Estava na Travessa procurando a menina quebrada. Ao lado, flanando entre livros, uma figura que antigamente chamávamos de caniço ambulante. Era o Joaquim Ferreira dos Santos, cronista das segundas-feiras no jornal, membro vitalício na galeria das minhas inspirações.
Daí, não teve jeito. Vesti a roupa das macacas de auditório (desculpem a linguagem radiofônica) e parti para o tête-à-tête. Meu ídolo é simpático, gosta de prosear. Falei-lhe das crônicas semanais, comentei a última, deslizei para a biografia do Zózimo Barroso do Amaral. Abria um sorriso a cada referência, não deve ser habitual tratarem-no como estrela pop. Suas matérias-primas são palavras e causos, nunca precisou expor celulites ou medir diâmetros de coxas. Não lhe pedi autógrafo, a intimidade improvisada não precisava de registro gráfico.
No final, deu-me um furo de reportagem. A próxima crônica seria sobre um personagem importante no cenário musical carioca. Newton Alvarenga Duarte ficou mais conhecido como Big Boy. Tinha um programa na rádio Mundial, lá pelo final dos anos 60. Seu bordão inaugural, reverberado pela minha geração, era “Hello, crazy people!”. Divulgou ritmos que o Joaquim classificou como “a catedral do Rio negro e suburbano”. A crônica anunciaria que a discoteca do Big Boy, 20 mil títulos, está à venda.
Eis aí um tema que ferve qualquer caldo. O mundo treme, o meio-ambiente grita, as gentes vivem tortas de tanta crise, e vem um sujeito falar de um DJ remoto, de música da periferia? Como ousa? Onde a solidariedade com o sofrimento e a incerteza, bradam os pacóvios da agenda única, do realismo a ferro e fogo. Não há arte possível, literatura que preste, sem referência à dor, asseguram do alto de suas certezas petrificadas. As chamadas redes sociais multiplicam o sectarismo. As mesmas redes que Umberto Eco afirmou terem dado “direito à palavra a legiões de imbecis que, antes, só falavam nos bares, após um copo de vinho, e não causavam nenhum mal para a coletividade”.
Em 1968, ditadura comendo solta, Chico e Tom foram vaiados quando Sabiá, linda metáfora para o exílio, venceu o III Festival Internacional da Canção. O público do Maracanãzinho exigia a militância explícita do Vandré no Pra não dizer que não falei de flores. A poesia naqueles tempos sombrios era considerada “alienação”. Prevalecesse o olhar gelado, Chico e Tom seriam “cancelados”. Como as patrulhas quase fizeram quando Tom, em 1986, licenciou trechos das Águas de Março para um anúncio da Coca-Cola. “Amigos” e o mundo desabaram sobre sua cabeça. “Traidor”, “lacaio do imperialismo”, por aí vai. É nisso que dá mumificar o pensamento. O deus da carnificina está sempre de plantão.
Afinal de contas, por que escrevo? A quê ou a quem devo prestar contas? Perguntas que todos os que lidamos com palavras fazemos e, sinceramente, não conseguimos responder de forma definitiva. Procurar palavras que traduzam os sentimentos mais escondidos, os pensamentos menos reveláveis, é um permanente exercício da incerteza. Ou visitar aquilo que Clarice Lispector chamou de delicado abismo da desordem. Vulgo inconsciente. Minha melhor resposta, provisória, é que escrevo porque, se não o fizesse, não conseguiria viver. É através da escrita que melhor consigo me relacionar com as pessoas e o meu tempo. Não há patrão para esta busca. Ou melhor, o dono do pedaço sou eu mesmo, com todas as minhas circunstâncias, meus fósseis e meus fantasmas de estimação.
Em fevereiro de 1903, Rainer Maria Rilke iniciou uma correspondência com o jovem poeta Franz Kappus, que hesitava em seguir carreira literária. Rilke sugeriu nas cartas ao candidato às letras que procurasse “entrar em si mesmo” e perguntasse “a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: sou mesmo forçado a escrever?”. São fragmentos daquela alma inquieta que me acompanham há cerca de 12 anos, quando iniciei a jornada que desembarca, passo a passo, às segundas-feiras. E la nave va.
Abraço. E coragem.