E de repente… Uma barulheira dos diabos aqui perto me lembra que é hora de olhar a folhinha. Uma turma aos urros, alimentada por hectolitros de álcool, antecipa o final de ano e comemora, sei lá, o mal que já passou e a beleza que sonham pela frente. É o que dizem alziras e bartiras. Horas depois, um vapor etílico azulado envolvia o bar. Minha porção Fradim faz uma força danada para não jogar um fósforo aceso e … bum! Imagino o desfile dos bebuns e suas babas bovinas.

Curioso, parece que só nestas datas simbólicas as pessoas percebem a passagem do tempo. A rigor, o dia 1 de janeiro não tem nada de diferente do 31 de dezembro. Ambos são convenções, escolhas arbitrárias, que não mudam a velocidade de translação da Lua, a má vontade da florista da esquina ou a goiabeira da Damares. No entanto, é um tal de preparação de rituais, uma busca de sinais e garantias de que o tempo perderá peso e o futuro será, claro, melhor. Pode ser a cor da calcinha, a semente de uma fruta vermelha, um chá milagroso, um alimento camarada, uma frase enigmática, tudo conspira a favor das crendices de final de ano.

Tudo bem, cada um usa o método que lhe convém para acalmar a consciência da finitude, do que é incerto e incontrolável. A tentação de encontrar fórmulas prontas e universais para baixar a ansiedade é muito grande. Daí a popularidade dos videntes, quiromantes, tarólogos e influenciadores espirituais, cada vez mais assanhados e adornados com coberturas vistosas e pretensamente sérias. Quando os vejo, suspeito que ainda vivemos nas cavernas, amedrontados pelos relâmpagos que cortavam os céus na escuridão dos tempos. Sem entender patavinas, nossos ancestrais atribuíam aquela maravilha natural a forças sobrenaturais, e lhes rendiam tributo.

Já mencionei várias vezes uma dessas ilusionistas, que escreve regularmente num grande jornal. Leio seus textos como divertimento. Desopila o fígado. Acontece que, nessa fase do ano, ela capricha nas bulas salvacionistas. Sugere contatos com constelações (!), anjos, arcanjos, espíritos, como se nossa presença neste planeta ensandecido fosse influenciada por trupes invisíveis e estrelas remotas. Pior que acho que ela tem muitos leitores reverentes. Para mim, é como oferecer sarapatel para um vegano. Faço cara feia, mas é diversão garantida.

Vejam vocês. Um belo dia na era Cretácea, bagatela de 66 milhões de anos atrás, uma enorme pedra com nove quilômetros de extensão entrou em rota de colisão com a Terra. O choque brutal, sem direito a tortillas, guacamoles e mariachis, aconteceu na península de Yucatán, no México. O impacto abriu uma cratera de 16 quilômetros de profundidade por 160 de largura. O resultado foi devastador para o planeta. Nuvens de poluentes escureceram os céus durante anos, plantas sumiram e, com elas, os herbívoros que as tinham como alimento e os carnívoros que se alimentavam deles.

Houve extinção em massa de seres vivos, dinossauros entre eles. Uns poucos mamíferos conseguiram sobreviver e iniciaram um longo processo evolutivo. Como dizem os cientistas, se a rota do pedregulho tivesse se desviado um milésimo de grau, ele teria se perdido no espaço, sem tocar a Terra. O resultado provável é que os tiranossauros e seus aparentados, espécies dominantes, continuariam até hoje no topo da cadeia alimentar. O Homo sapiens não sentaria nem no banco de reservas da Natureza e eu não estaria aqui dedilhando relações ariscas.

Se chegamos até aqui, foi fruto de uma tempestade perfeita de acasos. A vida é um enorme e finito depósito de surpresas. Dominamos muito pouco o que está por acontecer. Esta falta de previsibilidade traz insegurança e garante o sustento de muito pilantra que vende falsas profecias. Não adianta apelar para forças etéreas. Somos nós, com todos os defeitos, ilusões e limitações siameses da natureza humana, os construtores de sentidos e caminhos para a vida. Comer lentilha é nutritivo, guardar sementes de romã é simpático, mas isso não faz a menor diferença na engenharia existencial.

Abraço. E coragem.