Messias, Deus, chefes supremos,/Nada esperamos de nenhum!/Sejamos nós quem conquistemos/A Terra-Mãe livre e comum! (do hino A Internacional)

Ando mergulhado na formidável biografia da Clarice Lispector, escrita pelo norte-americano Benjamin Moser. Clarice é um personagem intraduzível. Banhada em contradições, apaixonada pelo ofício de escrever mas cética quanto à sua capacidade de transformar, pela palavra, quem quer que fosse. Econômica na comunicação verbal, esparramada nas histórias que criou, sem a menor preocupação de “ser fácil”. “Escrevo para mim mesma, para ouvir minha alma falando e cantando, às vezes chorando”, disse. Lê-la jamais é um exercício ligeiro. Nada mais distante do rosa Barbie do que Clarice.

Clarice Lispector 2Uma de suas contradições me pegou pelo pé. Ou melhor, pela interrogação. Procurou, com insistência, as fontes do misticismo judaico. Aliás, foi além. Já no final da vida, consultava videntes. Amigos garantiam que ela acreditava nas previsões. Na outra ponta da corda, rejeitou cedo a religião convencional, descartando a hipótese do deus humanizado que informa, em geral, as práticas religiosas ocidentais. Em um de seus textos, afirma, categórica: “Se acima dum homem há os homens, acima dos homens nada mais há”.

A origem do ateísmo clariceano não é difícil de explicar. A pista está em sua própria história de vida. Nascida numa aldeia remota da Ucrânia, região da Podólia, onde havia um antissemitismo endêmico, com longo prontuário de pogroms, sua família sofreu dores e agressões até a fuga final para o Brasil. Inicialmente Alagoas, depois Pernambuco e Rio de Janeiro. A mãe foi estuprada por vândalos ucranianos e contraiu sífilis. O pai foi sistematicamente perseguido e mal conseguia garantir o sustento da casa. Juntando os cacos dos dramas familiares com as informações posteriores sobre o genocídio judaico na Segunda Guerra Mundial, reproduziu a pergunta que Primo Levi e tantos outros fizeram: Como se pode acreditar num deus indiferente a tantas e tamanhas monstruosidades?

Ao longo dos séculos, ilusionistas, charlatães, doutrinadores oportunistas, supersticiosos e até mesmo gente de boa fé, passaram adiante as lendas de seres sobrenaturais, com poder de vida e morte sobre os homens. Sempre fabulando que há uma separação rígida entre Bem e Mal. Muita dor, muita ignorância e muito sangue jorraram por conta deste tipo de mistificação. No Brasil, não foi diferente e está em curso uma radicalização do que alguns chamam de guerra santa ou cultural, mas que não passa de uma NeoInquisição sem fogueiras. Quem não pensa como eu, dizem os fanáticos, será execrado, perseguido e isolado. Não se satisfazem, porém, com isso. O poder terreno exige altas finanças.

Em nome de suas crenças, autodefinidas como de moralidade superior, grupos religiosos conseguiram que a Câmara dos Deputados aprovasse isenções tributárias não apenas para seus templos, mas para organizações assistenciais e beneficentes ligadas a eles. Agora, tentam ampliar esta anomalia no Senado, acabando com a tributação para construção e reformas de templos, escolas, asilos, creches e comunidades terapêuticas vinculadas a eles. Não há limites para a gula, cuja satisfação é barganhada nos jogos eleitoral e parlamentar.

Como têm se manifestado alguns destes profetas da bondade e parasitas dos recursos públicos? Um deles não teve o menor pudor de afirmar que “africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé” e “Aids é uma doença gay”. Outro incitou, claramente, sua comunidade a se livrar dos homossexuais, trabalhinho sujo terceirizado por seu deus. Uma expoente da bizarrice reacionária pressionou, covardemente, uma menina que engravidou após estupro para que não interrompesse a gestação. Tudo em nome da vida (sic).

Teologia da prosperidade 1Renúncia fiscal implica em menos recursos públicos para investir em prioridades que beneficiem amplos setores da sociedade. Assim sendo, cabe perguntar quem fiscaliza as instituições religiosas, muitas vezes lideradas por gente que vive com luxo num país com dezenas de milhões de famintos. Como pode uma atividade baseada na fé, necessariamente limitada a grupos restritos, ser financiada por toda a sociedade? Por que um ateu, por exemplo, deveria aceitar que seu imposto pagasse a construção de um templo, qualquer que fosse a denominação deste? Quem quantifica o “benefício social” de uma associação dita beneficente? É tudo muito escandaloso e revoltante.

Já que estamos no Brasil, que nunca renunciou ao título de Terra do Crioulo Doido, tomo a liberdade de sugerir outras isenções tributárias. Que se liberem dos impostos os jardineiros, que nos dão beleza e perfume. Que se aliviem os livreiros, guardiães dos mistérios que importam. Que anulem a carga dos poetas, tradutores das almas partidas e dos corações aflitos. Que tirem das planilhas os grafiteiros, gênese do milagre da arte nos muros carentes. Que eliminem dos tributáveis os professores, centímetros iniciais da estrada que ferve sob nossos pés hesitantes. Que, por fim, apaguem da listagem as prostitutas. Elas, afinal de contas, acabam sendo, injusta e involuntariamente, o modelo de conduta dos cínicos que fundem religião com política.

Abraço. E coragem.