Deixamos de entreter e viramos entretenimento (Mariliz Pereira Jorge)
Durante muitos anos, deixei de ir ao Maracanã. Desde que um arrastão perto das arquibancadas quase me levou para o Valhalla, anos 90, decidi não arriscar. Maraca, adeus! Ficaria com as memórias intensas de aspirantes e profissionais, de Torneios Início e clássicos sanguíneos, dos três D (Dida, Doval e Dominguez).
Eis que sou convocado, em 2022, para voltar ao velho estádio. Velho, mas com plástica de “arena”. Um horror. O jogo não era atraente. Resolvi olhar o que acontecia ao redor. A torcida estava mais preocupada em tirar selfies ou filmar pedaços do jogo. Crianças não largavam as telinhas com luz azulada. Jogadores, bola, travessões, Sua Senhoria, o soprador de apito, tudo não passava de cenário desimportante, de pretexto para exibição de puerilidades. Jaime de Carvalho, Tarzan e Dulce Rosalina não se criariam naquele piquenique narcisista. Multidão sem vida.
Pensando bem, o que vi no gigante plastificado não é diferente da rotina em salas de concerto. Não faz muito, fui à Sala Cecília Meireles assistir o duo Scofano e Minetti. Bandoneon argentino e piano uruguaio, delicadeza e sofisticação numa formação incomum. Ao lado, uns tipinhos abobados, dedinhos frenéticos, não paravam de consultar celulares. À frente, uns sujeitos filmavam, espalhando a horrenda luz azulada, apesar dos apelos iniciais para que não fizessem aquilo. A beleza fluindo logo ali e gente em outras galáxias, renunciando a viver o momento. Tal como no Maracanã, o principal virava acessório, o sublime derretia em mãos insensíveis, buscando lembranças “instagramáveis”.
Fica impossível não comparar com os antigos álbuns de fotografias. A tecnologia das máquinas fotográficas não permitia exageros. O resultado é que os registros ficavam mais seletivos. Não havia a avalanche de fotos iguais, repetitivas, nada memoráveis, numa aflição que condena o resultado a um rápido esquecimento.
Nas festinhas movidas a LPs do Ray Conniff, do Renato e seus Blue Caps e dos Românticos de Cuba, ninguém se preocupava em clicar o brotinho ao lado. O importante era o jogo da sedução e os proibidos leite de onça e Cuba Libre. Registros? Bastavam a memória e as intenções à meia luz. Pode ser impressão, rendição ao saudosismo, sei lá, mas a inundação de sons e imagens parece reter a vida em camadas superficiais, descartáveis. O essencial fica pra depois. E o depois está muito além do horizonte.
A neurocientista Suzana Herculano-Houzel chamou a atenção para as consequências da geração vertiginosa de novas tecnologias sobre nossas vidas. Geramos tantos dados, alerta ela, que não temos mais tempo para transformá-los em conhecimento. Não sobra tempo para fazer perguntas. Criam-se necessidades duvidosas, que nos mantêm ocupados e hiperexcitados à espera do “novo” que não para de chegar. O capital tem pressa em se reproduzir. Filas de espera por celulares vitaminados, jogos eletrônicos cada vez mais realistas (e inúteis), aparelhos com tantos comandos que exigem doutorado para não causar curto-circuito. Toda essa abundância, da qual está marginalizada a maior parte do planeta, traz mais felicidade?
Experimente limitar o acesso de crianças e adolescentes às telas. Guerra civil à vista! As novas gerações têm cada vez menos contato com a natureza. Estudos recentes indicam que isso prejudica o desenvolvimento físico e psicológico da molecada. Segundo a Unicef, está comprovado que crianças com contato regular com áreas verdes têm, por exemplo, níveis menores de hormônios do estresse e pressão arterial mais baixa.
Sou testemunha de outra era. Fui criado numa vila de casas vizinha a uma pedreira e dois matagais (o “matão” e o “matinho”). Aprendi a gostar do cheiro morno da terra molhada em dias de chuva. Subi em mangueira, andei descalço na grama, cacei grilos, criei colônias de formigas em vidros, acompanhei a jornada desengonçada de centopeias, joguei pedras em lagartixas, cortei-me com capim navalha, aprendi a ser prudente com marimbondos, recolhi ovos de uma galinha que ciscava sem saber que viraria caldo, cavei buracos que não chegaram ao Japão mas suficientes para o bola ou búlica. Experiências que, involuntária e sutilmente, me ensinaram a olhar com respeito o que não era cimento, pedra e asfalto. Sem Google. Sem telas.
Abraço. E coragem.