Aqui eu exerço o meu silêncio (Manoel de Barros)

Quem leu O grande mentecapto, do Fernando Sabino, talvez lembre. Geraldo Viramundo, peregrino delirante nas Minas Gerais, foi parar num hospício. Feliz como um menino, Viramundo sentiu-se em casa. Rodopiou, riu, sapateou, conversou com aquela gente interessante. “Criaturas de minha refinada estirpe”, pensou.

Num canto do pátio, viu um camarada com o ouvido colado à parede. Shhh, disse-lhe o sujeito, com o dedo entre os lábios. Em seguida, convidou o novo companheiro: Quer ouvir também? Viramundo encostou o ouvido na parede. Nada, silêncio total. Ainda ficou um tempo ali, aguardando um sonzinho que fosse.

Finalmente, desistiu. Não estou ouvindo nada, avisou ao outro. Sem tirar o ouvido da parede, este, com olhar malandro, sorriu de boca fechada e arrematou: Eu também não. E está assim há mais de doze horas!

Por razão que desconheço, esta passagem me transportou para uma cena antiga e recorrente numa sinagoga. O condutor das orações, incomodado com a algazarra do público, batia duro no púlpito central e clamava a bom som: Shtil, idn, shtil! Silêncio, judeus, silêncio! Com um pouco de sorte, as vozes aquietavam e a necessária introspecção se instalava. Silêncio.

Seria o silêncio apenas a ausência de ruído? O nada? Quem deitou no divã ou encarou sentado o terapeuta sabe que o sumiço temporário das palavras pode ser perturbador. Lembra as histórias em quadrinhos, quando o personagem ficava aflito e de sua cabeça voavam pingos de suor. Raramente, no entanto, significa o vácuo. É uma pausa necessária para polir sentimentos ou fazer contato com o que Clarice Lispector chamava de “o delicado abismo da desordem”. Em qualquer caso, carrega sementes potencializadoras de diálogo.

Um dos momentos mais comoventes da história do cinema apareceu no filme A noite que durou 12 anos. Na cena, presos políticos uruguaios eram transferidos de cárcere tendo ao fundo a música The sound of silence. Cantada por Silvia Pérez Cruz, creio que a cappella. Faço aqui uma confissão pública. Chorei, solucei, verti abundantes gotinhas salgadas. Meio acabrunhado, criado que fui sob a máxima menino não chora. E o que diz a letra da música? Pessoas que ouvem sem escutar. De longe a pior forma de silêncio. Popularmente conhecida como indiferença.

O que dizer do silêncio dos invisíveis, dos oprimidos, dos descartáveis? O Talquei Imbecil se referia aos quilombolas com desprezo e violência. Para ele, era uma não-gente, que só servia para perturbar a paz dos cemitérios que tanto lhe agradava. Pois há mais de 6 mil quilombos no Brasil, onde vivem quase 400 mil quilombolas. Descendentes das comunidades negras que resistiram ao colono português, que estuprava, amputava, castigava, desumanizava. Hoje, fazem parte da luta por regularização da posse da terra e do acesso a equipamentos básicos de saúde e educação. São praticamente invisíveis para a maioria da população. Sua voz é abafada, sua cultura de resistência é ignorada. Silêncio.

Os meus silêncios sempre beliscaram a alma. Muitas conversas desejadas jamais chegaram. Outras, por insensibilidade e alguma arrogância, não ofereci. Certa vez, num fim de tarde pré-histórico, eu estava reunido com um grupo que se encontrava aos sábados. O cenário, a área externa do Museu de Arte Moderna. O convidado era um jovem psicanalista de São Paulo. Estávamos sentados e ele em pé. Alguém pediu que ele definisse(!) o que via em cada um de nós. Chegada a minha vez, o ilustre paulistano ficou uns segundos em silêncio e, ainda em silêncio, abaixou-se até ficar de cócoras na minha frente. Nossos olhos na mesma altura. Não houve palavras, apenas um olhar solidário. Talvez tenha sido a mensagem mais eloquente que recebi na vida, enviada num momento de incertezas e unhas roídas.

E eis que chego aqui, quebrando pedras, digo, silêncios…

Abraço. E coragem.