Duas almas, ai de mim!, habitam meu peito (Göethe)

Prepare-se, você vai ser o promotor. A tarefa não parecia difícil. No júri simulado da escola eu teria que arrumar argumentos para condenar o físico Robert Oppenheimer, um dos cérebros por trás das bombas atômicas que haviam dizimado Hiroshima e Nagasaki. Parecia estar no papo.

No dia do julgamento, sala de aula lotada, o colega que advogaria pela inocência do físico veio muito bem municiado. Não lembro do seu arrazoado, devia ter base na “neutralidade da ciência”. O fato é que impressionou o professor e a turma. Apesar disso, ganhei a causa. Certamente não por meu desempenho, mas pelas imagens aterradoras das vítimas dos bombardeios nucleares. Não havia, na nossa lógica ginasiana, possibilidade de absolver um personagem que abriu as portas do inferno para a Humanidade. O horror nuclear que, no Baghavad-Gita, texto sagrado hindu, poderia ser definido na passagem “Agora eu sou a Morte, a destruidora de mundos”.

O professor acatou a vontade da maioria. Vox populi. No entanto, sabiamente, considerou que seria meu colega o mais talentoso numa eventual carreira jurídica. Tão certo na sua ponderação que, poucos anos depois, eu estava envolvido com sulfetos, isótopos e bicos de Bunsen, não com sursis, habeas corpus e meritíssimos.

Oppenheimer retorna agora, protagonista de um filme magnífico, dirigido por Christopher Nolan. Um filme que, ao contrário do padrão hollywoodiano, não pretende fechar questões, mas abri-las. Quem for ao cinema esperando respostas categóricas, vai sair frustrado. Temos o hábito de criar rótulos, reduzir a complexidade do humano a meia dúzia, se tanto, de características, e encaixá-lo em conclusões definitivas. Dá conforto, mas é falso. Expandindo a linda poesia do Mario Benedetti, do amor para a sociedade, “somos mucho más que dos”. Somos muito mais do que preto e branco. E Nolan condensou isso, com sensibilidade e espírito aberto, nas muitas facetas de Oppenheimer.

Impossível comentar todas as questões que o filme apresenta. Vou concentrar-me em duas. A primeira volta à velha sala de aula na Tijuca. Até onde vai a culpa de Oppenheimer pela destruição das duas cidades japonesas? Em termos objetivos, ele coordenou a equipe de cientistas que desenvolveu Little Boy e Fat Man, apelidos dos artefatos nucleares. Impossível saber suas motivações exatas ao se envolver no projeto em Los Alamos, claramente militarista. Tenho minhas suspeitas. Ele não era um armamentista fanático. Ao contrário. Tinha formação humanista, simpatia por causas progressistas. Antifascista, gostaria de colaborar para a derrota do Eixo na guerra. Isso não significa que apoiava calcinar populações indefesas, sem objetivos militares contundentes. Pensou, e o filme mostra isso, que a arma assustadora que estava criando serviria como dissuasão para que a guerra terminasse mais rápido. Uma dissuasão demonstrável para observadores internacionais, em ambiente controlado. Foi engolido pelos militares e políticos, que tinham lógicas e objetivos diferentes.

Há outro elemento, menos explícito, que pode ter colaborado para o engajamento de Oppenheimer no projeto Manhattan. Seu campo de pesquisa, a física quântica, era eminentemente teórico. Tudo muito especulativo, habitando quadros negros e papel. Evocava a imagem caricata do cientista alheio ao mundo em que vive. A possibilidade de sair do ambiente acadêmico e desembarcar num mundo palpável, material, quod erat demonstrandum, pode tê-lo excitado a ponto de não medir, ou subestimar, as consequências do que estava criando? Não sei, ninguém sabe, nem poderá saber. Não estou falando de mocinhos e bandidos, apenas reconhecendo as contradições internas do homo sapiens.

A segunda questão é a variável militar. Havia necessidade de usar o armamento nuclear? Se por necessidade entendemos quebrar a espinha dorsal dos japoneses, a resposta é um sonoro não. Usando números frios. Em março de 1945, Tóquio foi atacada por bombas incendiárias. Numa única noite, 100 mil moradores foram queimados até a morte, 130 quilômetros quadrados reduzidos a fogo e cinzas. As imagens da capital japonesa em ruínas fumegantes lembram o holocausto nuclear de Hiroshima e Nagasaki. Naquele período, os bombardeios de 67 cidades japonesas mataram entre 50 e 90% das populações locais. Historiadores tiveram acesso a documentos que mostram que, já então, o país estava se preparando para render-se.

Por que, então, a barbárie nuclear? Também aqui não existem explicações definitivas. Uma razão plausível seria a Guerra Fria que começava a esboçar-se depois das grandes vitórias do Exército Vermelho na Europa. Hiroshima e Nagasaki, cidades sem qualquer importância militar, pagaram o pato, ao custo de milhares de mortos (impossível determinar o número exato). Teriam sido uma clara mensagem à União Soviética. A expansão da influência bolchevique não seria tolerada. Se necessário, barrada manu militari, ou melhor, manu nucleari.

Oppenheimer disse a Truman que sentia as mãos manchadas de sangue. O presidente norte-americano desprezou aquele homem atormentado por sua criação e que acreditava, ingenuamente, que a cooperação internacional prevaleceria sobre a lógica da indústria da guerra. Hoje, os artefatos lançados sobre o Japão não passam de traques juninos comparados com o poder letal das milhares de bombas atômicas armazenadas em 9 países. O gênio, definitivamente, saiu da lâmpada.

Qual a dimensão da culpa de Oppenheimer em tudo isso? Insisto que o filme de Nolan não garante respostas para essa pergunta. Tem o mérito, enorme, de reativar questões importantes num mundo apressado, às voltas com a Inteligência Artificial, que muitos garantem ter potencial de extermínio superior ao que foi parido num lugar remoto do Novo México.

Abraço. E coragem.