presidente brasileiro tem a obrigação de se retratar, mesmo que seja tarde demais.