Pegamos o telefone que o menino fez com duas caixas de papelão e pedimos uma ligação com a infância (Millôr Fernandes)
Estava na sala de espera do curso de inglês, aguardando a neta. À minha frente, sentou-se um menino que me chamou a atenção. Tipo muito franzino, cabelo escorrido e comprido, segurava nas mãos uma pequena tela iluminada. Não desgrudava dela por nada. Passavam pessoas, batiam na porta, o menino seguia engolido pelos raios de luz azulada.
Mais do que tudo, era de se ver a postura dele. Peito inclinado para a frente, quase encostado nas pernas, braços rígidos, dedos inquietos. Parecia hipnotizado. Sem saber, eu estava tendo uma aula prática do vício em jogos eletrônicos, praga altamente contagiosa que arruína infâncias, adolescências e maturidades desnorteadas. Muito encontrada em vagões do metrô, onde quase ninguém aguenta ficar alguns minutos em contato consigo mesmo. A luz azulada, droga que entorpece solidões, domina o ambiente.
Leio que, nos Estados Unidos, 41 estados e o Distrito de Columbia (Washington) estão processando a Meta, controladora do Facebook, Instagram, WhatsApp e Messenger. A alegação é de que a empresa usou, deliberadamente, ferramentas virtuais que fazem as crianças acessarem compulsivamente as redes sociais. É um assunto controverso, mas há dados cada vez mais sólidos que mostram que o uso excessivo das redes interfere no desempenho escolar, no sono e outros aspectos de uma vida saudável. Elas agem sobre zonas neuronais que geram impulsos de difícil controle, especialmente em jovens.
Sei que vivemos uma época de transição acelerada para um mundo habitado por realidades paralelas. A constatação física dissolvendo-se em novas convenções, novas referências. Fase insegura em que, regra geral, tendemos a nos proteger, a nos apegar ao que já se conhece. O medo ao desconhecido é trava poderosa. Mesmo assim, arrisco-me a algumas observações à beira do não-se-sabe-o-quê.
Quando a Volkswagen encomendou uma propaganda que simulava um dueto entre Elis Regina e sua filha Maria Rita, vi gente sinceramente comovida. Como se as imagens refletissem a vitória sobre a Morte. O programa de computador que desenhou os movimentos da Pimentinha realizava o desejo impossível de juntá-la com a filha. Pode parecer inocente, singela concessão à saudade, mas não acho que seja só isso. Éramos testemunhas da extinção do ver para crer. Estamos vendo apenas o que a imaginação quer ver. Com usos que já se insinuam, por exemplo e com efeitos devastadores, na política. A vida transformando-se num imenso efeito especial. Deslumbrante e falso.
Um forte esquema publicitário anuncia a “volta dos Beatles”. Descobriu-se uma fita demo do John Lennon, gravada em 1977. Com recursos técnicos sofisticados, especialistas em informática acrescentaram, em estúdio, baixo e piano do Paul, trechos de solos de guitarra do Harrison (gravados em 1995) e a bateria do Ringo. Nasceu a balada “Now and then”, como se o Fab Four ainda se apresentasse nos Cavern Clubs da vida. Mais uma vez, tenta-se driblar a dor da Morte, da inaceitável ausência definitiva. É uma farsa, claro. As músicas dos Beatles não são apenas sequências de notas. Como fenômeno de massa, elas refletiram uma época e é assim que sempre estarão na memória de quem acompanhou a banda. Não adianta, galera: em abril de 1970, os Beatles deixaram de existir e não há ilusionismo tecnológico que os traga de volta. Now and then fará algum ruído, renderá milhões, mas não tem como competir com A day in the life, Hey bulldog e Lady Madonna. The real thing.
Volto ao menino na sala de espera. Não tenho ilusão de que ele vá se interessar por bolas de gude, cabra cega, amarelinha, cantigas de roda, pipas, pular carniça, carrinhos de bilha, pera, uva ou maçã. Lamento apenas que ele não tenha oportunidade de estar ao ar livre, conhecendo melhor os de sua geração, falando e ficando em silêncio ao vivo. Renunciar ao Sol trará consequências, e não falo de vitamina D. Quando crescer, terá muita dificuldade para ter um dedo de prosa com alguém. Prosa não saberá o que é, dedo servirá apenas para apertar botões.
Abraço. E coragem.