Tenho pensado bastante no Veríssimo. O Luiz Fernando, não o Érico. Aliás, pensado e lido. A maratona de quase setecentas páginas de crônicas (Veríssimo Antológico, editora Objetiva) me fez lembrar da folclórica timidez do gaúcho suave. A produção oceânica revela, ou esconde?, o “tímido veterano”, que, num texto publicado pelo Estadão em 2018, ensina alguns truques para lidar com o terror da presença do Outro, a perspectiva de ser alvo de olhares, julgamentos e, neurose das neuroses!, punições.

Como no Veríssimo, minha timidez tem grande quilometragem. Já cheguei a admirar o tatu-bola. Ameaçado, ele se enrola e cria uma fronteira esférica com o mundo externo. Desde muito cedo, aperfeiçoei estratégias tatubolianas para atenuar a aflição das convivências. Com James Fenimore Cooper fui Uncas Hawkeye, com Robert Louis Stevenson encarnei Long John Silver, com Monteiro Lobato virei Marquês de Rabicó, com Alex Raymond me apoderei da nave do Flash Gordon e rompi barreiras galácticas, com Edgard Rice Burroughs embrenhei-me em densas e irreais florestas. As páginas, as letras e a imaginação me transformaram em muitos Eus. O tímido se diluía no caldo fervilhante de pradarias, naus, sítios, espaçonaves, selvas.

Uma pequena mudança de rotina faz qualquer tímido tremer nas bases. Precisamos, os companheiros do velho ofício do recolhimento, de muita e segura previsibilidade. É nossa sina. Certa vez, início da adolescência e tratamento ortodôntico em curso, um ônibus pôs à prova meu status de tímido on the run. E fui reprovado.

Antes de entrar na encrenca, é bom lembrar que o tratamento de protusão dentária naquela época nada tinha a ver com os caquinhos multicoloridos que se usam atualmente. Eram peças metálicas nada graciosas, que se apertavam semanalmente. Os usuários eram ridicularizados pelos amigos e ganhavam apelidos pouco generosos. O meu foi Trilho de bonde, que me acompanhou por mais de ano. Óleo de rícino para o tímido.

Voltando à cena do crime. Toda semana eu comparecia ao consultório dentário para ajustar o aparelho. A salinha ficava no Centro do Rio e o som do relógio da Mesbla, não longe dali, dava ritmo e limites à sessão. Na volta para casa, um trajeto que não durava menos de quarenta minutos, eu pegava um ônibus no Passeio Público e passava por regiões empobrecidas antes de chegar na Tijuca. Uma das referências era um antigo prostíbulo, à época chamado de zona de baixo meretrício. Pensava o que seria o alto meretrício, mistério que muitos anos depois foi desvendado. Ele existe, mora em Brasília, é negócio próspero e tem filiais.

Um dia, já dentro do ônibus, percebi que o motorista mudava o itinerário. Entrei em pânico. Aonde me levaria? A Maracangalha? A Jaçanã? Ao deserto da minha desesperança? Não hesitei. Menos de dois pontos depois da partida, acionei a parada. O motorista estranhou, começou a explicar que uma obra o fez desviar do trajeto de sempre, mas logo retornaria ao normal. Adiantou? Que nada. Meus ouvidos estavam selados pelo medo ao desconhecido. Saltei rapidamente e fui quase correndo à sede da União Metropolitana dos Estudantes, onde trabalhava minha mãe, ali pertinho.

Para quem não sabe, o restaurante do Calabouço, bandejão que servia refeições a preço subsidiado, ficava ao lado da UME. Lá, em 1968, foi assassinado pela polícia o estudante Edson Luís de Lima Souto. Filei a boia e voltei para casa com minha mãe. A humilhação de ficar sob a asa da adulta foi preferível para o adolescente. A timidez travou a língua do dentuço. Aceitar uma simples informação no ônibus reporia a ordem natural do universo, mas era uma hipótese inconcebível.

Escrevo por muitas razões. Uma delas é estruturante. Foi a forma que encontrei para escorrer minhas inseguranças, outro nome da timidez. Nos textos, sou faz-tudo: roteirista, cenógrafo, diretor, protagonista e, sobretudo, iluminador. Quando digito cada ponto final, tenho a impressão de que voltei no tempo, aceitei a explicação do motorista, sentei no banco e deixei a vida me levar. No fundo, e ofereço a ideia ao Veríssimo (saudades de você, irmão cronista), gostaria de fundar um movimento anti-Goethe. Para quem não sabe, o grande escritor alemão, no leito de morte, teria dito o seguinte, suas últimas palavras: “Mehr licht (mais luz)!”. A confraria de tímidos protesta com veemência. Queremos menos luz!

Abraço. E coragem.