Confio no taco do Álvaro Costa e Silva, o Marechal. Ele costuma acertar no alvo. Na crônica da semana passada, exumou uma figura que não me traz qualquer saudade ou lembrança significativa. É Nelson Ned, o cantor anão que nadou de braçada entre as décadas de 60 e 80 e acaba de ser biografado. Antes de “aceitar Jesus” (esta é a linguagem dos convertidos) e mudar o repertório para pregações, cantava bolerões regados a muito violino e histórias repetitivas de amores plácidos e dores de corno. Minha praia era outra. Fui boleiro, lateral-esquerdo descalço e atrevido, nunca tolerei bolero. Minto. Os boleros eram perfeitos para o tum-e-tum das aulas de dança de salão, vã tentativa de destravar a cintura bessarabiana, dura por natureza. Não houve Trio Los Panchos ou Besame mucho que desse jeito.

Enquanto Ned soltava o vozeirão e preparava o desembarque nas louvações, eu descobria o imprevisível no jazz. Aquele mundo de improvisos, de vozes impossíveis e solos provocantes, foi um encantamento que dura até hoje. Como é que se poderia comparar Nelson Ned com Billie Holiday, Altemar Dutra com Ella Fitzgerald, Agnaldo Timóteo com Bessie Smith? Galáxias paralelas.

Pequeno breque. Na trupe bolerizada habitava um personagem exótico. Era Orlando Dias, famoso homem de um só sucesso. Cantava, com aflição calculada, “Tenho ciúme de tudo”. No final, arrancava a camisa ou o paletó e lascava o “Tenho ciúme até da roupa que tuuuuuu veste”. Se deixassem, jogava-se no chão em desespero encenado para a arquibancada. Era a forma primitiva, quase ingênua, de chamar a atenção. Hoje, os clipes simulam todo tipo de bizarrice para esconder a mediocridade de canções e cantores.

Voltando ao ambiente do tum-e-tum. A televisão, antes dos programas da antiga Record, tinha pouco espaço para música. Com charme em preto e branco, Almoço com as estrelas trazia celebridades para, depois de um rango (cenográfico?), darem uma canja. Nos intervalos, a tecnologia começava a dar as caras. Não é linho, é Linholene, avisava o reclame. As elegantes toalhas de tecido passavam o bastão para o plástico. No programa Um instante, maestro!, o apresentador Flávio Cavalcanti, com caras e bocas ensaiadas (tudo nele era fingido, artificial) e delicadeza equina, quebrava discos que não lhe agradavam. Disputava com o Chacrinha a atração mais esdrúxula para ganhar audiência. Ficou famosa a rasteira que Abelardo Barbosa aplicou no Flávio, sequestrando o Seu Sete da Lira e fazendo-o receber uma entidade em pleno auditório. Sob chuva de bacalhaus, pepinos e abacaxis. Alto nível, pois não?

Enquanto boleros e sambas-canção dominavam a cena musical e a bossa nova dava os primeiros passos na classe média carioca, o Rio radicalizava um processo que começara nas primeiras décadas do século XX: a metamorfose urbana em cidade-empresa. Bom exemplo foi o desmonte do Morro do Castelo. Sob o pretexto de melhorar a circulação de ar na região central da cidade e eliminar focos de doença, o governo iniciou, em 1921, a expulsão da população que morava no morro e partiu para desmontá-lo a jatos d’água do mar. O resultado foi o êxodo de gente pobre, maioria de negros, para a periferia da cidade, a valorização do terreno aplainado após o desmonte (especulação imobiliária é história antiga) e a corrupção de sempre na execução das obras. No fundo, o que se queria era deslocar a pobreza para fora do centro. Os pobres continuariam a existir. Agora, no entanto, menos visíveis.

Nos anos 60, enquanto o barquinho ia, a tardinha caía e tudo passava, a Favela da Praia do Pinto pegava fogo. Incêndio suspeito. Numa madrugada de maio de 1969, cerca de mil barracos da favela horizontal, localizada na região da Lagoa Rodrigo de Freitas, foram destruídos pelas chamas, deixando 9 mil pessoas desabrigadas. Os moradores foram deslocados para a Cidade de Deus, quase 35 quilômetros de distância da lagoa. No lugar da favela, em terreno altamente valorizado, construíram-se um condomínio e um shopping. Os pobres tiveram o mesmo destino da população do Morro do Castelo. Não se eliminava a pobreza, mas os pobres deixavam de atrapalhar a vista dos abonados.

Qual seria a trilha sonora mais adequada à atual conjuntura? Os vozeirões embolerados estão, felizmente, aposentados. A nostalgia do Adoniran Barbosa, saudosa maloca, e o olhar romântico do Cartola para a alvorada no morro comeram poeira. Talvez o Manuel Bandeira tenha dado um bom palpite premonitório no poema Pneumotórax. Depois de receber uma notícia ruim do médico, o sujeito pergunta o que se pode fazer. A única coisa, responde o doutor, é tocar um tango argentino. Ao bandoneon, compañeros!

Abraço. E coragem.