Você aí, consegue imaginar o Drummond sendo tachado de fascista, colonialista, capacitista e misógino? Por favor, não caia da cadeira, mas esse foi o quadro pintado numa crônica recente do Antonio Prata. Calma, não foi ele quem cometeu o disparate. No texto, simula uma aula em que a professora se propõe a analisar o Poema de Sete Faces, aquele do “quando eu nasci, um anjo torto…”. Os alunos vão “problematizando” agressivamente cada palavra, cada expressão, ignorando completamente a persona lírica do itabirano. Metáforas? Nem pensar. Ao final, desencantada, a professora percebe que ninguém ali estava disposto a conversar. Todos já tinham a cartilha pronta, sectarismo na ponta da língua. E tome de ofensas histéricas ao Drummond.
Terminada a leitura, suspirei meio desanimado. Lá estava a mesma sensação de cerco dos revisionistas do passado, das patrulhas linguísticas, da cultura do cancelamento, de empobrecimento da inteligência. Não adianta, por exemplo, o Mário Lago ter explicado que a letra do Ai, que saudades da Amélia não tem nada de misoginia, que fala da mulher companheira, que compartilha com o parceiro momentos difíceis, sem protestar. Amor tem dessas coisas, né? Mário, militante do PCB, sabia do que falava. Foi preso várias vezes por motivos políticos e sua companheira o apoiou sempre. Amélia entrou de gaiata no navio e no índex, Mário foi condenado no tribunal sumário dos xerifes dos “bons costumes”.
Sérgio Rodrigues, escritor, jornalista e apaixonado pela língua portuguesa, é meu guru para questões gramaticais e linguísticas. Como eu, ele acompanha, apreensivo, o clima de guerra cultural que arma patrulhas vocabulares com argumentos frequentemente falaciosos. Um dos exemplos recentes, não riam!, é a palavra “ovulário”. Diga aí Sérgio: “A palavra ovulário, termo de nicho (…), é um neologismo que certos setores do feminismo acadêmico abraçaram como substituto de seminário”. O motivo? Semen, no latim, pode ser semente ou germe e é a matriz de sêmen, esperma. Seminário, no entanto, vem do latim seminarium, que era o lugar onde se plantavam sementes, viveiro de plantas. Por extensão, também de ideias, estudos, estudantes. Militância tosca dá nisso. Tiro no pé.
Há muitos exemplos de bobagens semelhantes. O verbo esclarecer não tem nada de racista. Refere-se à claridade, real ou metafórica, para uma visualização melhor de ideias, argumentos, objetos. Nada a ver com a cor da pele. A expressão “fazer nas coxas”, um clássico das acusações de racismo, não veio da fabricação de telhas com forma de coxas escravas. Isto seria contraproducente em termos anatômicos, funcionais e econômicos. E por aí vai. A lista, como o cordão dos puxa-sacos, cada vez aumenta mais.
O latim foi banido das escolas há muitas décadas. Não cheguei a ter aulas sobre essa que é a base do nosso português. Nosso idioma não herdou do latim o gênero neutro. Por isso, a tradição recomenda que a concordância, por razões fonéticas e não sexuais, acompanhe o gênero masculino. Não há “machismo ancestral” na parada. Não uso amigues, amigxs, prezades, todes, companheires e por aí vai. O masculino, em todos esses casos e nada a ver com supremacismo machista, condensa melhor e sem povoamentos desnecessários os coletivos a quem me dirijo. Sem ofender, ignorar ou desqualificar ninguém.
Há palavras de dois gêneros, invariáveis na origem, que também estão sob ataque. Não se trata de condenar quem prefira, por exemplo, reforçar a nuance feminista e inventar a palavra presidenta. Da minha parte, voto com o Sérgio Rodrigues. Presidente, gênero invariável desde sempre, tem, além do mais, sonoridade melhor. Se perturbarmos a regra tradicional, teremos uma chuva torrencial de gerentas, atendentas, adolescentas, displiscentas, conscientas, decadentas, ardentas, gentas, serpentas, valentas, efervescentas, uma lista inclementa. Oxenta!
Sei perfeitamente que há racismo estrutural, as mulheres são discriminadas e as palavras exprimem o estado de espírito da sociedade (sem esquecer sua historicidade; caso contrário, validaremos a censura infame de textos antigos, “politicamente incorretos”). Quando, no entanto, se ultrapassa a fronteira do ridículo e se lança mão de falácias para defender causas justas, as vítimas principais são essas causas e seus defensores. O descrédito resultante será sempre usado pelos racistas e misóginos, na tocaia para aproveitar uma boa oportunidade. Por outro lado, cabe perguntar se a principal frente de luta está mesmo nas mudanças vocabulares. Chamar mendigo de pessoa em situação de rua vai mudar o quê? Ou, convocando Millôr Fernandes para o palco, albino de hipopigmentado, gago de loquaz intermitente, desemprego de lazer não solicitado? As matrizes da discriminação são mais complexas e os nomes têm importância, mas são apenas a crosta que cobre a superfície e ilude a distinta plateia.
Abraço. E coragem.