Pode soletrar, por favor? Era a senha para começar a confusão. Não adiantava eu dizer que era Jacques com c antes do q. Quase invariavelmente, e por mistérios jamais desvendados, o q era grafado como k. Milagre da multiplicação de nomes. Estou habituado com isso desde que usava Vulcabrás com meias brancas, assistia Jim das Selvas na TV e não perdia as matinês do Metro Tijuca. Já me chamaram de Jackson, e sou frustrado por nunca ter tocado pandeiro; Jack, homenagem involuntária ao Nocaute ídem, antigo e simpático massagista da seleção brasileira; Jax, como sugestão para um novo detergente na praça. Jakes, Jackes, Jaks, a lista é gorda e nela sempre cabe mais um. Jamais caí na tentação de acrescentar letras no nome para desenrolar a vida, conforme sugerem certos tradutores do Além. Já imaginaram o furdunço de um Jahcques ou Jhacques?

Crente que minha árvore genealógica tinha um galho comment allez vous, frère Jacques, descobri que a geografia era mais a leste. Meu bisavô materno, vivente em Mlawa, na Polônia, se chamava Jacob. A parentada se inspirou nele, colocou as letras mlawianas no caldeirão reconstituinte da Emília e de lá saiu minha certidão de nascimento, respingando a falsos Brel, Tati, Loussier e Rivette.

Tenho uma foto, anciã de quase um século, deste bisavô. Era um tipo austero, usava óculos professorais, com olhos indagadores (ou seriam apenas cansados?) e uma barba portentosa, da qual sempre tive inveja. No verso da foto, há um pequeno texto em ídish, com letras firmes mas de leitura quase impossível. Certa vez, pedi ajuda de uma pessoa familiarizada com o idioma para decifrar o texto. Espreme daqui, conecta dali, o máximo que se extraiu foi uma breve saudação de ano novo ao filho Abraham e uma ordem a ele: não se esqueça de colocar os tefilin (filactérios, que os judeus religiosos colocam diariamente no alto da cabeça e no braço esquerdo, durante as orações matinais).

Não faço ideia do destino de Jacob. Seu filho saiu da Polônia nos anos 20, fugindo de uma crônica crise econômica. Foi para a Argentina e lá construiu uma vida estável como mascate. Ganhou cidadania hermana, voltou para a Polônia para casar com Brucha, minha avó, e, ao invés de retornar para Buenos Aires, fez bate-pronto na capital portenha e desembarcou no Rio de Janeiro em 1930. Por que não ficou na Argentina, onde tinha amigos e documentação legalizada? Denso mistério. Não tenho pistas para entender e, por isso e aceitando a sugestão de um amigo, invento uma história. Abraham teria conhecido uma dançarina de tango numa milonga. Tiveram um caso caliente e a moça engravidou. Daí, engrenou um adiós muchachos compañeros de mi vida e se mandou para terras do Zé Carioca. Voltasse para Buenos Aires, não teria bandoneon que segurasse a fúria da señorita. Como diriam os italianos: se non è vero (e conhecendo a pouca disposição aventureira do meu avô, pé de chumbo na certa, passa longe de vero), è ben trovato (pelo menos para contar uma boa história).

Com um roteiro torto, os nomes múltiplos acertaram num alvo: eu sou muitos. A gente vai aprendendo aos poucos que a vida de um homem se define em muitos verbetes, que precisam de atualizações frequentes. De todo jeito, melhor Jacob, Jacques ou Jackson. Já imaginaram se meus pais tivessem resolvido homenagear os Irmãos Grimm? Hoje, eu poderia ser o Rumpelstiltskin (que conheci no Tesouro da Juventude). Que amolação, hein?

Abraço. E coragem.

Jacques (com c antes do q)