De quem é essa ira santa/Essa saúde civil/Que tocando a ferida/Redescobre o Brasil? (trecho de Menestrel das Alagoas, do Milton Nascimento e do Fernando Brant)
Você sabe o que fez no verão passado? Se perguntado, posso, com algum esforço, lembrar disso e daquilo, de preferência nada que comprometa minha aflita biografia. Agora, sei bem onde estava e o que fazia no verão de 1983. Participava da articulação para definir a nova diretoria do Sindicato dos Químicos e Engenheiros Químicos/RJ. Éramos o núcleo do GRENS – Grupo de Renovação Sindical, que, no final dos anos 70, havia enxotado, via eleitoral e com 75% dos votos, o pelego que dominava a entidade. Depois de muita conversa e para minha surpresa, acabei indicado para presidi-la, o que fiz até 1986.
Era um período de crise da ditadura. Na verdade, uma conjugação de crises. Econômica (recessão profunda, inflação descontrolada), política (governos de oposição moderada haviam sido eleitos, em 1982, nos principais colégios eleitorais do país), de ressurgimento de greves e manifestações (com destaque para o sindicalismo combativo na região do ABC, em São Paulo), de pressões externas (o imperialismo, que apoiara os regimes sanguinários na América Latina, mudava de tática, defendendo “transições controladas” para “democracias vigiadas”).
Os profissionais liberais, entre eles os químicos e engenheiros químicos, se integraram nesta luta. Promovemos campanhas de sindicalização, ampliamos as negociações coletivas com empresas (esclarecendo os direitos dos trabalhadores), integramos nossas pautas com as de outros sindicatos, lideramos a primeira greve da história do SQEQ (na Nuclebrás Engenharia). Era a contribuição modesta, mas combativa, para enfraquecer a ditadura e livrar o país do imenso entulho autoritário que os militares, junto com cúmplices civis, haviam acumulado.
No dia 2 de março de 1983, o deputado matogrossense Dante de Oliveira conseguiu número suficiente de assinaturas para submeter uma PEC ao Congresso com um único objetivo: restituir as eleições diretas para a presidência da República.
A chamada Emenda Dante incendiou o país, unificando as principais lideranças políticas e sociais e ampliando adesões. Do primeiro e modesto comício em Goiânia, em junho de 1983, até as gigantescas manifestações na Praça da Sé, em São Paulo, e na Candelária, no Rio, a campanha das Diretas Já transformou-se no maior movimento de massas da história do país. A maioria da sociedade estava ansiosa para livrar-se dos cascos fardados e suas paranoias. Estávamos cansados de censura, repressão, boçalidade, autoritarismo, mediocridade. Já não aguentávamos mais aquilo que Nelson Rodrigues, o reacionário com estilo delicioso, chamava de quadrúpedes de 28 patas.
O clima das manifestações era de festa. De repente, havíamos perdido o medo de gritar contra os podres poderes, de reivindicar direitos elementares. Vários hinos informais embalaram nossa emoção. O Menestrel das Alagoas, composto por Milton Nascimento e Fernando Brant, homenageava o político alagoano Teotônio Vilela, figura muito importante na ressurreição da política e da vida com mais liberdade. Teotônio teve trajetória singular. Formado num meio conservador, foi filiado à ARENA, partido que deu sustentação à ditadura. Já no fim da vida e vitimado por um câncer, aderiu à luta pela redemocratização e foi, seguramente, um de seus mais entusiasmados porta-vozes.
Em 28 de janeiro de 1984, num jogo entre Flamengo e Palmeiras, no Maracanã, uma faixa surgiu no meio da torcida rubro-negra. Nela estava escrito “Fla Diretas”. De acordo com o jornalista Oscar Pilagallo, foi a primeira torcida a se manifestar pela redemocratização. Ainda de acordo com ele, a ideia surgira numa pelada entre universitários ligados ao PCB, no ginásio esportivo da ASA – Associação Scholem Aleichem, tradicional reduto judaico progressista no Rio.
No dia 25 de abril de 1984, o Congresso votou a Emenda Dante. Ela foi derrotada por apenas 22 votos. Naquele dia, eu estava em Porto Alegre a trabalho. Acompanhei a votação pelo rádio (!) e, tal como multidões neste Brasilzão afora, fiquei arrasado. O jeito foi aceitar a eleição indireta de Tancredo Neves como última etapa para devolver a milicada aos quartéis. A correlação de forças não permitia outra saída. O resto, e que resto!, nos trouxe até aqui. Com a revolta do meu grande amigo Eyder Dantas, vital inspirador naquelas jornadas, que lamentava que tanta luta, tanto sofrimento, tanta energia investida, tenha terminado num político mineiro conservador esclarecido. Continuidade dos arranjos pelo alto que definem até hoje os rumos do país.
Tive o imenso privilégio de estar nas ruas naqueles meses libertadores. O clímax foi o grande comício da Candelária, no dia 10 de abril de 1984. As ruas transversais da avenida Rio Branco não paravam de receber gente. Pareciam afluentes de um rio caudaloso, inquieto, fervilhante, que convergiam, exuberantes, para a praça Pio X, onde fica a Igreja da Candelária. A avenida Presidente Vargas virou filial do povo. Quem é que não chorava de emoção quando o equipamento de som tocava Coração de Estudante? Quem podia ficar indiferente à Fafá de Belém cantando, a capella, o hino nacional? As lágrimas não secaram. Umedeceram e fecundaram minh’alma para sempre.
A garotada, que hoje se comunica por zoom, se excita com Inteligência Artificial, aluga quitinetes no metaverso, acha fofinho relacionar-se com avatares, não conhece a imensa capacidade transformadora de que as ações coletivas são capazes. Ao vivo e a quente. Como vivi naqueles verões de 1983 e 1984.
Um abraço. E coragem.