Quinta era dia de “shportivo”. Nos treze jogos da Loteca depositava sonhos delirantes. Se o Trem empatasse com o Oratório, o Andirá vencesse o Náuas e o Real Ariquemes derrotasse o União Cacoalense, três zebras cravadas, ela talvez emparelhasse com a fortuna do Dudu, milionário instantâneo em 1972. Quem sabe? Got zol elfn.
Preenchido o cartão da Loteria Esportiva, valor mínimo da aposta, voltava à rotina, no seu passo curto também rotineiro. Enquanto catava os grãos de feijão, afagava esperanças antigas. Se eu ganhar, vou poder acordar mais tarde. Não mais na madrugada escura, preparar a marmita e o café da manhã do marido. Não precisaria contar vinténs, economizar na feira, para enfim comprar passagem, pegar um ônibus e viajar para São Lourenço, fim de mundo em seu periscópio de curto alcance. Acabariam as negociações intermináveis de pendura no açougue do Moishe Shoichet e daria um pé no traseiro do Pinchas Shneider, alfaiate cego de um olho, que fazia bainhas tortas e sempre errava no comprimento das calças. A roda do infortúnio repetia-se a cada semana. Sonhos.
O marido, pequeno comerciante de confecções em Caxias, era versado na loteria zoológica, inventada pelo Barão de Drummond. Jogo do bicho para os íntimos, que corria solto por aquelas bandas. Entendia de milhar, na cabeça, essas bossas. Aqui e ali ganhava uns trocados nas apostas, que nem davam para comprar um Morris Oxford de segunda mão para diminuir a tortura de viajar diariamente três horas no ônibus lotado, ida e volta, para a Baixada Fluminense. Sonhos tinha, mas a dura realidade eram as varizes profissionais que o espezinhavam atrás do balcão. Lembro bem delas, cobertas por ataduras amareladas e suspiradas pelo oi vei ancestral.
Nos anos 50 e 60, Caxias era quase sinônimo de ocorrências policiais. A rádio Tupi transmitia um programa diário na hora do almoço, chamado Patrulha da cidade. Pioneiro do sensacionalismo barato que demoniza as classes populares. Samuel Correia, o Samuca, era o locutor e suas ênfases montavam na cabeça do Menino uma paisagem assustadora das periferias do Rio, onde Caxias e a Invernada de Olaria tinham lugar cativo. Os transgressores, não importava se batedores de carteira ou assassinos cruéis, eram “vagabundos” ou “elementos”.
Em Caxias ficava a fortaleza, literalmente, de um dos políticos mais conhecidos daquelas décadas. Mansão projetada pelo Sérgio Bernardes! Tenório Cavalcanti, alagoano, era o demagogo típico, trocando favores por votos dos pobres. E o que não faltava em Caxias era pobreza crônica, enfileirada em ruas empoeiradas cujo cheiro sou capaz de sentir ainda hoje. A poeira que subia do chão de terra batida parecia vir de um filme de faroeste, véspera de duelo num curral qualquer. Tenório circulava trajando uma capa preta, dentro da qual levava uma metralhadora apelidada de Lurdinha. Alguém falou em faroeste?
De tanto ouvir falar nos bichos, ela ficou curiosa. Numa das muitas noites vazias, salpicada de melancolia, silêncio e luz fraca, perguntou ao marido que jogo era aquele. De cabeça baixa, tomando sopa e com a má vontade de sempre, ele grunhiu meia dúzia de palavras. Foi o suficiente. Ela tinha ouvido no rádio o Moreira da Silva cantando “Etelvina! Acertei no milhar! Ganhei 500 contos, não vou mais trabalhar”. Juntou a com b e dormiu pensando nas veredas que se abriam com a bicharada.
Sonhou que voava, com o vento desarrumando o cabelo obediente. Pedaços do céu tingiam suas asas de azul. Uma sensação estranha de leveza, que desconhecia. Acordou excitada. Pediu ao marido que fizesse uma fezinha na águia.
Deu borboleta.
Abraço. E coragem.