A liberdade, como a vida, só a merece/quem deve conquistá-la a cada dia! (J. W. Goethe)

No caminho para a entrevista, ele olhou, deslumbrado, para aqueles marcos urbanos tão diferentes da sua Belém. Do obelisco na avenida Rio Branco, onde a gauchada amarrou seus cavalos em 1930, ao relógio da Mesbla, no lindo edifício Art Déco, passando pela elegância do edifício Serrador e a imponência eclética do Palácio Monroe. Tudo abraçado pelo mar que ajudava a azular a paisagem.

Na hora marcada, ainda mexido por tanta novidade, foi chamado pela entrevistadora. Não, senhora, não sou daqui do Rio. Vim do Pará, tenho poucos recursos para terminar meus estudos. Comer no Calabouço é um preço que posso pagar, vai ajudar muito. Ela olhou para o adolescente, que não disfarçava a timidez, e não pôde evitar uma lembrança antiga, final dos anos 40, quando tinha a mesma idade do rapazinho e ouvia sempre a rádio Nacional. Em silêncio, cantarolou Caymmi: Peguei um ita no norte, pra vim pro Rio morar, adeus meu pai, minha mãe, adeus Belém do Pará. A memória radiofônica criou uma comunhão instantânea. A autorização para frequentar o restaurante do Calabouço foi dada.

Edson, então, juntou-se às centenas de estudantes que frequentavam o bandejão honesto todos os dias. Gente de algures, alhures e nenhures, que vinha morar no antigo Distrito Federal para fazer e refazer vidas. Ali, naquele canto penumbroso do refeitório, o cearense José Tarcísio sonhava com artes plásticas. Mais adiante, Carlos Celso, do Acre profundo, tinha todas as marcas do choque com a cidade grande.

O país amordaçado por uma ditadura buscava espaços de resistência. Edson começou a participar do movimento estudantil. Lutava pela melhoria da qualidade do Calabouço e sua consciência política evoluía rapidamente. No dia 28 de março de 1968, mal completados dezoito anos, ele jantava ali, junto com 300 estudantes. A Polícia Militar do Rio de Janeiro invadiu o local e atirou covardemente. Edson, atingido no peito, morreu instantaneamente. A morte estúpida provocou grande comoção e uma multidão acompanhou o féretro pelas ruas da cidade. Edson Luis de Lima Souto se somou a uma das muitas veredas por onde andou o movimento estudantil na luta contra a ditadura. Três meses após seu assassinato, sua figura pairou na avenida Rio Branco, a mesma que o deslumbrara, durante a Passeata dos Cem Mil.

Como terá recebido a notícia da morte de Edson a assistente social que o entrevistara? Não sei. Ela própria havia enfrentado o autoritarismo, só que no terreno doméstico. Vinha de uma geração em que o machismo era a regra. Onde já se viu mulher “trabalhar fora”, ou seja, ter uma carreira, fugir da máquina Singer, do pano de prato, da enceradeira, da gordura de coco Carioca, dos bobes e laquês? Trabalhar para a União Metropolitana dos Estudantes, que administrava o Calabouço, foi um gesto libertário. Lilia Gruman enfrentou os demônios de seu tempo com as armas possíveis. Do seu jeito, bateu asas e voou.

Estamos às vésperas do Pessach, quando os judeus lembram o fim de seu cativeiro no Egito dos faraós. Sempre me perguntei para quê repetir todos os anos o mesmo ritual, por mais forte que seja a mensagem original. No caso, a importância da liberdade. Há muitas respostas possíveis. Duas, no entanto, estão dentro da própria Agadá, o roteiro tradicional que descreve o processo de libertação. A primeira diz que, em cada geração, cada um de nós deve sentir como se tivesse, pessoalmente, saído do Egito. É uma forma de dizer que somos herdeiros de uma vontade coletiva, de um projeto que não admite a servidão como natural. Edson e Lilia rechaçaram os decretos autoritários dos faraós contemporâneos e se fizeram ex-cativos.

A segunda reconhece que a versão oficial do Pessach (desacreditada, em muitos aspectos, por arqueólogos, antropólogos, historiadores e estudiosos da Bíblia) pode ser modificada. Autoriza-se, e isso é um fato espantoso em assuntos da tradição religiosa, complementá-la, atualizá-la. Aliás, é mais do que isso. Fazer essa atualização seria uma mitsvá, ou seja, uma boa ação, implementada para aprimorar o Homem.

Edson e Lilia enfrentaram faraós poderosos. Construíram, pelo pensamento e pela ação, o caminho de sua liberdade. Não precisaram de forças sobrenaturais, nem de mitológicas lideranças fortes. Escreveram uma Agadá dos tempos modernos, onde a liberdade é matéria cada vez mais necessária. Cumpriram, sem sabê-lo, uma linda mitsvá.

Hag Pessach Sameach!

Abraço.E coragem.