(Esclarecimento: esta crônica ficou pronta dois dias antes da invasão das gangues fascistas a Brasília)

Em Londres, fazia um frio de assustar esquimó. Era o Natal de 1937 e a liga inglesa de futebol programou para aquele remoto 25 de dezembro o jogo do Chelsea contra o Charlton Athletic. Para adornar o match e honrar a memória de Conan Doyle, baixou no estádio Stamford Bridge uma neblina atrevida. A baixa visibilidade recomendava que o juiz cancelasse o prélio, mas sua senhoria o manteve.

Fim do primeiro tempo, um gol para cada lado. Na volta ao gramado, as equipes mal conseguiam enxergar a bola. Sam Bartram, goleiro do Chelsea, andava tranquilo dentro da pequena área quando perdeu de vista os companheiros. Achou que seu time estava massacrando os players adversários, sem dar chance de contra-ataques. Era uma solidão gostosa, rara na vida dos garda-valas, sempre assediados e tensionados.

A partir de certo momento, porém, Sam começou a estranhar. Tudo bem que não visse os zagueiros, mas sem barulho também? Nem um “deixa comigo”, “olha o ladrão!”, “segura o homem!”? E cadê a torcida? Tinha feito voto de silêncio coletivo? Naquele cenário fantasmagórico, não se atrevia a ir até o limite da grande área. De repente, a surpresa.

Um vulto se aproximou lentamente. Era um policial. “Que diabos você está fazendo aqui? O jogo foi interrompido há uns 15 minutos. Não há mais ninguém no estádio”. Atordoado, Sam se encaminhou lentamente ao vestiário. Lá, foi recebido por uma salva de gargalhadas dos companheiros. Tinham resolvido sair em silêncio do gramado e deixá-lo sozinho na neblina. Acho que, no final, tudo acabou num pub. Bloody football! Bloody joke, indeed.

A jornada singular de Sam Bartram me ofereceu, de bandeja, a metáfora que procurava para a conversa de hoje. A sensação de que estamos envolvidos por uma neblina, cercados por figuras catatônicas, é desconfortável. Durante anos, ao menos desde 1985, alimentamos a ilusão de que o país entrara num período virtuoso e irreversível de aperfeiçoamento civilizatório. Com todos os enormes desequilíbrios estruturais, e a meu ver insolúveis, inerentes ao capitalismo. Nos últimos 4 anos, caímos na real. Emergiu um portentoso exército zumbi, negacionista, rancoroso, autoritário, supremacista. Eles não desembarcaram de uma nave espacial, sempre estiveram entre nós, e representam, hoje, cerca de um quarto de toda a população. Esse fato desconcertante mereceu uma pergunta-chave do presidente chileno, Gabriel Boric: “Uma pergunta que temos que nos fazer como esquerda é por que, em que momento, a ideia de rebeldia foi apropriada pela direita no mundo. E como podemos voltar a falar para as grandes maiorias, e não apenas para nichos separados”.

A sensação de orfandade política destes miasmas é patética. Não conseguem acreditar que seu projeto totalitário foi, ao menos provisoriamente, derrotado. Na terra do Mickey, acompanhando seu guru aloprado, sofrem alucinações. Um deles, chegou a suspeitar que as imagens da posse do Lula foram “montagens da mídia”. Como os medievais que, até hoje, duvidam que o homem foi à Lua. Outro, abraçado aos escombros do líder deprimido, dizia não acreditar que o Lula “estivesse subindo a rampa”. Continuam sonhando com um anjo justiceiro, vestido de verde-oliva, que virá para “restaurar a ordem”. Um pai-tirano que dê algum sentido às suas vidas miseráveis.

O filme 3 Cristos, com ótimos atores, retrata uma história real. Nos anos 50, o psiquiatra Alan Stone chega a uma instituição que interna esquizofrênicos, disposto a experimentar métodos mais humanos de tratamento. Depois de muitas frustrações e uma tragédia, ele diz se sentir “culpado por subestimar o enigma que é a mente humana”. Foi no doutor Stone que pensei ao acompanhar os desatinos dos micróbios que acampam nas portas de quartéis. Tenho sérias dúvidas de que são recuperáveis. É uma doença coletiva com muitas origens e persistência siderúrgica.

Há monstros prestes a estrear e encorpar a névoa. No dia 1 de fevereiro, tomam posse deputados e senadores eleitos em outubro passado. Muitos deles com agendas ultrarreacionárias. Não bastará um governo bem-intencionado, que olhe para as camadas mais exploradas da população. Sem mobilização popular, sem participação política ampliada, sem um projeto de ultrapassagem do modelo especializado em produzir neblinas, continuaremos a desovar noites e sombras, pesadelos e aberrações. Monstros com sete vidas e muitas mortes.

Abraço. E coragem.