Já dei uns pitacos sobre a implosão do submersível Titan, em passeio turístico ao custo individual de US$ 250 mil para observar os destroços do Titanic. Quem sabe os cinco passageiros buscavam contato com miasmas dos que morreram no afundamento de 1912? Que não se subestime o nível do delírio de bilionários, para quem não há limites materiais neste planeta torto e ensandecido.
Peço a paciência de vocês para detalhar um pouco mais alguns aspectos que me incomodam bastante. O primeiro deles é a ganância dos proprietários da OceanGate, empresa que construiu o Titan. Mesmo alertados por vários especialistas sobre a precariedade da segurança do veículo, mantiveram o projeto, sob a alegação de que estavam “inovando” a navegação debaixo d’água. Stockton Rush, ex-piloto de avião que fundou a OceanGate e estava a bordo do submersível que implodiu, considerava “incrivelmente bonito” o naufrágio do Titanic. “Beleza” que custou a vida de cerca de 1.500 pessoas, a grande maioria pobres que viajavam na terceira classe.
A indiferença ao risco de terceiros em nome da maximização de lucros não é inédita no capitalismo. Ao contrário, faz parte de seu DNA. Durante a Revolução Industrial na Inglaterra no século XVIII, os primeiros operários pagaram com a saúde e, no limite, com a vida, para garantir a acumulação de capital da burguesia. No início, trabalhavam sete dias por semana, até 15 horas diárias. Férias pra quê? O trabalho infantil em certos setores era generalizado. Risco (mental, físico) coletivo, lucro privado. É a lógica que se esconde, intacta, no mergulho fatal do Titan.
Outro aspecto é a diferença de tratamento na morte. Os cinco mortos no submersível mereceram amplo registro de fotos e biografias. A divulgação personalizada transforma números frios em empatia, quebra a invisibilidade. Este mesmo gesto de humanidade não mereceram os milhares de refugiados que jazem no fundo dos mares. A diferença de classe não perdoa sequer os afogados.
Costuma-se olhar com condescendência as excentricidades dos bilionários. Os tripulantes do Titan faziam parte da casta de magnatas que não cansam de procurar “diferenciais” com a ralé. Como o jato particular do Five Hotels & Resorts em Dubai, que oferece acomodações luxuosas para os clientes durante o voo. A viagem de ida e volta entre Londres e Dubai, por exemplo, custa cerca de US$ 200 mil na engenhoca. Os que estão em New York e querem garantir seu lugar na galeria dos “especiais”, podem ir a um restaurante no Brooklyn que oferece uma experiência sui generis. É o naked dinner. Isso mesmo, durante 40 minutos todos ficam pelados para ter uma “experiência imersiva” durante o rango. É a banalização esperta da nudez, que assegura notoriedade e bons lucros para os proprietários da casa.
Finalmente, o que dizer da cobertura jornalística maciça para um evento tão fútil , tão descolado da vida da enorme maioria dos terráqueos? Compensa valorizar a curiosidade mórbida dos necroturistas? Uma aritmética elementar desnuda o filtro viciado desta imprensa. O sumiço do submersível durou 5 dias. As buscas por seu paradeiro envolveram recursos sofisticados de quatro países, ao custo (público) de milhões de dólares. No mesmo intervalo de 120 horas, cerca de 40 trabalhadores brasileiros foram encontrados em condição análoga à escravidão. Quem são? De onde vieram? Como medir seu nível de sofrimento? Ninguém sabe, são meros números nas estatísticas da indignidade e do descaso. Também no mesmo intervalo de tempo, cerca de 120 mil pessoas morreram de fome no mundo. Quantos segundos nos noticiários esta tragédia infinita merece?
A implosão do tubo insensato é uma boa metáfora para o que está acontecendo no planeta. Hóspedes recentes desta esfera privilegiada, transformamos a imensa sopa orgânica que são os oceanos, fonte de inúmeras formas de vida e beleza, em ataúde líquido, território da Morte. Poluímos e aniquilamos vida marinha de forma sistemática. Do jeito que a banda toca, o final deste filme é previsível. Netuno, aliás, já está afiando seu tridente.
Abraço. E coragem.