Final dos anos 40. Numa casa assobradada na rua Moura Brito, Tijuca, algumas adolescentes se movimentavam para criar o primeiro fã-clube do país. O Sinatra-Farney Fan Club reuniu, durante alguns anos, um público jovem que tinha em comum o gosto não apenas por Frank Sinatra e Dick Farney (nome artístico de Farnésio Dutra, criador de um estilo intimista e aveludado de cantar, emplacador de sucessos como Copacabana e Tenderly, e irmão do Cilênio, o Cyll Farney das chanchadas), mas por várias correntes do jazz. Certos frequentadores, mal saídos dos cueiros, como Johnny Alf e João Donato, seriam, não muito tempo depois, sócios importantes de um movimento que influencia ainda hoje músicos e apreciadores da boa música. A Bossa Nova.

Naquela época, era muito difícil ter acesso a discos importados, essenciais para atualização do que se produzia no jazz e na carreira do Frank. Em grande parte, os discos ainda eram gravados em 78 rpm, em material frágil, quebrável, que dificultava o transporte sem o perigo de danificar o bolachão redondo. O jeito, ou melhor, o jeitinho, era apelar para amigos que viajavam. Apelar para as asas amigas da Varig ou da Panair do Brasil. Bom trânsito com comissários de bordo, pilotos e aeromoças renderam, ao longo do tempo, bolachas saindo do forno com o som de Miles, Gillespie, Monk, Brubeck, Mingus, Ellington, Desmond, Blakey, Coltrane, Adderley e mesmo do insuportável Dolphy.

A dificuldade de importar valorizou um ofício. A turma do high society e os donos de boates e inferninhos tinham seus contrabandistas preferidos, que encontravam caminhos desimpedidos para trazer uísques escoceses. No Centro da cidade, não era difícil encontrar camelôs gritando “ingresa, ingresa, ingresa!”. Era assim que apregoavam, antes da chegada dos rapas, as caixinhas acinzentadas com a gilete inglesa Wilkinson. Nunca descobri se eram realmente melhores do que as nossas legítimas blue blade, com as quais penei para aparar as primeiras penugens e apontar lápis. Será que alguém ainda usa lápis?

O fascínio pelo made in USA desidratou aos poucos com a multinacionalização das fábricas. Já não se encomenda pasta Crest aos que viajam para a Disney. Por isso, fiquei surpreso quando minha neta pediu à tia, que mora no Grande Irmão do Norte, um microscópio. Era, aliás, uma surpresa múltipla. Para que diabos ela queria xeretar o mundo invisível? Será que não temos por aqui um aparelhinho de boa qualidade? Na minha meninice, existia um jogo, o Polyopticon, que permitia montar pequenos binóculos, lunetas e microscópios. Era sofisticado e, oh, inacessível aos bolsos anêmicos.

Pequena pausa. Na idade dela, eu pedi um globo terrestre de metal como presente de aniversário. Os amigos caçoaram à tripa forra. Por que não uma bola Pelé (“com ela você ainda vai ser um campeão”), um jogo de futebol totó, um Banco Imobiliário (ninguém podia antecipar, àquela altura, a bolha especulativa norte-americana de 2008), um revólver de espoleta da Estrela, botões de galalite ou bolas de gude? A única resposta que tenho é que meu corpo frágil já tinha sido abduzido pela adultice.

Sem querer, a netinha foi vanguardista. Dias depois da chegada do microscópio, um jornal noticiou que somos, os humanos, 50% bactérias. Um microbiologista afirmou que temos cerca de 23 mil genes humanos. Entretanto, nossos micróbios, os que habitam nossas fronteiras mais íntimas, podem abrigar cerca de três milhões de genes. Entre esses microorganismos, que vagam livres dentro do nosso corpo, as bactérias são o grupo mais comum. Como se não bastasse saber que a vida nasceu de acasos, caldos orgânicos acumulados em milhões de anos e poeiras estelares, agora tomamos ciência de que nada mais somos do que pilhas de matéria viva invisível a olho nu. Ser arrogante, quem há de?

O pingo de gente, cada vez menos pingo e mais nascente de inteligência aguda, vai ter acesso a esse universo em perpétuo movimento e que, à sua maneira, nos constrói e define. Penso em agendar um horário para que ela descubra mais sobre minhas entranhas. Estarão meus micróbios felizes, em crise existencial, reivindicantes? Planejarão um ataque coordenado aos meus Três Poderes ou aceitarão, democraticamente, minhas inseguranças e desrazões? Diga lá, meu querido oráculo da microscopia.

Abraço. E coragem.