Não tenho medo de morrer. Só não quero estar lá quando isso acontecer. (Woody Allen)

Parece até uma conspiração cósmica. Os olhos não conseguem perceber. Sei lá, sei lá não sei. O ano tem 365 dias e, num intervalo de 25 anos, o raio caiu duas vezes no mesmo lugar. Justo no dia 23 de fevereiro, separados por um quarto de século, Zissi e Brucha entregaram os pontos e foram cantar noutra freguesia.

Eram da mesma família, mas não tinham afinidades. Nunca os vi conversando. Bater papo não estava na agenda. A comunhão, rara, se dava apenas ao redor das mesas fartas. A tradição coagulava em holodets (gelatina de mocotó temperada e endurecida, coberta por grossa película de gordura), vareniques (espécie de raviólis recheados com queijo ou carne), yuach com kneidlach (caldo de galinha, dourado e fumegante, com bolinhos de farinha, ovo e gordura), guefilte fish (bolinho de peixe, às vezes mistura de vários peixes, servido com o caldo dos peixes e hrein, uma raiz forte), shmaltz (gordura sólida de galinha, besuntada em pão quentinho). Fartura não destravava línguas, nem sorrisos. Tudo parecia muito solene e o Menino aprendeu que família rimava com falta de intimidade.

Zissi, que pode ser traduzido livremente como Doçura, foi um projeto de ternura que nunca se concretizou. Despediu-se da vida com pressa, sem dar chance de nos acostumarmos com sua ausência. Está pendurado na parede, num retrato em que meu colégio o homenageou pelo incansável trabalho voluntário, e, à maneira do itabirano, como dói!

Brucha, pássaro de asas feridas, sorria por timidez. Carrego minha dose de culpa por não tê-la ajudado, como merecia, a levantar voo. Cada passo seu, cada gesto, cada hesitação, cada preocupação, trazia as marcas de repressões e carências. Talvez nunca tenha descoberto o que gostaria de fazer, tantas e tamanhas eram as camadas de bloqueio. Foi-se embora como uma luz mortiça que apaga de vez, quase pedindo desculpas por ter sido chama.

O mistério do fim, da falta definitiva, do que fica pendente, me faz lembrar da cena final da excelente série Shtisel. Não vou dar spoilers, espremo apenas o essencial. Um dos personagens comenta que havia lido um livro do Isaac Bashevis Singer, o improvável prêmio Nobel de literatura de 1978. Mesmo considerando-o um herege (o personagem é judeu ultraortodoxo), concorda com determinada passagem. Os mortos não vão a lugar algum, escreveu Singer. Cada homem é um cemitério em movimento e todos os que estão enterrados lá permanecem aqui, o tempo todo. A cena, então, incorpora os personagens que morreram durante a série, reunidos em torno de uma mesa, onde se servem holodets, arenque, pepino azedo, pão preto e outras maravilhas. Todos estão felizes, eloquentes, fraternos. Assim é. As despedidas nunca são definitivas. Somos, sempre, um pouco de cada um que se vai e temos a oportunidade de criar formas diferentes de diálogo através da memória.

Uma história chama outra. No filme O sétimo selo, Ingmar Bergman criou uma das cenas mais citadas da história do cinema. O cavaleiro medieval, que voltava depois de dez anos numa Cruzada, recebe a visita da Morte. Negociam, então, jogar uma partida de xadrez. Tentativa do cavaleiro esticar um pouco seus últimos momentos e aliviar o tormento das dúvidas que o consumiam. Qual o sentido da vida? O que acontece depois da morte? A Morte (impressionante interpretação de Bengt Ekerot), enigmática, não lhe dá respostas. Cada um de nós terá as suas. Religiosos, por exemplo, acreditam que há um post mortem, que o sentido da vida está ligado a uma ética superior, ditada por uma entidade sobrenatural. Meus caminhos são, sempre foram, outros.

A cada ano, a cada momento, tento criar uma mesa parecida com a da família Shtisel. Convoco todos os meus saudosos espectros e, dependendo do estado de espírito, proponho perguntas. Diz o folclore que o judeu responde uma pergunta com outra pergunta. A corrente, portanto, encarna um moto perpétuo. Este ano, vou propor a eles as mesmas perguntas que Clarice Lispector, ela mesma chegada a negrumes e assombrações, “temperamento Lispector”, fez à sua irmã Tania numa carta enviada de Berna, em 10 de março de 1948: “Você tem rido, querida, achado graça nas coisas, tido bom humor? Tem tido tempo moral de olhar um pouco ao redor, com um olhar tranquilo? Tem tido gosto em repousar vendo uma revista? Tem se dado presentes, tem feito favores a você mesma, tem tirado folgas?”. Vou ralhar com cada um deles se insistirem na rotina do muito siso e pouco riso, do arrastar o peso dos séculos. Ai, ai, ai, pessoal!

Zissi Moishe, ou José Maurício. Meu pai. Brucha, o pássaro de Makow Mazowiecki. Minha avó materna.

Abraço. E coragem.