O Antônio Fagundes foi bulir em ninho de víboras. Em suas temporadas teatrais, avisa aos navegantes que não admite atrasos. As peças começam pontualmente e os espectadores que se atrasam não são admitidos na sala de espetáculos. A regra é divulgada com antecedência e clareza, não existem exceções.

Estava o Fagundes na temporada carioca da comédia Baixa terapia. Um grupo de cerca de 50 pessoas chegou pontualmente atrasado no teatro. Foram, claro, impedidas de entrar. Como sói acontecer com cariocas da gema, habituados a ignorar horários, sentiram-se ofendidos e parte deles passou a esmurrar a porta da casa. Gente fina. Baixou dona justa no recinto e o barraco terminou.

Cartas de leitores no jornal registraram “indignação com o rigor”. Um deles não chegou propriamente a mandar o artista pastar, mas sugeriu que ele voltasse pra São Paulo. O Rio, insinuou, não é lugar pra tanta formalidade. Há nas entrelinhas das mensagens uma proposta: por que não dar uma tolerância, digamos, de uns cinco minutos? Conhecendo meu terreiro, respondo. Porque a tolerância viraria, rapidamente, casa de tolerância. Se é que me entendem. Oferecidos os cinco minutos, logo apareceriam os descansadinhos que chegariam com sete minutos de atraso. Barrados, reclamariam da rigidez. O que são dois minutos além dos cinco de tolerância? E a roleta continuaria a girar, turbinada pelo jeitinho. É a cultura do deixa pra lá, do vamos que vamos, do tudo é festa.

Suponhamos que um dos boxeurs improvisados que esmurraram a porta do teatro na zona sul do Rio estivesse em Bayreuth, na Alemanha, para o festival wagneriano anual. O que aconteceria se chegasse, digamos, 30 segundos depois da hora limite para entrada no Festspielhaus? Barrado, o que faria? Ia reclamar com o bispo? Encarar um chucrute fardado e de maus bofes? Seria diferente se, em Viena, ousasse atrasar-se para ouvir Mozart no Musikverein? Por que tem que ser diferente no nosso quintal, vulgo Casa da Mãe Joana?

Nos anos 70, um amigo de faculdade foi fazer pós-graduação no interior da Alemanha. Extasiado, mandou-me uma carta dizendo como funcionava o transporte público na cidade. Em cada ponto de ônibus, havia uma placa indicando os horários exatos em que o veículo passaria por lá. Com precisão de minutos. O resultado é que a vida andava mais suave, sem alvoroços. Cada morador programava sua rotina sem susto ou interrogação. Não tinha essa de esperar o busão em hora incerta e desconhecida. Que tédio, hein?

Dois cariocas exprimiram muito bem esse desprezo radical pelos ponteiros. Falaram genericamente, mas a carapuça cabe à perfeição no Rio. Millôr Fernandes dizia que “a pontualidade é uma grande solidão”. Sou capaz de ouvir o barquinho vai, a tardinha cai, quando leio isso. Já o Leon Eliachar, na verdade cairota com sotaque e molejo cariocas, descobriu que a pontualidade é “coincidência de duas pessoas chegarem com o mesmo atraso”.

O maestro dessa balbúrdia é o celebrado jeitinho. Fernando Sabino, mineiro devidamente acariocado, contou o que se passou com dois brasileiros numa escala no Aeroporto de Lisboa. Tinham cerca de duas horas de intervalo e resolveram dar um bordejo pela cidade. Conversaram com o funcionário local, que lhes informou os caminhos para autorizar o tour. O primeiro seria passar por uma burocracia pesada, que tomaria praticamente todo o tempo de que dispunham. O segundo seria o “processo brasileiro”. E o que seria isso?, indagaram os amigos. “Bem, o “processo brasileiro” é ir saindo como quem não quer nada, tomar um táxi, ver a cidade e depois voltar”. Como história é divertido, mostra a malandragem em ação. Quando, porém, transporto esse tipo de comportamento para a vida em sociedade, não acho tanta graça.

O que começa com uma impontualidade de aparência inocente, espalha-se, numa cadeia de eventos desrespeitosos, para todas as áreas da cidade. Desde a ocupação descontrolada das calçadas por bares e restaurantes até o despejo de lixo em espaços públicos, passando pelas filas furadas e pela barulheira a qualquer hora e em todos os lugares. A regra geral é: não há regra. E, como se dizia, em outros tempos, esculhambatus est.

Ah, antes que me esqueça. O Fagundes tá certo.

Abraço. E coragem.