O pau anda comendo na casa de Noca. Desde que o Ministério Público mandou retirar de todas as plataformas digitais o show “Perturbador”, do comediante Leo Lins, há um debate intenso sobre os limites da liberdade de expressão. Ou melhor: haveria limites para esta liberdade?
As “piadas” de Leo, que levaram o MP a agir, não são apenas de mau gosto, mas exemplos acabados dos preconceitos mais baixos que circulam pela sociedade. Contra negros, por exemplo. O artista conta, e a plateia do teatro adora (!), que “negro não consegue arrumar emprego, mas na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim”. Deboches desse tipo, que ajudam a “normalizar” o racismo, têm muitas variantes. A meu ver não diferem, na essência, dos insultos que Vinícius Jr. sofreu na Espanha. São frutos da mesma árvore tóxica.
O humorista Fábio Porchat chegou a qualificar de “censura” o banimento das piadas sórdidas, alegando que Leo Lins “tem o direito de ofender”. Diante de forte reação, chegou a retratar-se, mas muita gente pensa como ele. É um pensamento insano em tempos de redes globais de comunicação. Uma ofensa divulgada pela internet ultrapassa a fronteira limitada dos espaços de stand-ups e se torna, rapidamente, bandeira agitada por milhões de fanáticos viciados em ódio. É colírio para os olhos da extrema-direita e matéria-prima cumulativa para explosões de violência, verbal ou física, que atingem mulheres, gays, nordestinos, judeus, muçulmanos e tantos outros grupos.
Olho para meu próprio umbigo. O Menino conviveu com emigrantes de várias origens. No pequeno comércio da rua tijucana trabalhavam Ramiro, o espanhol do armarinho, Joaquim, o português do bar (onde vi pela primeira vez os misteriosos e imediatamente desejados tremoços), e Vitório, o italiano da barbearia (que esculpiu minha infância à imagem do corte Príncipe Danilo). A ligá-los, a pobreza que os expulsou de suas terras. Eram “diferentes”, mas jamais os olhei com desprezo ou empáfia. Como os portugueses eram maioria nas ondas migratórias d’antanho e, de modo geral, tinham baixo nível escolar, sofriam no máximo gozações nas “piadas de português”, que passavam longe da semeadura racista de gente como Leo Lins. Fui testemunha de que preconceitos não são doenças genéticas ou dados da natureza humana. Pertencem ao ramo dos males sociais, produtos coletivos, e como tais devem ser entendidos e combatidos.
Fui espectador assíduo da Escolinha do Professor Raimundo, uma das muitas criações do Chico Anysio. Alguns alunos reproduziam estereótipos sobre minorias. O homossexual Seu Peru, interpretado pelo ótimo Orlando Sccoby Doo Drummond, era muito popular, dizem que especialmente entre as crianças. O que pensariam disso os homossexuais? Por razões óbvias, o judeu Samuel Blaustein me constrangia particularmente. Era a personificação do judeu das anedotas antissemitas. Avarento, obcecado por cifrões, physique du rôle caricato. Em que medida esse tipo de caracterização ajudava a consagrar a imagem deformada de todo um povo? Não sei.
Existirão limites à comicidade? Ruth de Aquino escreveu que “existe uma linha tênue entre humor pesado, escatológico, ruim… e o humor criminoso”. Muitas vezes não é fácil identificar esta linha. A dificuldade, no entanto, não pode justificar um solta a boiada, um liberou geral, um os incomodados que se mudem (ou desliguem a televisão, o computador e o celular). Para ficar apenas no racismo, que, de longe, é o maior problema de discriminação no Brasil, não é aceitável disseminar, como piadas, situações objetivas de humilhação, dores físicas e psíquicas, vividas sequencialmente pelo povo negro em larga escala.
Antonio Prata escreveu artigo antológico sobre todas essas questões. Como eu, tem muitas dúvidas sobre a melhor forma de reprimir as manifestações de ódio e preconceito sem cercear a necessária liberdade de expressão (quem viveu a ditadura civil-militar inaugurada em 1964 sabe do valor da liberdade). Disse o Antonio: “Como fazemos para que a liberdade de expressão não seja um habeas corpus para a liberdade de opressão?”. Depois de inspiradas considerações, arremata: “É preciso combater o racismo e lutar pela liberdade de expressão. Necessariamente nessa ordem”. Onde se lê racismo, dilato para todas as formas de discriminação.
Abraço. E coragem.