Uma miríade de teses caberia para avaliar o capitólio brasileiro e outras tantas para evitá-lo. Uma delas se pauta na anatomia e na estruturação do nazi-fascismo que se repete no Brasil, se reproduziu na gestão Trump, e vem se camuflando como regime autoritário na Turquia, Hungria e Polônia. Ondas e ecos antidemocráticos na candidata Marie Le Penn nas últimas eleições na França e no flerte (aí, sim, flerte) no atual comando da Itália e das Filipinas e numa espécie de ressurreição do nazismo na Alemanha (coibido recentemente com vigor) refletem as tendências de posições extremistas no século XXI. Com muita segurança, afirmo, baseada nos estudos de (Adorno, Arendt, Baumann, Hilberg, Hirsch, Silveman, Knittel, etc.) que o nazismo foi um projeto minuciosamente arquitetado e consolidado em etapas, tendo suas repercussões desacreditadas e minimizadas por parte da elite alemã e pelo próprio povo, deixando, o que o alemão Theodor W. Adorno assegurou em Dialética Negativa, uma profunda cicatriz na humanidade sendo que muitas catarses sociais seriam necessárias para sua depuração. (Minha especialização é tecer um paralelo entre as obras de ficção pós-apocalípticas no imaginário dessa depuração assim como revelar sua evolução no cenário norte-americano, incluindo o surgimento da extrema nova direita na era Trump).

Do “The Beer Hall Putsch”–o golpe para destituir o Weimar que colocou o algoz Hitler na prisão–à “Solução Final” foram aproximadamente 18 anos. Enquanto isso, um verdadeiro trabalho calculado de eugenia era executado pelo alto comando nazista, contando com a colaboração dos policiais da SS, Gestapo, e infelizmente do povo alemão cujo dedo apontava para dedurar os marginalizados pelo regime. Sendo Bauman, Adorno e Arendt marxistas, seus olhares enfocaram os fatores sociais para tal regime se materializar. Bauman trouxe à baila o conceito definido por Marx de lupemproletariado—a camada social inconsciente da sua exploração, e, por conseguinte, iludida por forças reacionárias e contrarrevolucionárias. Ele o revelou em face à conjectura da liquidez das instituições, ameaçadas pelo outro projeto nefasto do Neoliberalismo, iniciado na década de 1980. Suas metáforas caem como preciosas luvas para se costurar o fio condutor entre o fantástico e a realidade, visto que Baumann constrói a alegoria do zumbi para ressignificar a condição do lupemproletariado na contemporaneidade. Condição esta deslindada por uma desumanidade (estado zumbi) e entremeada pela cegueira (da sua condição morto-vivo) da qual a sociedade sofre. Adorno atribuiu aos atos de Treblinka e Auschwitz uma ruptura com qualquer possibilidade de uma reformulação ontológica. Morrendo em 1969, deixou como um de seus legados ponderações em Aspectos do Extremismo da Nova Direita, o título dado a palestra que proferiu dois anos antes de sua morte na Universidade de Viena, recentemente reeditada com um posfácio por Volker Weiss em 2020. Tal visão era de Adorno que mostrou uma projeção de sua diversificada análise na Alemanha quase 50 anos após o nazismo e mais outros 50 pela frente que coincidiram com os fatos atuais. Arendt joga o holofote no julgamento do arquiteto da solução final, Adolpho Eichmann, preso pela inteligência israelense e sabatinado por um ano pelas autoridades competentes. No julgamento, Eichmann mostrou ser um tenente-coronel capacho, chocho sem a mínima noção da gravidade de seus atos. O engenheiro da máquina da morte se revelou pau-mandado, dessensibilizado das 6 milhões de vidas perdidas. Eichmann acabou por inspirar Arendt a cunhar a frase “a banalidade do mal” cujo significado se enseja na estupidez e na banalização da crueldade. Para se combater o nazi-fascismo é necessário preparo. É necessário ir a fundo na história e descortinar seus mecanismos de ação e seus modos operandi. É acreditar que se pode chegar a uma situação limítrofe em que milhares de vidas serão perdidas. É acreditar que nenhuma outra alternativa existe, por enquanto, para a produção dos estados-zumbi, ratificados pelo isolamento social, pelo narcisismo exacerbado e pelas lideranças lunáticas de mídia social que esquizofrenicamente inventam um sem-número de realidades paralelas para os enxotados da periferia, os marginalizados. Depois do Holocausto, não dá mais para minimizar a desumanização, não dá para mais para se consentir capitólios.

Mantidas todas as proporções históricas, temporais e geográficas, vemos certa similaridade entre a ¨banalidade do mal¨ descrita por Hannah Arendt, ao se referir a Adolph Eichmann, e o personagem Anderson Torres, ex-ministro da justiça de Bolsonaro, agora preso, que se presta acriticamente ao papel de protagonista central no planejamento/execução de tentativas de golpe de estado engendradas pelas Forças Armadas e seu preposto político Bolsonaro. Assim como em Eichmann, percebemos em Torres a subserviência aos desígnios dos mandantes, sem avaliação dos aspectos morais, éticos e históricos da missão recebida, agindo como um verdadeiro pau-mandado, sem noção das consequências de seus atos, tanto para a sociedade como para sua própria vida pessoal e profissional. Torres poderia facilmente ser visto como um personagem de um conto de ficção especulativa pós-apocalíptico, um zumbi acéfalo, capturado pela realidade paralela criada pelas fake news produzidas pela ultradireita internacional. (Lucia Ribas)