Valia mais do que revólver de espoleta, estrela de xerife e lenço do Cavaleiro Negro. Só os mais abonados tinham espingarda de ar comprimido. Com os chumbinhos, era possível atingir alvos reais, longe do controle dos adultos. Lagartixas eram vítimas preferenciais. O sangue frio dos lagartos lhes dava velocidade e alguma proteção na pedreira. Inútil, porém, para escapar da pontaria certeira dos amigos do Menino. Acionado o gatilho e, tum!, voava o rabo do bicho, ceifado para glória da tribo (e horror retroativo dos verdes).
A amputação cobrava um preço. Não chegava a ser a maldição da múmia, habitante karloffiana dos poeiras tijucanos. Corria a lenda de que, sem o rabo, a lagartixa se vingava xingando a mãe do algoz. Daí, sabe como é espírito corporativo, cabia o golpe de misericórdia. O atirador terminava o servicinho sujo esmagando o bicho e desfalcando a fauna da Vila.
Lagartixa ofendendo gente… Bobagem? Bem, não sei se já repararam na quantidade de superstições que nos cercam. Até a partida final, assisti os jogos da Copa de 1970 na casa de um vizinho. Quem viu há de lembrar os bailes memoráveis do escrete formado pelo Saldanha e entregue de bandeja ao Zagalo. Ocorre que fui convidado para ver a decisão contra a Itália no apartamento de um amigo, no prédio onde morou Carlos Lacerda, em Copacabana. Em 1954, foi ali em frente que o Corvo sofreu um atentado. Arquitetura interessante, amigo do peito, TV moderna, convite irrecusável. Houve pânico na casa do vizinho. Não pode quebrar a escrita! Assistir o jogo em outro lugar vai dar zebra, o Brasil perderá! Resisti, não sem antes, confesso, espantar três gotas de suor aflito. Como se sabe, a seleção deu uma coça na Squadra Azzurra. Pelé, Gerson, Tostão e os demais bailarinos nem tomaram conhecimento da minha traição.
Futebol é terreno fértil para todo tipo de mandinga, crendice, praga. Há um vasto folclore a respeito. Desde a maldição do sapo do Arubinha, na década de 30, até São Judas Tadeu, padroeiro do Flamengo, passando pelos trabalhos do massagista Pai Santana, campeiam as superstições. Eu não gostava de ver o Flamengo usando a chamada camisa número 2, fundo branco com faixa rubro-negra horizontal na altura do peito. Achava que o time ficava lento(!) e, claro, dava azar. Paulo Machado de Carvalho, chefe da delegação brasileira nas copas de 1958 e 1962, radicalizou no pacto com o Além. No Chile, vestiu a mesma roupa que usara na Suécia, providenciou os mesmos avião e comandante de 1958 para levar a delegação ao Chile. Os mais crédulos atribuirão a isso a conquista do bicampeonato. Prefiro culpar o Garrincha, que, ele sim, incorporou os santos dos craques de todos os tempos e demoliu defesas, botinadas e a ausência do Pelé.
Fora do futebol, a impressão é de que não saímos das cavernas, quando nossos ancestrais atribuíam a deuses os fenômenos naturais que não compreendiam. Goethe disse que “superstição é a poesia da vida”. Certo, mas poesia tem hora, né? Será mesmo que falar o nome de alguém de maus bofes atrai mau agouro? E usar o pé direito quando adentra o gramado dá um upgrade em qualquer perna de pau? Se a lagartixa não tem poder para xingar a mãe, por que o espelho quebrado conseguiria jogar maldição por 7 anos? Um abraço energético (sic) transformaria o Íbis Sport Club, pior time do mundo, em celeiro de craques? Haja rima.
Como sempre, os espertos capitalizam a insegurança e o medo. Uma certa senhora ganha a vida nas páginas de importante jornal distribuindo crendices. Garante, por exemplo, que, se você plantar alecrim, atrairá prosperidade e alegria. Caso prefira arruda, afastará ilusões e protegerá a casa. Salsinha? Barrará olho gordo(sic). Coentro? Estimulará compaixão. Impressionante a atualidade do empresário circense P. T. Barnum. A ele atribui-se a frase “nasce um otário a cada minuto”.
Andei pensando. Os enormes avanços da ciência, da capacidade humana de inventar, criar beleza (não percam o documentário Elis & Tom), duvidar, explicar, convivem com a crença de que gato preto dá azar, bater na madeira afasta o dito cujo e comer romã e vestir roupa branca no dia 31 de dezembro garantem um ano novo feliz. Contradições que não se resolverão. Seremos sempre, como espécie, uma combinação esquizofrênica de avanço e retrocesso. Pelo sim, pelo não, passo longe dos despachos nas esquinas e não topo fazer piquenique em cemitério à meia-noite.
Abraço. E coragem.