Dezembro era mês difícil para o Menino. A quase coincidência entre Hanucá e Natal incomodava. Os Outros amanheciam pedalando Monarks novas, chutando bolas Pelé, reforçando os escretes de botões com galalites novas e abrindo sacos alentados de bolas de gude. Papai Noel dava o que era possível na Vila remediada. O Menino olhava, invejava, abaixava a cabeça e se conformava. Era o Diferente, que merecia, no máximo, um pião, dreidl, de Hanucá. Pequeno consolo eram as comidas típicas da chamada Festa das Luzes. A avó, querido Pássaro de Makow-Mazowiecki, preparava porções fartas de latkes, espécie de patanisca de batata, e sufganiot, sonhos recheados de creme ou doce de leite.

A família original não celebrava Hanucá. Na escola, de orientação conservadora, reforçavam o lado “milagroso” da história. Para quem não conhece, breve relato. Houve uma época em que a Judeia era dominada pelo império grego. Um milico, general de maus bofes, Antíoco IV, tornou-se figura destacada no império por volta do ano 175 antes da Era Comum. Como forma de reforçar a dominação imperial, resolveu desfigurar a identidade religiosa e cultural dos judeus. Em 167 antes da Era Comum, transformou o Templo de Jerusalém em local de culto a Zeus e sua patota de divindades. Exigiu, sob pena de morte, que os judeus deixassem de seguir a Torá e aderissem a cultos politeístas.

Camadas privilegiadas de judeus helenizantes aceitaram as restrições e ajudaram os ocupantes a reprimir quem resistia. Colaboracionistas existem em todo canto e tempo. No entanto, o caldeirão começou a ferver. O patriarca dos Hashmonaítas, Matatias, liderou uma revolta, hoje chamaríamos de guerra de guerrilhas, junto com seus cinco filhos. Embora em condições muito difíceis, o movimento ganhou corpo e, depois da morte do patriarca, em 165, seu filho Judah conduziu a revolta até a vitória final.

Reconquistada Jerusalém, era preciso limpar e rededicar o Templo, grosseiramente profanado pelos gregos. Este trabalho, que incluiu a recuperação do altar dos sacrifícios, levou oito dias. Os macabeus, como passaram a ser chamados os guerrilheiros, decidiram registrar a vitória com uma celebração anual que duraria os mesmos oito dias necessários à rededicação. O evento é a certidão de nascimento da Festa da Rededicação (Hanucá).

Cerca de seis séculos depois destes acontecimentos, religiosos descobriram uma forma, cá pra nós bem oportunista, de se apropriar simbolicamente da vitória dos macabeus. Inventaram o “milagre” de Hanucá. Segundo a lenda, uma lâmpada com óleo suficiente para apenas 24 horas de combustão durou os oito dias necessários à rededicação do Templo.

A versão “milagrosa” foi a mais lembrada até que, no século XIX, grupos de judeus russos e poloneses, identificados com correntes de esquerda e empenhados na autodefesa contra pogroms e ondas antissemitas, recuperaram o caráter libertário do exemplo dos macabeus. É este caráter que me interessa, pois atualiza um evento acontecido há cerca de 22 séculos. Não se trata, portanto, de reproduzir mecanicamente uma tradição, mas entendê-la na e com a História.

O direito à autodeterminação está na origem da guerrilha macabeia. Valeu então e segue em vigor. Ao longo da História, hordas de conquistadores submeteram, manu militari, povos inteiros. Entre as táticas de dominação, sempre ampliadas e aperfeiçoadas, estão apagar a memória comum dos dominados, prender, torturar e matar lideranças populares, usar a violência física e psicológica para domesticar potenciais rebeldes, desumanizar os dominados. Povos oprimidos por forças ocupantes têm o direito de se levantar contra quem os oprime. É a lição primordial de Matatias, Judah e seus guerrilheiros.

Estamos no período de Hanucá. Não acenderei velas de parafina. Estas deixo aos homenageiam o sobrenatural. Prefiro repassar a saga macabeia, a ensinar que é o Homem, e apenas ele, que constrói a História. Com as condições objetivas e subjetivas que lhe são dadas para viver.

Abraço. E coragem.