Navegar por memórias antigas é como andar no fog de Baker Street à luz de um velho candeeiro. A gente vê vultos, silhuetas, sem ter muita certeza do que temos pela frente. Ou por trás, já que de passado se trata.

Numa dessas caminhadas opacas, esbarrei no Claudio Correa e Castro. Estava vestido a caráter como no dia em que estreou a peça Galileu Galilei, do Brecht, encenada pelo teatro Oficina em 1968. Fazia os gestos enfáticos do italiano, no enfrentamento da ignorância e do dogmatismo de seu tempo. Desafiou os poderosos com as armas da ciência. Subverteu a falsa teoria de que a Terra era o centro do universo. Duvidou, pecado grave para batinas e coroas. Sob ameaça de tortura e morte, foi forçado a renunciar às suas convicções.

Há uma cena na peça que jamais esqueci. Com um pequeno telescópio na mão, Galileu convida um prelado (ou seria monarca?) a olhar o céu através das lentes. Argumentando que a hipótese do Sol ser o centro do sistema planetário era uma heresia, o poderoso se nega a fazê-lo. Prefere o dogma, confortável, embora falso.

Galileu é a antítese dos nossos tempos acelerados e volúveis. Como bem disse o Zeca Baleiro, ninguém tem mais tempo pra nada. Ele defendia o vá e veja, observe e conclua, debata e conheça. Hoje, qualquer um se sente autorizado a emitir opinião, por exemplo, sobre um livro mesmo sem tê-lo lido. É dessa forma que se criam tribunais virtuais instantâneos sem fundamento real, sem o indispensável conhecimento do que se está avaliando. Creio que isso está acontecendo com o livro Que bobagem!, da dupla Natalia Pasternak, microbiologista, e Carlos Orsi, jornalista.

Antes da chuva de conclusões apressadas, que fique bem claro: não li o livro, não acho honesto julgá-lo. É exatamente por isso que me assusto quando percebo que tantos não-leitores como eu estejam deitando cátedra sobre a obra. Mais ainda. Acendem-se as fogueiras da Inquisição, como se os autores fossem apenas oportunistas que, através da blasfêmia, estivessem tirando proveito de calculadas provocações.

Não conheço Carlos Orsi, mas meus neurônios ainda vibram com a doutora Pasternak. Ela foi, junto com a pneumologista Margareth Dalcolmo e o oncologista Drauzio Varella, entre outros honrados médicos, uma voz poderosa contra o negacionismo e a favor da ciência durante a pandemia de Covid-19. Sua presença foi fundamental para manter nossas sanidade e esperança no auge da praga. Com postura densa e corajosa, ajudou a salvar vidas. Não se trata, portanto, de uma charlatã. Devagar com o andor, distintos jurados! Criticá-la, se for o caso, é legítimo e enriquecedor, mas através de argumentos e postura respeitosa. É preciso retomar o hábito saudável de debater em bom nível.

Quando ouvi falar de Anitta pela primeira vez, fiz cara de paisagem. Pesquisei, ouvi algumas de suas músicas, assisti alguns clipes, vi (envergonhado e atônito) a apresentação dela antes da final da Libertadores da América de 2022, em Montevidéu. Formei opinião, sem me deixar influenciar pela eficiência empresarial da moça e suas posições políticas. Como arte, é lamentável. Mistura de soft-porn com efeitos especiais, excesso de carne e gordura, caras e bocas bem ensaiadas. Vende como pão quente. Segui meu receituário. Fui, vi, ouvi, opinei.

Voltando ao livro de Pasternak & Orsi. Um bom exemplo de comentário elegante e propositivo foi escrito pela psicóloga Vera Iaconelli, colunista semanal da Folha. Sem duelar com os autores, menciona abordagens diferentes sobre um tema polêmico do livro (psicanálise e ciência). Cita fontes bibliográficas relevantes e, nas entrelinhas, sugere que o debate deve continuar. Vejo o espectro sorridente do Galileu depois do ponto final.

Não se vai derrotar a extrema-direita apenas com um governo reformista vulnerável ou a boa vontade antifascista. É preciso fecundar a estrada, cultivando desde já valores que contrastam com a truculência e a ignorância dos galinhas verdes. Reaprender a dialogar, e diálogo se faz reconhecendo e respeitando as diferenças, é um desses valores.

Abraço. E coragem.